Lygia Fagundes Telles escritora paulista nascida em 1923 publicou seu
primeiro livro com quinze anos. Desde então publicou quatro romances vinte e um
livros de contos gravando seu nome na historia da literatura portuguesa. “O
moço do saxofone” ,publicado em 1970 como parte do livro Antes do Baile Verde, é absurdamente triste,mas ao mesmo tempo extremamente belo e sensível.
O moço do saxofone
Lygia Fagundes Telles
Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com
um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar
na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que
ficou velha inventou de abrir aquele frege-moscas. Foi o que me contou o James,
um tipo que engolia giletes e que foi o meu companheiro de mesa nos dias em que
trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que
entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente.
Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro
encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e
ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia
cavucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-moscas eu era volante. A comida,
uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens,
tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a
música do saxofone.
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir
tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou
dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um.
Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim
triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como
aquele cara tocava.
— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes.
Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto
que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. Quem é que
está tocando?
— É o moço do saxofone.
Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes
saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na
China.
— E o quarto dele fica aqui em cima?
James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a
cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá
no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder.
— Aqui em cima.
Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de
diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num
negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata, enquanto ia enchendo
meu garfo.
— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.
— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu
James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O
pobre fica o dia inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer.
Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece.
— Deitou com você?
— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E
novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com
mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que
ficam com medo de se cortar...
Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o
saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo
gritar, mas com uma mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos.
Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o
filho na vila, mas não aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito
bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como um louco para chegar o quanto
antes, apavorado com a ideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que
nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona,
mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar
os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto
de hora.
— Parece gente pedindo socorro — eu disse, enchendo
meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre?
James encolheu o ombro.
— Chifre dói.
Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do
saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da
mulher.
— Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para
acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca
fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-ló-ló do James
do que o saxofone.
— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto —
explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela
reclama do saxofone.
— E os outros não reclamam?
— A gente já se acostumou.
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que
James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a
escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim
que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa
diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque tinha sido rápido
demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já
com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de
roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe
deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à
madame, e ela riu.
— Todos artistas, minha pensão é quase só de
artistas...
Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a
empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e
saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu.
Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu
um jeito de esbarrar em mim.
— Licença?
Não precisei perguntar para saber que aquela era a
mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei
olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem
bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa
mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha.
De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, que tive vontade de ir
lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.
— A que horas é a janta? — perguntei para a madame,
enquanto pagava.
— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos
costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar
acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida?
Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu
bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que
de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um
pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou
a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na
porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo.
Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do
saxofone desandou a tocar.
— Sim senhor — eu disse e James pensou que eu
estivesse falando na tal briga.
— O pior é que eu estava de porre, mal pude me
defender!
Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra
coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais
recheio.
— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem
comer nunca?
James demorou para entender do que eu estava falando.
Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque.
— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente —
resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva,
corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela!
Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me
doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo
ajuda não sei mais para quem.
— Não topo isso, pomba.
— Isso o quê?
Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo
trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive
ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe
de toda aquela chateação.
— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já
limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele.
— Feito agora.
Pela cara vi que era mentira.
— Não é preciso, tomo na esquina.
A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto
para aporta, porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo
com o aninho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho
amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida,
abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que
fazer e foi para a rua.
— Sim senhor!
— Sim senhor o quê? — perguntou James.
— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a
tocar, mas assim que ela aparece, ele para. Já reparou? Basta ela se enfurnar e
ele já começa.
James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.
— Mulher é o diabo...
Levantei-me e quando passei junto da mesa dela,
atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei,
agradeceu, de olhos baixos.
— Ora, não precisava se incomodar...
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti
forte seu perfume.
— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. —
Às sete, está bem?
— É a porta que fica do lado da escada, à direita de
quem sobe.
Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de
um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a
madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte
cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O
mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada
sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por
acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à
direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei
parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando um saxofone. Estava
sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra.
Não parecia nem espantado nem nada, só me olhava.
— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse, com uma
voz que até hoje não sei onde fui buscar.
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
— E na porta adiante — disse ele baixinho, indicando
com a cabeça.
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que
situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida.
Ofereci-lhe cigarro.
— Está servido?
— Obrigado, não posso fumar.
Fui recuando de costas. E de repente não aguentei. Se
ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava,
mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas.
— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por
que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se
fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me
metendo, mas quer dizer que você não faz nada?
— Eu toco saxofone.
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia
feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos
compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar,
esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do
instrumento, antes de começar com os malditos uivos.
Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de
mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento
não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que
fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito
besta, então, Cristo-Rei!? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música
do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua,
tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro, que já vinha
vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida,
o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de
fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.
O texto acima foi publicado no livro "Antes do
Baile Verde", José Olympio Editores - Rio de Janeiro, 1979, e relacionado
entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", uma seleção de
Ítalo Moriconi, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2000, pág. 233.
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