Raymond Carver (1938-1988), escritor norte-americano
nascido no Oregon, é presença garantida, ao lado de Tchekhov, Maupassant e
Borges, em qualquer lista de maiores autores de contos de todo o mundo. Teve
uma vida conturbada e dificuldades para conviver com o álcool mas sua produção
e carreira literária foram brilhantes graças a sua genialidade e também ao
apoio de duas pessoas: John Gardner, seu professor de escrita criativa, e
Gordon Lish, seu editor. Tarefa difícil foi escolher um conto Catedral é minha
escolha pessoal como um exemplo deste universo de emoções e relações invisíveis
que sempre permeiam os diálogos (aparentemente inofensivos) de Carver.
Catedral
Raymond Carver
Aquele cego, um velho amigo da minha mulher, ia
chegar para passar a noite em nossa casa. A mulher dele tinha morrido. Por isso
ele estava visitando os parentes da sua falecida mulher que moravam em
Connecticut. Ele telefonou para a
minha mulher, da casa dos parentes da mulher dele. Ficou tudo combinado. Ele ia
chegar de trem, uma viagem de cinco horas, e minha mulher ia encontrá-lo na estação. Ela
não o via desde o verão em que tinha trabalhado para ele, dez anos atrás, em
Seattle. Mas ela e o cego mantiveram contato. Gravavam fitas e mandavam um para o outro pelo correio. A
visita dele não me deixou nem um pouco entusiasmado. Não era nem de longe um
conhecido meu. E o fato de ser cego me incomodava. A ideia que eu tinha da
cegueira vinha do cinema, cegos se movimentavam devagar e nunca riam. As vezes
eram conduzidos por cães-guia. Um cego na minha casa não era uma coisa que eu
pudesse aguardar com grande expectativa.
Naquele verão em Seattle, ela andava atrás de
trabalho. Estava sem dinheiro. O homem com quem ia se casar no final do verão
estava na Escola de Oficiais da Aeronáutica. Ele também não tinha dinheiro. Mas
ela estava apaixonada pelo cara, e ele por ela etc. Ela viu um anuncio no
jornal: necessita-se de ajuda
— Leitura para um cego,
e um numero de telefone. Ela telefonou, foi ate lá e acabou contratada na hora.
Trabalhou para o tal cego durante todo o verão. Lia muita coisa para ele, casos reais, reportagens, coisas assim. Ajudou o
cego a organizar seu pequeno escritório no departamento de serviço social do município.
Ficaram amigos, minha mulher e o cego. Como sei dessas coisas? Ela me contou. E
me contou outra coisa também. No seu último dia no escritório do cego, ele
perguntou se podia tocar no rosto dela. Minha mulher concordou. Contou que os
dedos dele tocaram em todas as partes do seu rosto, o nariz — até o pescoço!
Ela nunca esqueceu. Tentou até escrever um poema sobre isso. Vivia
tentando escrever um poema. Escrevia um ou dois poemas por ano, em geral depois
de alguma coisa realmente importante ter acontecido com ela.
Quando começamos a sair, ela
me mostrou o poema. No poema, ela lembrava os dedos dele e a maneira como se
moveram pelo seu rosto. No poema, ela falava do que sentiu na hora, do que
passou pelo seu pensamento quando o cego tocou seu nariz e seus lábios. Lembro
que não achei o poema grande coisa. Claro, não falei para ela. Vai ver que eu não
entendo de poesia, só isso. Reconheço que poesia não e a primeira coisa que
procuro quando vou pegar um livro para ler.
Mas, como eu ia dizendo, o tal
homem que foi o primeiro a desfrutar os favores dela, o candidato a oficial,
tinha sido seu namoradinho dos tempos de menina. Tudo bem. O que estou dizendo
é que no fim do verão ela deixou o cego passar as mãos no rosto dela, se
despediu dele, casou com o namorado dos tempos de menina, que então já era um
oficial, e foi embora de Seattle. Mas os dois mantiveram contato, ela e o cego.
Foi ela quem fez o primeiro contato, depois de mais ou menos um ano. Telefonou
para ele à noite, de uma base aérea do Alabama. Queria conversar. Os dois
conversaram. Ele pediu que ela mandasse uma fita gravada pelo correio contando
como estava a sua vida. Ela fez isso. Mandou a fita. Na fita, contava a
respeito do marido e da vida dos dois nas Forças Armadas. Contou ao cego que amava
o marido, mas que não gostava do lugar onde moravam, e que não gostava de fazer
parte da indústria militar. Contou ao cego que tinha escrito um poema e que
ele, o cego, estava no poema. Contou que estava escrevendo um poema sobre como
era a vida de uma esposa de um oficial da Força Aérea. O poema não estava
pronto. Ela ainda estava escrevendo. O cego gravou uma fita. Mandou a fita para
ela. Ela gravou uma fita. Isso continuou durante anos. O oficial da minha
mulher vivia sendo transferido de base. Ela mandou fitas de bases em Moody,
McGuire, McConnell e por fim Travis, perto de Sacramento, onde certa noite se
sentiu solitária e triste por viver perdendo os amigos que fazia naquela vida
de se mudar a toda hora de um lugar para o outro. Teve a sensação de que não ia
mais conseguir viver assim. Engoliu todas as pílulas e comprimidos que estavam
no armário de remédios e ainda por cima bebeu uma garrafa de gim para ajudar a
mandar tudo para dentro. Depois foi tomar um banho quente e apagou.
Mas, em vez de morrer, ela
ficou doente. Vomitou. O seu oficial — por que ele precisaria ter um
nome? Era o namoradinho de infância dela, o que mais ele quer? — chegou em casa vindo de não sei onde, achou a mulher
e chamou uma ambulância. Mais tarde, ela contou tudo isso numa fita e mandou
para o cego. Com o correr dos anos, ela gravava todo tipo de coisa nas fitas e
logo depois despachava pelo correio. Além de escrever um poema todos os anos,
acho que esse era o seu principal passatempo. Numa fita, contou ao cego que
tinha resolvido viver longe do seu oficial por um tempo. Em outra fita, falou
para ele do seu divórcio. Eu e ela começamos a sair, e é claro que ela contou
isso ao cego. Contava tudo a ele, pelo menos era o que me parecia. Uma vez me
perguntou se eu não, gostaria
de ouvir a ultima fita que o cego tinha mandado. Faz um ano. Eu estava na fita,
disse ela. Respondi que tudo bem, ia escutar a fita, sim. Peguei bebidas para
nós e nos instalamos na sala. Nos preparamos para escutar. Primeiro ela colocou
a fita no toca-fitas e regulou uns botões. Depois puxou uma alavanca. A fita
deu um guincho e alguém começou a falar com uma voz muito alta. Ela baixou o
volume. Depois de alguns minutos de um papo-furado inofensivo, ouvi meu nome na boca daquele
desconhecido, o cego que eu nem sequer conhecia! E depois isto: “De tudo o que você
disse sobre ele, só posso concluir...”. Mas fomos interrompidos, bateram na
porta, ou alguma outra coisa, e nunca mais voltamos a ouvir a fita. Pode ser
que tenha sido melhor assim. Já tinha ouvido tudo o que eu queria ouvir.
Agora aquele mesmo cego estava
vindo dormir na minha casa.
“Talvez eu possa levar o seu
amigo para jogar boliche”, falei para minha mulher. Ela estava na pia cortando
batatas. Baixou a faca que estava usando e se virou para mim.
“Se você me ama”, disse, “faça
isso por mim. Se não me ama, tudo bem. Mas se você tivesse um amigo, qualquer
amigo, e esse amigo viesse visitar você, eu ia fazer de tudo para ele se sentir
à vontade.” Limpou as mãos com o pano de prato.
“Não tenho nenhum amigo cego”,
falei.
“Você não tem amigo nenhum”,
disse ela. “Ponto-final. Além disso”, emendou, "puxa vida, a mulher dele
acabou de morrer! Será que você não entende? O homem acabou de perder a
mulher!”
Não respondi. Ela me falou um
pouco mais sobre a mulher do cego. O nome dela era Beulah. Beulah! Isso é nome
de mulher de cor.
“A mulher dele era crioula?”,
perguntei.
“Você esta maluco?”, disse
minha mulher. "Será que você pirou de vez?” Pegou uma batata. Vi a batata
bater no chão e depois rolar para baixo do fogão. O que e que você tem?”,
perguntou. “Esta embriagado ou o que?”
“Estou só perguntando”, falei.
Minha mulher logo despejou em
cima de mim muito mais detalhes do que eu queria saber. Preparei uma bebida e
sentei junto a mesa da cozinha para escutar. Pedaços daquela historia começaram
a se encaixar.
Beulah tinha ido trabalhar
para o cego no verão, depois que minha mulher havia deixado de trabalhar para
ele. Não demorou muito, Beulah e o cego casaram na igreja. Foi um casamento
pequeno — afinal, quem ia querer ir a um casamento daqueles? —, só os dois mais
o pastor e a mulher do pastor. Mas, para todos os efeitos, foi um casamento na
igreja. Era o que Beulah queria, disse ele. Mas já naquele tempo Beulah devia
estar com câncer nas glândulas. Depois de viverem inseparáveis durante oito
anos — palavra da minha mulher, inseparáveis —, a saúde de Beulah entrou
em rápido declínio. Morreu num quarto de hospital em Seattle, o cego sentado ao
lado da cama, segurando a mão dela. Casaram, moravam e trabalhavam juntos,
dormiam juntos — faziam sexo, claro — e depois o cego teve de enterrar a
mulher. Tudo isso sem ele jamais ter visto que aspecto tinha o raio da mulher.
Era uma coisa além da minha compreensão. Ao ouvir aquilo, tive um pouquinho de
pena do cego. Depois me vi pensando na vida lamentável que aquela mulher devia
ter tido. Imagine uma mulher que nunca podia se ver como era vista pelos olhos
do homem que amava. Uma mulher que vivia dia apos dia sem nunca receber um
elogio do seu amado. Uma mulher cujo marido nunca ia poder ver a expressão do
rosto dela, fosse de angustia ou de alguma coisa melhor. Alguém que podia usar
maquiagem ou não usar — que diferença faria para ele? Se quisesse, ela poderia
usar uma sombra verde em volta de um olho, um alfinete enfiado no nariz, calças
amarelas folgadas e sapatos roxos, tanto fazia. E depois resvalar para a morte,
a mão do cego segurando sua mão, os olhos cegos dele cheios de lagrimas —
imagino agora — e o ultimo pensamento da mulher podia ser este: ele nunca soube
como era o aspecto dela de verdade, e lá ia a mulher num trem expresso direto
para a sepultura. Robert ficou com uma pequena apólice de seguro e metade de
uma moeda de vinte pesos mexicanos. A outra metade da moeda ficou no caixão com
ela. Patético.
Então, quando chegou a hora
marcada, minha mulher foi a estação pegar o cego. Sem nada mais para fazer a não
ser esperar — claro, pus a culpa nele por isso —, eu estava tomando um
drinque e vendo teve quando ouvi o carro parar na entrada. Levantei do sofá com
a bebida na mão e fui ate a janela dar uma olhada.
Vi minha mulher rindo enquanto
estacionava o carro. Vi minha mulher sair do carro e fechar a porta. Ainda
estava sorrindo. Era espantoso. Deu a volta para o outro lado do veículo, onde
estava o cego, que já começava a sair do carro. O cego, imagine só, tinha uma
barba enorme! Uma barba num cego! É demais, francamente. O cego esticou o braço
para o banco traseiro e puxou uma mala. Minha mulher amparou o homem pelo braço,
fechou a porta do carro e, falando por todo o caminho, conduziu o cego pela
entrada e depois pela escadinha da varanda. Desliguei a televisão. Terminei
minha bebida, lavei o copo, enxuguei as mãos. Depois fui até a porta.
Minha mulher disse: “Quero te
apresentar o Robert. Robert, esse e o meu marido. Já contei a você tudo sobre
ele”. Ela sorria radiante. Segurava o cego pela manga do paletó.
O cego largou sua mala e
estendeu a mão.
Apertei a mão. Ele apertou com
força, ficou segurando um pouco minha mão e depois soltou.
“Tenho a sensação de que já nos
conhecemos”, falou com seu vozeirão.
“Eu também”, respondi. Não
sabia o que mais eu podia dizer. Depois falei: "Seja bem-vindo. Ouvi falar
muito de você”. Então começamos a andar, um pequeno grupo, da varanda para a
sala, e minha mulher o guiava pelo braço. O cego levava sua mala na outra mão.
Minha mulher ia dizendo coisas como: “Para a esquerda agora, Robert. Isso
mesmo. Agora cuidado, tem uma cadeira. Isso. Sente ai. E o sofá. Compramos esse
sofá há duas semanas”.
Eu ia começar a dizer alguma
coisa sobre o sofá velho. Eu gostava daquele sofá velho. Mas não falei nada.
Depois quis falar alguma outra coisa, puxar um papo a toa, falar da paisagem
pitoresca que a gente vê quando viaja de trem pela beira do rio Hudson. Queria
falar como é que, quando a gente viaja para Nova York deve sentar no
lado direito do trem e quando a gente vem de Nova York deve sentar no
lado esquerdo.
Fez boa viagem?”, perguntei.
“Por falar nisso, de que lado do trem você sentou?"
Que pergunta, de que lado do
trem!”, disse minha mulher. "Que importância tem o lado?”, exclamou.
Eu só perguntei”, respondi.
No lado direito”, disse o
cego. “Fazia quase quarenta anos que eu não andava de trem. Desde que eu era criança.
Com minha família. Já faz muito tempo. Tinha quase esquecido a sensação. Agora
estou com o inverno na minha barba”, disse. "Afinal, envelheci. Estou com
um ar distinto, minha querida?”, perguntou à minha mulher.
"Esta com um ar distinto
sim, Robert”, respondeu ela. “Robert”, disse. “Robert como é bom ver você.”
Minha mulher finalmente tirou
os olhos do cego e olhou para mim. Tive a sensação de que não gostou do que
viu. Encolhi os ombros.
Eu nunca tinha encontrado, nem
conhecido pessoalmente, alguém cego. Aquele cego era um homem à beira dos
cinquenta anos, corpulento, meio careca, de ombros curvados, como se carregasse
ali um grande peso. Usava calças marrons, sapatos marrons, camisa marrom-clara,
gravata, paletó esporte. Arrumadinho. Além disso tinha aquela barba grande. Mas
não usava bengala nem óculos escuros. Sempre pensei que óculos escuros fossem
uma obrigação para os cegos. O fato é que eu preferia que ele usasse óculos
escuros. À primeira
vista, os olhos dele pareciam iguais aos de qualquer pessoa. Mas se a gente
prestasse atenção havia uma coisa diferente neles. Para começar, tinha branco
demais na íris e as pupilas pareciam se mexer nas orbitas dos olhos sem que ele
soubesse ou que fosse capaz de impedir. Sinistro. Quando olhei com atenção para
aquela cara, vi a pupila esquerda virar na direção do nariz, enquanto a outra
fazia um esforço para continuar no lugar. Mas era só um esforço, pois aquele
olho passeava para tudo quanto era lado, sem que ele soubesse ou quisesse
aquilo.
Falei: “Vou servir um drinque
para você. O que prefere? Temos um pouco de tudo. E um de nossos passatempos”.
“Meu camarada, sou um homem do
uísque”, respondeu bem depressa com sua voz cheia.
“Muito bem”, falei. “Você é
dos meus! Logo vi que era.”
Deixou os dedos tocarem sua
mala, que estava no chão ao lado do sofá. Ele estava conferindo suas coordenadas.
Não o censurei por isso.
“Vou levar a mala para o seu
quarto”, disse minha mulher.
“Não, esta bem assim",
respondeu o cego em voz alta. “Ela pode subir junto comigo.”
“Um pouco de agua no uísque?”,
perguntei.
“Muito pouca”, respondeu.
"Eu sabia”, falei.
Ele disse: “Só um pingo.
Aquele ator irlandês, Barry Fitzgerald, não é? Sou como ele. Quando bebo agua,
disse Fitzgerald, bebo agua. Quando bebo uísque bebo uísque”. Minha mulher riu.
O cego ergueu a mão por baixo da barba. Levantou
a barba devagar e deixou-a cair.
Preparei as bebidas, três
copos grandes de uísque com um borrifo de água. Então nos acomodamos
confortavelmente e conversamos sobre as viagens de Robert. Primeiro o longo voo
da Costa Leste até Connecticut. Cobrimos todo esse tema. Depois, de Connecticut
até aqui de trem. Tomamos mais uma bebida para tratar dessa parte da viagem.
Lembrei que tinha lido em
algum lugar que os cegos não fumavam porque, essa era a hipótese, não podiam
ver a fumaça que exalavam. Eu achava que era isso e só isso que eu sabia sobre
cegos. Mas aquele cego fumava seu cigarro até o fim e depois logo acendia
outro. Aquele cego enchia o cinzeiro e minha mulher esvaziava.
Quando sentamos à mesa para
jantar, pegamos mais uma bebida. Minha mulher encheu o prato de Robert até em
cima com bife, batatas picadas e assadas e feijão verde. Passei manteiga em
duas fatias de pão para ele. Falei: “Tome aqui um pão com manteiga para você”.
Engoli um pouco da minha bebida. "Agora vamos rezar”, falei, e o cego
baixou a cabeça. Minha mulher me olhou de boca aberta. “Vamos rezar para que o
telefone não toque justamente agora e a gente tenha que comer comida fria”,
falei.
Atacamos os pratos cheios de
vontade. Comemos tudo o que havia para comer em cima da mesa. Comemos como se não
fosse haver o dia seguinte. Não conversamos. Comemos. Raspamos o prato. Passamos
o rodo naquela mesa. Estávamos ali para comer a serio. O cego localizou na
mesma hora as suas comidas. sabia exatamente onde tudo estava no prato. Eu
observava com admiração enquanto ele usava o garfo e a faca na sua comida.
Cortou a carne em dois pedaços, espetou um no garfo e o levou à boca. depois
avançou cheio de gás nas batatas assadas, depois no feijão e depois rasgou um
pedaço de pão com manteiga e comeu. Tudo isso regado com um grande gole de
leite. Também não parecia se importar muito em usar os dedos de vez em quando.
Liquidamos tudo, inclusive
metade de uma torta de morango. Durante alguns momentos, ficamos parados, como
que atordoados. O suor brilhava em nosso rosto. Por fim, levantamos da mesa e
deixamos os pratos sujos. Nem olhamos para trás. Fomos para a sala e afundamos
de novo em nossos lugares. Robert e minha mulher sentaram no sofá. Ocupei a
poltrona grande. Tomamos mais duas ou três bebidas enquanto os dois conversavam
sobre as coisas mais importantes que tinham acontecido com eles nos últimos dez
anos. A maior parte do tempo só fiquei escutando. De vez em quando eu falava
alguma coisa. Eu não queria que ele pensasse que eu tinha saído da sala, e eu não
queria que ela pensasse que eu estava me sentindo excluído. Eles falaram de
coisas que tinham acontecido — com eles! — nos últimos dez anos. Esperei em vão
ouvir meu nome nos doces lábios da minha mulher: “E então meu querido marido
entrou na minha vida” — algo assim. Mas não ouvi nada desse tipo. Falavam mais
de Robert. Pelo jeito, Robert tinha feito um pouco de tudo, um cego que era um
verdadeiro homem dos sete instrumentos. No entanto, mais recentemente, ele e a
mulher tinham conseguido uma representação da empresa Amway, e assim, pelo que
entendi, vinham ganhando a vida modestamente. O cego era também radioamador.
Com aquela sua voz retumbante, falava de suas conversas com radioamadores em
Guam, nas Filipinas, no Alasca e até no Taiti. Disse que teria uma porção de
amigos a disposição se algum dia quisesse visitar aqueles lugares. De vez em
quando, virava o rosto cego para mim, punha a mão embaixo da barba, me
perguntava alguma coisa. Fazia quanto tempo que eu estava na minha atual posição?
(Três anos.) Eu gostava do meu trabalho? (Não gostava.) Eu ia continuar no
emprego? (Quais eram as opções?) Por fim, quando achei que ele estava começando
a ficar cansado, levantei e liguei a televisão.
Minha mulher me olhou
irritada. Estava a beira de explodir. Entoa olhou para o cego e disse:
"Robert, você tem televisão?”.
O cego falou: “Minha querida,
tenho dois televisores. Tenho um aparelho em cores e um preto e branco, uma relíquia.
É engraçado, mas quando ligo a televisão, e estou sempre ligando a televisão,
ligo o aparelho em cores. Engraçado, não acha?”.
Fiquei sem saber o que
responder. Eu não tinha absolutamente nada para dizer. Nenhuma opinião. Então
fiquei vendo o noticiário e tentei escutar o que o locutor dizia.
“Esse é um televisor em cores”,
disse o cego. "Nao me pergunte como eu sei, mas sei.”
"A gente comprou faz
pouco tempo”, falei.
O cego tomou mais um gole da
sua bebida. Levantou a barba, cheirou-a e a deixou cair de novo. Inclinou-se
para a frente no sofá. Colocou o cinzeiro na mesinha de centro, depois levou o
isqueiro até seu cigarro. Recostou-se no sofá e cruzou as pernas na altura dos tornozelos.
Minha mulher cobriu a boca e
depois bocejou. Espreguiçou-se. Falou: “Acho que vou subir e por o meu roupão.
Acho que vou trocar de roupa. Robert, se ajeite da maneira mais confortável”,
disse.
“Estou confortável”, respondeu
o cego.
“Quero que você se sinta confortável
nesta casa”, disse ela.
“Estou confortável”, disse o
cego.
Depois que ela saiu da sala,
eu e ele ficamos escutando a previsão do tempo e depois a cobertura esportiva.
Nessa altura, já fazia tanto tempo que ela havia saído que eu não sabia mais se
ela ia voltar. Achei que podia ter ido dormir. Torci para que ela descesse. Não
queria ficar sozinho com um cego. Perguntei se ele não queria mais uma bebida e
ele respondeu que sim, claro. Depois perguntei se não queria fumar maconha
comigo. Eu falei que havia acabado de enrolar alguns. Eu não tinha feito isso,
mas era o que eu pretendia fazer em seguida.
“Vou experimentar um pouco”,
disse ele.
“Beleza”, falei. “E assim que
se fala.”
Fui pegar nossos drinques e
sentei no sofá com ele. Depois enrolei para nós dois baseados bem gorduchos.
Acendi um e passei para ele. Coloquei entre seus dedos. Ele segurou e inalou.
“Prenda o ar o máximo que
conseguir”, falei. Dava para ver que ele não entendia do assunto.
Minha mulher desceu vestindo o
roupão cor-de-rosa e os chinelos cor-de-rosa.
“Que cheiro e esse?”,
perguntou ela.
“A gente achou que podia fumar
um pouco de cannabis”, respondi.
Minha mulher me lançou um
olhar furioso. Depois olhou para o cego e disse: “Robert, eu não sabia que você
fumava”.
Ele disse: ‘Agora fumo, minha
querida. Para tudo há uma primeira vez. Mas ainda não estou sentindo nada”.
“Esta aqui é muito fraquinha”,
falei. “É suave. É maconha para a gente continuar raciocinando”, falei. “Não
confunde as ideias da gente.”
“Não mesmo, meu camarada”,
disse ele, e riu.
Minha mulher sentou no sofá
entre mim e o cego. Passei o baseado para ela, que pegou, deu uma tragada e
passou de volta para mim. “Em que direção esta rodando?”, perguntou ela. Depois
falou: “Eu não devia estar fumando isto. Mal consigo me manter de olhos abertos
do jeito que já estou. Esse jantar acabou comigo. Não devia ter comido tanto”.
“Foi a torta de morango”,
disse o cego. "Ela é que fez isto”, disse ele, e riu com sua gargalhada
alta. Depois balançou a cabeça.
“Tem mais torta de morango”,
falei.
"Quer mais, Robert?”,
perguntou minha mulher.
“Talvez daqui a pouco”,
respondeu.
Voltamos nossa atenção para a
tevê. Minha mulher bocejou outra vez. Disse: “Quando você sentir vontade de ir
dormir, sua cama já esta feita, Robert. Sei que deve ter tido um dia longo.
Quando tiver vontade de ir para a cama, e só dizer”. Ela puxou o braço do cego.
“Robert?”
Ele acordou e disse: “Tive
momentos ótimos. Isso é mais legal do que as fitas, não e?”.
Falei: “Sua vez de novo”, e
pus o baseado entre seus dedos. Ele inalou, prendeu a fumaça e depois soltou.
Parecia que fazia aquilo desde o nove anos.
“Obrigado, meu camarada”,
disse ele. “Mas acho que para mim já chega. Acho que estou começando a sentir”,
disse. Ofereceu a guimba do baseado aceso para a minha mulher.
“Pois é”, disse ela. “Idem,
idem. Eu também.” Ela pegou a guimba e passou para mim. ‘Acho que vou ficar
aqui só mais um pouquinho, entre vocês dois, de olhos fechados. Mas não quero
incomodar vocês, está legal? Nenhum dos dois. Se eu estiver incomodando e só
dizer. Se eu não incomodar, vou ficar aqui sentada de olhos fechados até a hora
de vocês irem para a cama”, disse ela. “Sua cama esta pronta, Robert, quando
quiser ir. Fica bem do lado do nosso quarto, no alto da escada. A gente vai
mostrar onde e quando você estiver pronto. Vocês me acordem, viu, vocês dois,
se eu pegar no sono.” Disse isso, fechou os olhos e adormeceu.
O noticiário da teve terminou.
Levantei e mudei de canal. Recostei-me no sofá. Bem que eu gostaria que minha
mulher não tivesse apagado. A cabeça dela estava tombada para trás, sobre o
encosto do sofá, e ela estava de boca aberta. Tinha virado de um jeito que o roupão
havia escorregado de suas pernas, deixando à mostra uma coxa bem suculenta.
Estiquei a mão para puxar o roupão por cima dela e ai lancei um olhar para o
cego. Que diabo! Larguei a aba do roupão aberta outra vez.
“Se quiser mais um pouco de
torta de morango e só dizer”, falei.
“Pode deixar”, respondeu.
Perguntei: “Esta cansado? Quer
que eu leve você para a cama? Esta pronto para puxar um ronco?”.
“Ainda não”, disse ele. “Não,
vou ficar acordado com você, meu camarada. Se não houver problema. Vou ficar
acordado até você sentir vontade de ir dormir. Ainda não tivemos oportunidade
de conversar. Sabe do que estou falando? “Acho que eu e ela acabamos
monopolizando a noite.” Levantou a barba e a deixou cair de novo. Pegou seus
cigarros e seu isqueiro.
“Não tem problema”, falei.
Depois eu disse: “Estou contente de ter companhia”.
E acho que estava mesmo. Toda
noite eu fumava maconha e ficava acordado o máximo que conseguia antes de pegar
no sono. Era muito raro eu e minha mulher irmos para a cama no mesmo horário.
Quando eu ia dormir, tinha aqueles sonhos. As vezes eu acordava de um sonho
assim e meu coração batia feito doido.
Na tevê estava passando alguma
coisa que tinha a ver com a Igreja e a Idade Media. Nada dessas coisas que a
gente costuma ver na tevê. Eu queria ver outra coisa. Fui mudando de canal. Mas
neles também não havia nada. Ai voltei para o primeiro canal e pedi desculpas.
“Meu camarada, esta tudo bem”,
disse o cego. “Para mim está ótimo. O que você quiser ver esta bom. Estou
sempre aprendendo alguma coisa. O aprendizado nunca termina. Não vai me fazer
mal nenhum aprender alguma coisa esta noite. Sei ouvir”, disse ele
Ficamos calados por um tempo.
Ele estava inclinado para a frente com a cabeça virada para mim, a orelha
direita apontada para o televisor. Muito desconcertante. De vez em quando suas pálpebras
tombavam e depois se abriam de repente. De vez em quando punha os dedos na
barba e puxava, como se estivesse pensando em alguma coisa que estava ouvindo
na tevê.
Na tela, um grupo de homens
vestidos com capuz de monge estavam sendo atacados e atormentados por homens
vestidos com fantasias de esqueleto e de diabo. Os homens vestidos de diabo
usavam mascaras de diabo, chifres e rabos compridos. Aquela pantomima fazia
parte de uma procissão. O inglês que estava narrando o negocio dizia que aquilo
ocorria na Espanha uma vez por ano. Tentei explicar ao cego o que estava
acontecendo.
"Esqueletos”, disse ele.
“Sei o que são esqueletos”, disse, e assentiu com a cabeça.
A teve mostrou uma catedral.
Depois veio uma tomada longa e lenta de outra catedral. Por fim, surgiu a
imagem daquela catedral famosa em Paris, com seus arcobotantes suspensos e suas
torres que subiam até as nuvens. A câmera recuou para mostrar o conjunto de
catedrais se erguendo contra o horizonte.
O inglês que narrava aquele
negócio de vez em quando ficava calado e simplesmente deixava a câmera passear
sobre as catedrais. Ou então a câmera se voltava para paisagens rurais, homens
andando atrás de bois em campos de lavoura. Esperei o mais que pude. Ai achei
que eu precisava falar alguma coisa. Disse: "Agora estão mostrando a parte
externa da catedral. As gárgulas. Umas estatuas pequenas esculpidas para
parecerem monstros. Acho que agora estão na Itália. Tem pinturas nas paredes
dessa igreja”.
"São afrescos, meu camarada?”,
perguntou e tomou um gole do seu drinque.
Estendi a mão para alcançar
meu copo. Mas estava vazio. Tentei me lembrar do que eu podia. “Esta me
perguntando se são afrescos?”, falei. “Boa pergunta. Não sei.”
A câmera focalizou uma
catedral nos arredores de Lisboa. As diferenças entre a catedral portuguesa e
as francesas e italianas não eram lá muito grandes. Mas havia diferenças.
Sobretudo no interior. Então me ocorreu uma coisa e eu falei: “Sabe, me ocorreu
uma coisa. Você tem alguma ideia do que é uma catedral? Como é que elas são,
entende? Esta sacando o que quero dizer? Se alguém diz para você ‘catedral’, você
tem alguma ideia do que a pessoa esta falando? Sabe a diferença entre ela e uma
igreja batista, por exemplo?”.
Ele soltou um pouco de fumaça pela
boca. "Sei que sua construção exigia centenas de operários e que levavam
cinquenta ou cem anos para ficar prontas disse. “Acabei de ouvir o homem falar
isso, claro. Sei que diversas gerações das: mesmas famílias
trabalhavam numa catedral. Ouvi o homem dizer isso também. Os homens que
iniciavam a vida trabalhando numa catedral morriam sem ver seu trabalho concluído.
Nesse aspecto, meu camarada, eles não são em nada diferentes de nós, certo?”
Riu. Então suas pálpebras baixaram outra vez. A cabeça balançou um pouco, para
cima e para baixo. Ele parecia estar cochilando. Talvez estivesse se imaginando
em Portugal. Agora a tevê mostrava outra catedral. Ficava na Alemanha. A voz do
inglês continuava sua lengalenga. “Catedrais”, disse o cego. Ergueu os ombros e
rodou a cabeça de um lado para o outro. “Se que saber a verdade, meu camarada,
isso é tudo que eu sei. Isso que acabei de dizer. O que ouvi o homem falar. Mas
quem sabe você pode me descrever uma catedral? Eu gostaria que fizesse isso.
Gostaria muito. Para dizer a verdade, não tenho uma boa ideia do que é uma
catedral.”
Olhei com atenção a imagem da
catedral na tevê. Como e que eu ia conseguir ate mesmo começar a descrever
aquilo? Mas digamos que minha vida dependesse disso. Digamos que minha vida
estivesse sendo ameaçada por um maluco que dissesse que eu tinha de fazer
aquilo senão...
Observei mais um pouco a
catedral antes de a imagem mudar de repente outra vez para uma paisagem rural. Não
tinha jeito. Virei para o cego e disse: “Antes de mais nada, elas são muito
altas”. Fiquei olhando em volta da sala, em busca de alguma ideia. “Elas sobem
muito alto. Vão subindo, subindo a vida toda. Na direção do céu. Algumas são tão
grandes que precisam de escoras. Que ajudem a sustentar, sabe. Essas escoras são
chamadas de arcobotantes. Para mim, lembram os viadutos, não sei por quê. Mas
talvez você também não saiba como são os viadutos, não é? As vezes as
catedrais tem uns demônios, umas coisas assim esculpidas na frente. As vezes uns
senhores e umas senhoras. Não me pergunte por que”, falei.
Ele fazia que sim com a cabeça.
Toda a parte superior do seu corpo parecia se mover para a frente e para trás.
“Não estou me saindo muito
bem, não é?”, falei.
Ele parou de balançar a cabeça
e inclinou-se para a beira do sofá. Enquanto me ouvia, passava os dedos por
dentro da barba. Eu não estava conseguindo explicar, dava para ver pela cara
dele. Mesmo assim ele esperava que eu continuasse. Assentiu com a cabeça, como
se quisesse me incentivar a prosseguir. Tentei achar mais alguma coisa para
dizer. “Elas são grandes mesmo", falei. “São pesadas. São feitas de pedra.
De mármore também, as vezes. Antigamente, na época em que os homens construíam
catedrais, eles queriam ficar perto de Deus. Antigamente, Deus era uma parte
importante da vida de todo mundo. Dá para ver isso pela construção das
catedrais. Desculpe”, falei, "mas parece que isso e o máximo que consigo
fazer por você. Eu não sou bom nisso.”
“Tudo bem, meu camarada”,
disse o cego. "Ei, escute. Espero que não se importe de eu perguntar. Mas
posso perguntar uma coisa para você? Deixe eu fazer a você uma pergunta
simples, do tipo sim ou não. É que estou curioso, e não há nenhum desrespeito
no que vou perguntar. Você é meu anfitrião. Mas queria perguntar se você tem
algum tipo de religião. Não se importa que eu pergunte?”
Fiz que não com a cabeça. No
entanto, ele não podia ver isso. Um piscar de olhos e um balance) da cabeça são
a mesma coisa para um cego. “Acho que não acredito nisso. Em nada. As vezes não
é fácil. Sabe como é?”
“Claro que sim”, respondeu.
"Certo”, falei.
O inglês continuava falando.
Minha mulher deu um suspiro dormindo. Respirou fundo e continuou a dormir.
“Você vai ter que me
desculpar”, falei. "Mas não consigo explicar a você como é o aspecto de
uma catedral. Não tenho essa capacidade. Não consigo dizer mais do que já
disse.”
O cego permaneceu imóvel, de cabeça
baixa enquanto me ouvia falar.
Falei: “A verdade e que as
catedrais não tem nenhum significado especial para mim. Nada. Catedrais. São
uma coisa para a gente ficar vendo na tevê tarde da noite. E só isso que são”.
Foi ai que o cego pigarreou
para limpar a garganta. Levantou alguma coisa na mão. Tinha tirado um lenço do
bolso de trás. Depois falou: “Entendo, meu camarada. Está tudo bem. Acontece. Não
se preocupe”, falou. “Ei, escute aqui. Pode me fazer um favor? Tive uma ideia. Você
podia arranjar um papel grosso? E uma caneta? Vamos fazer uma coisa. Vamos
desenhar uma catedral juntos. Pegue uma caneta e um papel grosso. Vamos lá, meu
camarada, traga esse material”, disse.
Então fui até o andar de cima.
Minhas pernas pareciam estar sem força. A sensação era que eu tinha acabado de
voltar de uma corrida. No quarto da minha mulher, dei uma olhada em volta.
Achei umas esferográficas numa cestinha mesa dela. E depois tentei pensar onde
podia encontrar o tipo de papel que ele estava pedindo.
No térreo, na cozinha, achei
um saco de compras com umas cascas de cebola no fundo. Esvaziei o saco e sacudi
com força. Levei-o para a sala e sentei no chão com ele, perto das pernas do
cego. Tirei algumas coisas do lugar, alisei as rugas do saco de papel, estendi
o saco em cima da mesinha de centro.
O cego desceu do sofá e sentou
no tapete ao meu lado.
Ele passou os dedos sobre o
papel. Subiu e desceu os dedos pelas margens do papel. As beiradas, até as
beiradas. Ele tocou todos os cantos.
"Tudo bem”, disse.
"Tudo bem, vamos fazer uma.”
Localizou minha mão, a mão com
a caneta. Fechou a sua mão em cima da minha. "Agora vamos lá, meu
camarada, desenhe”, disse. “Desenhe. Você vai ver. Vou acompanhar você. Vai dar
certo. É só começar do jeito como estou dizendo. Você vai ver. Desenhe”, disse
o cego.
Então comecei. Primeiro
desenhei uma caixa que parecia uma casa. Podia ser a casa onde eu morava.
Depois fiz um telhado em cima. Nas duas pontas do telhado, pus torres. Que
doideira.
"Ótimo”, disse ele. “Fantástico.
Você esta indo muito bem”, disse. “Nunca imaginou que uma coisa assim podia
acontecer na sua vida, não é, meu camarada? Bem, a vida e uma coisa estranha
mesmo, todos sabem disso. Agora vá em frente. Continue.”
Acrescentei janelas com arcos.
Desenhei os arcobotantes. Pus umas portas grandes. Não conseguia parar. O canal
de tevê saiu do ar. Baixei a caneta e fechei e abri os dedos. O cego tateou a superfície
do papel. Moveu as pontas dos dedos pelo papel, percorreu tudo o que eu havia desenhado
e assentiu com a cabeça.
“Está muito bom”, disse o
cego.
Peguei a caneta de novo e ele
achou minha mão. Continuei. Não sou nenhum artista nem nada. Mas continuei
desenhando assim mesmo.
Minha mulher abriu os olhos e
olhou para nos. Ela se endireitou no sofá, seu roupão ainda aberto. Falou: “O
que vocês estão fazendo? Me contem, quero saber”.
Não respondi.
O cego disse: "Estamos
desenhando uma catedral. Eu e ele estamos fazendo esse trabalho. Aperte a
caneta com força”, ele me disse. ‘Assim mesmo. Muito bem”, disse. “Claro. Você
pegou o jeito, meu camarada. Não há duvida. Você achava que não ia conseguir.
Mas consegue, não é? Agora você esquentou os motores. Entende o que estou
dizendo? Daqui a pouco a gente vai conseguir fazer aqui uma coisa fora do
comum. E o velho braço, como vai?”, perguntou. "Vamos por umas pessoas lá
dentro agora. O que é uma catedral sem gente?”
Minha mulher disse: “O que e que esta acontecendo? Robert,
o que você está fazendo? O que esta acontecendo?”.
“Está tudo bem”, disse ele.
"Agora feche os olhos”, disse o cego para mim.
Fechei. Fechei os olhos como
ele disse.
“Estão fechados?”, perguntou.
“Não pode trapacear.”
"Estão fechados”, falei.
"Fique com os olhos
assim”, disse ele. “Agora não pare, continue desenhando.”
E a gente continuou
desenhando. Os dedos dele guiavam os meus, enquanto minha mão se movia sobre o
papel. Nunca na vida eu tinha experimentado uma coisa assim.
Então ele disse: “Acho que
está pronto. Acho que você conseguiu”, disse ele. “De uma olhada. O que
acha?".
Mas eu estava de olhos
fechados. Fiquei com vontade de manter os olhos fechados por mais tempo. Achei
que era uma coisa que eu devia fazer.
“E então?”, perguntou ele.
“Esta vendo?”
Meus olhos ainda estavam
fechados. Eu estava na minha casa. Sabia disso. Mas não tinha a sensação de
estar dentro de nada.
“E mesmo incrível."
obrigada por compartilhar o conto conosco !
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