Murilo Rubião (1916-1991) escritor mineiro nascido em
Carmo de Minas. Andou pelo jornalismo, pela politica e até pelo serviço diplomático.
Seus contos são considerados como exemplos de literatura fantástica, mas para
mim, o que mais impressiona é o bom humor com o qual ele conta suas historias...
ainda que sejam tristes.
O ex-mágico da Taberna
Minhota
Murilo Rubião
Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos. LXXXV, I)
Hoje sou funcionário
público e este não é o meu desconsolo maior.
Na verdade, eu não estava
preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode
perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a
meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo
de dissabores.
Tal não aconteceu comigo.
Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.
Um dia dei com os meus
cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não
me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante.
Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
O que poderia responder,
nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua
presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado.
Sem meditar na resposta,
ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em
diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.
O homem, entretanto, não
gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu
extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores
negócios aumentar o número de fregueses sem o consequente acréscimo nos lucros,
apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das
minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se
prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a ideia
de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos.
Contrariando as previsões
pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas
apresentações em público não só empolgaram multidões como deram fabulosos
lucros aos donos da companhia.
A plateia, em geral, me
recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando,
sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os
assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por
entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades,
transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional
da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar
distante.
O gerente do circo, a me
espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas palmas da
assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir
nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles
rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o
amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei
e não tive: um nascimento e um passado.
Com o crescimento da
popularidade a minha vida tornou-se insuportável.
Às vezes, sentado em
algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do
bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas
imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes
gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os
pássaros.
Se, distraído, abria as
mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa
vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim, estava
rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.
Nada fazia. Olhava para
os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte
alguma.
Situação cruciante.
Quase sempre, ao tirar o
lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos,
sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu.
Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças
deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se
curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente
da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.
Não protestava. Tímido e
humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não
molestar ninguém.
Também, à noite, em meio
a um sono tranquilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso
que batera as asas ao sair do meu ouvido.
Numa dessas vezes,
irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou.
Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas
dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente
um mágico enfastiado do ofício.
Urgia encontrar solução
para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao
meu desconsolo.
Firme no propósito, tirei
dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que
seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas
roupas, olharam a paisagem, e se foram.
Na manhã seguinte
regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.
— O que desejam, estúpidos
animais?! — gritei, indignado.
Sacudiram com tristeza as
jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:
— Este mundo é
tremendamente tedioso — concluíram.
Não consegui refrear a
raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal
indigestão.
Sofrimento dos
sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.
O fracasso da tentativa
multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao
alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao
espaço.
Senti apenas uma leve
sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um paraquedas. Com
dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à
cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.
Em casa, estendido na
cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da
bala penetrando na minha cabeça.
Não veio o disparo nem a
morte: a máuser se transformara num
lápis.
Rolei até o chão,
soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de
libertar-me da existência.
Uma frase que escutara
por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida.
Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos
poucos.
Não me encontrava em
condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se
lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.
1930, ano amargo. Foi
mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha
existência, ante o espelho da Taberna Minhota.
Não morri, conforme
esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.
Quando era mágico, pouco
lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante
contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea
que me causavam.
O pior é que, sendo
diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à toa horas a fio.
E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu,
entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para
recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações,
pequeno saldo de três anos de vida.
O amor que me veio por
uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas
inquietações.
Distração momentânea.
Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar à
minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma
experiência sentimental!
1931 entrou triste, com
ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me
aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não
me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara,
mas cuja presença me era agora indispensável.)
Fui ao chefe da seção e
lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa,
adquirira estabilidade no cargo.
Fitou-me por algum tempo
em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo.
Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de
afirmar que tinha dez.
Para lhe provar não ser
leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a
lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel
amarrotado — fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.
Revolvi, ansioso, todos
os bolsos e nada encontrei.
Tive que confessar minha
derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela
burocracia.
Hoje, sem os antigos e
miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas.
Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me
obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando
retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga,
por mais que atente a vista.
Pensam que estou louco,
principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.
Tenho a impressão de que
é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.
Não me conforta a ilusão.
Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo
mágico.
Por instantes, imagino
como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos,
verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e
deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a
Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das
meigas criancinhas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário