sexta-feira, 12 de junho de 2015

51 – O nadador – J. Cheever

John Cheever, (1912-1982), escritor norte americano nascido em Quincy, Massachussetts, é por muitos considerado como um dos maiores contistas do século 20. Seu conto “O nadador” originalmente publicado no The New Yorker em Julho de 1964, foi depois adaptado ao cinema com Burt Lancaster. É um conto construído com extrema precisão. Nada ali foi colocado ao acaso. Cada paragrafo e cada palavra, vão construindo o inesperado final que obriga o leitor a uma interessante reflexão. 
  
O nadador
John Cheever

Era um daqueles domingos de verão em que todo mundo diz: "Ontem à noite bebi demais." Podiam-se ouvir os fiéis a sussurra-lo ao sair da igreja, ou da boca do próprio padre, a tentar livrar-se da sotaina na sacristia, podia-se ouvir no golfe e na quadra de tênis, ou na reserva natural onde o chefe do grupo Audubon de observadores de pássaros curtia uma tremenda ressaca. "Bebi demais", disse Donald Westerhazy. "Todos bebemos demais", disse Lucinda Merrill. "Deve ter sido o vinho", disse Helen Westerhazy. "Bebi demais daquele clarete."
Passava-se isto na borda da piscina dos Westerhazy. A piscina, alimentada por um poço artesiano com alto teor de ferro, era de um verde pálido. Estava um dia magnífico. A Oeste havia uma densa formação de cúmulos tão parecida com uma cidade vista de longe - da proa de um barco que se aproximasse - que podia ter um nome. Lisboa. Hackensack. O sol estava quente. Neddy Merrill estava sentado junto da piscina, uma mão dentro d’água verde, outra segurando um copo de gin. Era um homem esguio – parecia ter a elegância particular da juventude - e embora estivesse longe de ser novo, nessa manhã descera pelo corrimão e dera um piparote nas costas de bronze da Afrodite de cima da mesa da entrada, enquanto trotava em direção ao cheiro do café na sala de jantar. Poderia ser comparado a um dia de Verão, mais precisamente às últimas horas da tarde, e apesar de não trazer uma raquete de tênis, a impressão que dava era decididamente de juventude, de esportista e de tempo ameno. Tinha estado a nadar e agora respirava profundamente, arquejante como se pudesse engolir pelos pulmões os elementos desse momento, o calor do sol, a intensidade do prazer que sentia. Parecia fluir-lhe tudo para o peito. A casa dele ficava em Bullet Park, cerca de treze quilômetros para Sul, onde as suas quatro lindas filhas já teriam almoçado e deviam estar a jogar tênis. Ocorreu-lhe então que se fizesse um desvio para Sudoeste podia ir a nado para casa.
A vida dele não era uma prisão, e o prazer que esta observação lhe deu não se podia explicar pela evasão que sugeria. Parecia vendo, com olho de cartógrafo, a linha de piscinas, aquele riacho quase subterrâneo que traçava uma curva através da região. Tinha feito uma descoberta, uma contribuição para a geografia moderna; iria dar ao rio o nome de Lucinda, como a mulher. Não era pessoa dada a brincadeiras e não era bobo, mas era decididamente original e tinha uma vaga e modesta ideia de si mesmo como uma figura lendária. O dia estava bonito e pareceu-lhe que nadar uma grande distância podia aumentar e comemorar essa beleza.
Tirou o pulôver que tinha sobre os ombros e mergulhou. Sentia um desprezo inexplicável pelos homens que não se atiravam às piscinas. Nadou num crawl sacudido, respirando ora a cada braçada, ora à quarta braçada e contando, algures no fundo da consciência, o um-dois, um-dois, da batida dos pés. Não era a braçada indicada para longas distâncias, mas o treino da natação tinha imposto ao esporte a sela de alguns costumes e nesta parte do mundo o crawl era um costume. Ser abraçado e sustentado pela água verde-clara era menos um prazer, dava a impressão, do que o reassumir de uma condição natural, e teria gostado de nadar sem calções, mas isso não era possível, considerando o seu projeto. Içou-se para a borda no canto oposto – nunca usava a escada - e afastou-se pelo gramado. Quando Lucinda perguntou onde ia, disse que ia para casa a nado.
Os únicos mapas e roteiros que tinha de seguir eram de memória ou imaginários, mas suficientemente claros. Primeiro havia os Grahams, os Hammers, os Lears, os Howlands, e os Crosscups. Atravessava Ditmar Street para os Bunkers e seguia, depois de uma curta corrida, para os Levys, os Welchers, e a piscina pública de Lancaster. Depois havia os Hallorans, os Sachses, os Biswangers, Shirley Adams, os Gilmartins, e os Clydes. O dia estava magnífico, e viver num mundo tão generosamente fornecido de água parecia-lhe um verdadeiro dom, uma dádiva. Sentia o coração ligeiro e atravessou a grama correndo. Voltar a casa por uma rota desacostumada fazia-o sentir-se um peregrino, um explorador, um homem com um destino, e sabia que iria encontrar amigos ao longo de todo o caminho; as margens do Rio Lucinda estariam cobertas de amigos.
Atravessou uma sebe que separava o terreno dos Westerhazy do dos Grahams, passou debaixo de umas macieiras em flor, seguiu até onde estavam a bomba e o filtro e foi dar à piscina dos Grahams. "Olha o Neddy", disse a Sra. Graham, "que bela surpresa. Passei a manhã ao telefone a ver se te encontrava. Vai, deixa-me arranjar-te uma bebida." Percebeu e não, como qualquer explorador, que os costumes e tradições de hospitalidade dos nativos tinham de ser tratados com diplomacia se realmente quisesse chegar ao seu destino. Não queria deixar confusos os Grahams nem parecer indelicado, mas não tinha tempo para se demorar ali. Nadou a piscina de uma ponta à outra e foi se encontrar com eles ao sol, sendo salvo, minutos depois, pela chegada de dois carros cheios de amigos de Connecticut. No meio do alarido do encontro conseguiu escapar-se. Desceu pela frente da casa dos Grahams, passou por cima de uma sebe com espinhos e atravessou um terreno vago para os Hammers. A Sra. Hammer, levantando os olhos das roseiras, viu-o passar a nado embora não percebesse muito bem quem era. Os Lears ouviram-no passar a espadanar pelas janelas abertas da sala de estar. Os Howlands e os Crosscups estavam fora. Depois de sair dos Howlands atravessou Ditmar Street e dirigiu-se aos Bunkers, onde podia ouvir, mesmo àquela distância, o ruído de uma festa.
A água refratava o som das vozes e dos risos e parecia deixá-lo suspenso no ar. A piscina dos Bunkers ficava numa elevação e teve de subir umas escadas até um terraço onde uns vinte e cinco ou trinta homens e mulheres estavam bebendo. A única pessoa na água era Rusty Towers, que estava num colchão de inflável. Oh, como eram boas e verdejantes as margens do Rio Lucinda! Homens e mulheres prósperos reunidos junto às águas cor de safira, enquanto empregados de casaco branco lhes serviam gin gelado. Nos ares, um pequeno avião De Haviland dava voltas e voltas no céu com o que parecia a alegria de uma criança num balanço. Ned sentiu uma afeição passageira pela cena, um enternecimento por aquele convívio, como se fosse uma coisa que pudesse tocar. Ao longe ouviu um trovão. Assim que Enid Bunker o viu, começou a berrar: "Oh, olha quem está aqui! Mas que bela surpresa! Quando a Lucinda me disse que não podias vir, quase morri." Abriu caminho até ele pelo meio do grupo, e depois de trocarem um beijo levou-o até ao bar, um percurso interrompido por ter de beijar outras oito ou dez mulheres e apertar a mão a outros tantos homens. Um barman sorridente que tinha visto numas cem festas serviu-lhe um gin com água tônica e Ned deixou-se ficar um pouco junto ao bar, ansioso por não se deixar segurar em alguma conversa que lhe pudesse atrasar a travessia. Quando parecia estar prestes a ficar cercado, deu um mergulho e nadou junto à borda para evitar colidir com o colchão de Rusty. Na ponta oposta da piscina passou pelos Tomlisons com um grande sorriso e seguiu em passo de corrida pela trilha do jardim. Os gravetos cortavam-lhe os pés, mas era a única coisa desagradável. A festa estava confinada à piscina, e à medida que avançava em direção à casa, ouvia o som vivo e aquático das vozes mais apagado, ouvia o ruído de um rádio na cozinha dos Bunkers, onde alguém escutava um jogo de beisebol. Domingo à tarde. Esgueirou-se pelo meio dos carros estacionados e desceu pelo caminho gramado até Alewives Lane. Não queria que o vissem na estrada de shorts, mas não havia trânsito e percorreu a curta distância que o separava do caminho de entrada dos Levys, assinalado com uma tabuleta de PROPRIEDADE PRIVADA e um tubo verde para o New York Times. Todas as portas e janelas da casa enorme estavam abertas mas não havia sinais de vida; nem sequer um cão latindo. Deu a volta à casa até à piscina e viu que os Levys não tinham saído há muito tempo. Havia copos, garrafas e pratos de nozes em cima de uma mesa junto ao lado fundo da piscina, onde havia um vestiário ou um pavilhão, decorado com lanternas japonesas. Depois de ter nadado uma piscina, pegou num copo e serviu-se de uma bebida. Era a sua quarta ou quinta bebida e nadara cerca de metade do comprimento do Rio Lucinda. Sentia-se cansado, limpo,  contente nesse momento por estar só; contente com tudo.
Ia cair uma tempestade. A formação de cúmulos - a tal cidade - subira e estava mais escura, e enquanto estava ali sentado voltou a ouvir o ribombar do trovão. O De Haviland girava ainda nos ares e Ned teve a impressão de que quase podia ouvir o piloto a rir de prazer na tarde; mas quando se ouviu um novo trovão largou para casa. Soou o apito de um trem e perguntou-se que horas seriam. Quatro? Cinco? Imaginou o salão da estação àquela hora, onde um empregado de mesa, o smoking sob um avental de plástico, um anão com um ramo de flores embrulhado em jornal, uma mulher que tinha estado a chorar, estariam á espera do trem suburbano. De repente começou a escurecer; foi nesse momento que os pássaros minúsculos deram a impressão de mudar o seu canto para um qualquer agudo e reconhecível anúncio da aproximação da tempestade. Ouviu então o tênue ruído de água a cair da copa de um carvalho atrás dele, como se alguém tivesse aberto uma torneira. E então um ruído de fontes chegou-lhe das copas de todas as árvores altas. Porque gostaria de tempestades, que significado teria a sua excitação quando as portas se escancaravam e os ventos da chuva irrompiam violentamente pelas escadas acima, porque lhe teria a simples tarefa de fechar as janelas de uma casa antiga parecido necessária e urgente, porque tinham para ele as primeiras notas líquidas de uma tempestade o som inconfundível das boas notícias, das novas festivas e alegres ? Depois houve uma explosão, um cheiro a pólvora, e a chuva fustigou as lanternas japonesas que a Sra. Levy tinha comprado em Quioto há dois anos, ou fora ainda no ano antes desse?
Deixou-se ficar no pavilhão dos Levys até passar a tempestade. A chuva arrefecera o ar e Ned estremeceu. A força do vento tinha despido um plátano das folhas vermelhas e amarelas, espalhando-as pela grama e a água. Era em fins de Junho, pelo que a ·árvore devia estar com míldio, no entanto sentiu uma tristeza estranha com este sinal do Outono. Retesou os ombros, esvaziou o copo, e encaminhou-se para a piscina dos Welchers. Isto significava atravessar o picadeiro dos Lindleys e ficou admirado ao vê-lo cheio de mato e todos os obstáculos desmontados. Perguntou-se se os Lindleys teriam vendido os cavalos ou se teriam ido passar fora o Verão e deixado os animais em pensão. Pareceu-lhe lembrar-se de ter ouvido qualquer coisa sobre os Lindleys e os cavalos, mas a lembrança era confusa. Prosseguiu então, descalço pela grama molhada, para os Welchers, onde descobriu que a piscina estava seca.
Esta quebra na sua corrente de água desapontou-o de um modo absurdo, e sentiu-se como um explorador que procura uma nascente torrencial e encontra um regato morto. Sentia-se desapontado e ludibriado. Era bastante comum ir para fora no Verão, mas nunca ninguém esvaziava a piscina. Os Welchers tinham claramente ido embora. Os apetrechos da piscina estavam dobrados, empilhados e cobertos com uma lona. O vestiário estava fechado á chave. Todas as janelas da casa estavam fechadas, e quando deu a volta até á entrada viu uma tabuleta de VENDE-SE pregada numa árvore. Quando fora a última vez que ouvira falar nos Welchers - ou melhor, quando fora a última vez que ele e Lucinda tinham recusado um convite deles para jantar? Parecia ter sido apenas há uma semana ou à volta disso. Será que a memória lhe começava a falhar ou ser· que a tinha disciplinado de tal modo na repressão dos fatos desagradáveis que acabara por lhe atingir o sentido da verdade? E então ouviu ao longe o som de um jogo de tênis. Isto animou-o, apagou todas as suas apreensões, permitindo-lhe olhar o céu carregado e o frio do ar com indiferença. Este era o dia em que Neddy Merrill tinha atravessado a nado o distrito. Grande dia! Encaminhou-se então para a sua passagem mais difícil.
Quem tivesse ido dar uma volta de carro nessa tarde de domingo, tê-lo-ia visto, praticamente nu, parado na beira da Estrada 424, à espera de uma oportunidade para atravessar. Poderiam ficar a pensar se teria sido vítima de alguma brincadeira de mau gosto, se o carro teria quebrado, ou se era simplesmente algum maluco. Ali postado, descalço no meio dos detritos da autoestrada - latas de cerveja, papéis e remendos de borracha – exposto ao ridículo, tinha um ar patético. Sabia desde o começo que isto fazia parte da travessia - figurava nos seus mapas - mas confrontado com as filas de trânsito, contorcendo-se na luz estival, percebeu não estar preparado. Riam-se dele, faziam chacota, atiraram-lhe uma lata de cerveja, e sentia-se sem dignidade nem disposição para enfrentar a situação. Podia ter voltado para trás, para os Westerhazys, onde Lucinda ainda devia estar sentada ao sol. Não tinha assinado nada, prometido nada, nem feito qualquer juramento, nem sequer a si próprio. Acreditando como acreditava que toda a teimosia humana era sensível ao bom-senso, por que era incapaz de voltar para trás? Por que estava ele determinado a completar a travessia mesmo que isso significasse pôr a vida em perigo? A partir de que altura esta brincadeira, esta piada, esta criancice, se tinha tornado numa coisa séria? Não podia voltar para trás, não conseguia sequer lembrar-se com clareza da água verde dos Westerhazys, do sentimento de inalar os elementos do dia, as vozes amigas e calmas dizendo que tinham bebido demais. No espaço de uma hora, mais ou menos, tinha coberto uma distância que tornara o regresso impossível.
Um homem de idade, rodando pela auto-estrada a vinte quilômetros por hora, permitiu-lhe atingir o meio da estrada, onde havia um ilha de grama. Ficava agora exposto à zombaria do trânsito que seguia para Norte, mas ao fim de dez ou quinze minutos conseguiu atravessar. Daqui não tinha de caminhar muito para chegar ao Centro Recreativo no limite da aldeia de Lancaster, onde havia alguns campos de handebol e uma piscina pública.
O efeito da água nas vozes, a ilusão de brilho e de suspense, era o mesmo que nos Bunkers, mas os sons aqui eram mais altos, ásperos, e havia mais guinchos, e assim que entrou no recinto apinhado deparou com o regulamento. "TODOS OS BANHISTAS DEVEM TOMAR UMA DUCHA ANTES DE ENTRAR NA PISCINA. TODOS OS BANHISTAS DEVEM PASSAR PELO LAVA-PÉS. TODOS OS BANHISTAS DEVEM USAR O CRACHÁ DE IDENTIFICAÇAO." Tomou uma ducha, andou por uma solução turva e acre, e abriu caminho até à borda da piscina. Tresandava a cloro e dava-lhe a impressão de um tanque. Dois salva-vidas em duas torres, a intervalos que pareciam regulares, sopravam apitos de polÌcia e descompunham os banhistas através de alto-falantes. Neddy lembrou-se com saudade da água cor de safira dos Bunkers e pensou que se calhar ia ficar contaminado - arriscando a prosperidade e o encanto - ao nadar naquele caldo, mas lembrou-se que era um explorador, um peregrino, e que isto não passava de uma curva estagnada no Rio Lucinda. Mergulhou, com um franzir desgostado, no cloro e viu-se obrigado a nadar com a cabeça fora da água para evitar colisões, mas mesmo assim não deixaram de esbarrar nele, de o salpicar, de o empurrar. Quando atingiu a parte baixa, ambos os guardas estavam aos berros: "Eh! Você, você sem crachá de identificação, saia já da piscina." Obedeceu, mas não tinham maneira de o perseguir e ele continuou, por entre cheiro de bronzeador e cloro, pela vedação de rede e passou os campos de handebol. Atravessando a estrada entrou na parte arborizada da propriedade dos Hallorans. A mata não tinha sido limpa, o caminho era traiçoeiro e difícil até chegar ao gramado e à sebe aparada de faia que rodeava a piscina.
Os Hallorans eram amigos, um casal idoso com uma fortuna enorme que parecia deliciar-se com a suspeita de que pudessem ser comunistas. Eram devotados reformistas, mas não eram comunistas, e no entanto, sempre que os acusavam, como por vezes acontecia, de subversão, dava a impressão de que isso lhes agradava e os entusiasmava. A sebe de faia estava amarela e Ned pensou que deveria estar com mÌldio, tal como o plátano dos Levys. Gritou olé, olé, para avisar os Hollorans da sua chegada, para atenuar a invasão da sua privacidade. Os Hallorans, por razıes que nunca lhe tinham sido explicadas, não usavam maiôs. Nem havia, de fato, explicações a dar. O nudismo era um aspecto do seu inflexível zelo reformista e Ned tirou educadamente os shorts antes de passar pela abertura na sebe.
A Sra. Halloran, uma mulher corpulenta de cabelos brancos e rosto sereno, estava lendo o Times. O Sr. Holloran estava a retirar folhas da piscina com um apanhador. Não pareciam surpreendidos ou desagradados por o verem. A piscina deles era talvez a mais antiga da região, um retângulo em alvenaria, alimentada por um riacho. Não tinha filtro nem bomba e a água era do dourado opaco da torrente.
– Estou atravessando o Condado a nado - disse Ned.
– Sim? Não sabia que era possível - exclamou A Sra. Halloran.
– Bem, já consegui vir desde os Westerhazys - disse Ned. - Devem ser uns seis quilômetros e tal.
Deixou os shorts junto ao lado fundo da piscina, dirigiu-se à parte baixa e fez a distância a nado. Quando estava saindo da água ouviu a Sra. Halloran dizer: "Ficamos imensamente tristes com todas as suas desgraças, Neddy."
– As minhas desgraças? – perguntou Ned. – Não sei do que está falando.
  Então, mas ouvimos dizer que vendeu a casa e que as suas pobres filhas...
– Não me lembro de ter vendido a casa – disse Ned – e as meninas estão em casa.
 Pois - suspirou a Sra. Halloran – Pois é.... –  A voz dela enchia o ar de uma melancolia inesperada e Ned respondeu com vivacidade:
– Obrigado pelo mergulho.
– Então, bom passeio – disse a Sra. Halloran.
Passando a sebe, vestiu os shorts. Estavam largos e Ned perguntou-se se, no espaço de uma tarde, poderia ter perdido algum peso. Estava com frio e cansado e os Hallorans nus e a água escura deles tinham-no deprimido.
Tanto tempo a nadar era demasiado para as suas forças, mas como poderia tê-lo adivinhado, ao escorregar pelo corrimão nessa manhã ou sentado ao sol em casa dos Westerhazys? Sentia os braços sem forças. As pernas pareciam de borracha e doíam-lhe nas articulações. O pior era o frio nos ossos e o pressentimento de que não voltariam a aquecer. As folhas caíam á sua volta e sentiu o cheiro de fumaça de lenha no vento. Quem estaria fazendo fogueiras nesta época do ano?

Precisava de uma bebida. Um uísque havia de o aquecer, de lhe levantar o moral, aguentá-lo durante a última parte da jornada, renovando-lhe o sentimento de que era original e valoroso atravessar o distrito a nado. Os nadadores do Canal bebiam brandy. Precisava de um estimulante. Atravessou o gramado em frente da casa dos Hallorans e foi por uma vereda que descia até onde eles tinham construÌdo uma casa para a filha única, Helen, e o marido, Eric Sachs. A piscina dos Sachs era pequena e Ned encontrou lá Helen e o marido.
  Oh, Neddy – disse Helen –  Almoçou em casa da mãe?
– Não foi bem isso – disse Ned. – Passei para ver os teus pais. – Pareceu-lhe ser uma explicação suficiente –  Lamento imenso uma intrusão destas, mas apanhei um resfriado e pensei se me dariam uma bebida.
– Pois, teria muito prazer – disse Helen – mas nesta casa nunca mais houve nada que se bebesse desde a operação do Eric. Já lá vão três anos.
Será que estava perdendo a memória, será que a sua capacidade para ignorar fatos penosos fizera com que se esquecesse de que tinha vendido a casa, que as filhas estavam com problemas, e que o amigo tinha estado doente? Os olhos desviaram-se do rosto de Eric para o seu abdomem, onde viu três cicatrizes apagadas, suturadas, duas delas com pelo menos trinta centímetros de comprimento. O umbigo tinha desaparecido, e como seria, pensou Neddy, quando a mão tateante que às três da manhã avalia o que recebemos da natureza encontrasse uma barriga sem umbigo, sem nenhuma ligação ao nascimento, uma tal quebra na sucessão?
– Tenho a certeza de que encontra uma bebida nos Biswangers – disse Helen.
– Há uma festa enorme. Ouve-se daqui. Escute!
Helen levantou a cabeça e do outro lado da estrada, dos gramados, dos jardins, do arvoredo, dos campos, Ned ouviu de novo o animado som das vozes por cima da água. "Bem, vou-me molhar", disse ele, continuando a sentir que não tinha liberdade de escolha quanto aos seus meios de viajar. Mergulhou na água fria dos Sachs e, arquejante, quase se afogando, atravessou a piscina de uma ponta à outra. "Lucinda e eu queremos imenso vê-los – disse ele por cima do ombro, o rosto voltado para casa dos Biswangers. – Lamentamos ter deixado passar tanto tempo e vamos telefonar muito em breve."
Atravessou alguns campos até chegar a casa dos Biswangers e aos ruídos de farra que de lá vinham. Haviam de sentir que era uma honra dar-lhe uma bebida, seria um prazer darem-lhe uma bebida. Os Biswangers convidavam-no para jantar, a ele e Lucinda, quatro vezes por ano, com seis semanas de antecedência. Eram sempre rejeitados e mesmo assim continuavam a mandar-lhes convites, sem querer compreender as rígidas e pouco democráticas realidades da sua sociedade. Eram o tipo de pessoas que discutem o preço das coisas nas recepções, que trocam dicas sobre a Bolsa durante o jantar, e que depois do jantar contam anedotas porcas sem olhar quem está por perto. Não pertenciam ao círculo de Ned - nem sequer estavam na lista de cartões de Natal de Lucinda. Dirigiu-se à piscina deles com um sentimento de indiferença, de benevolência, e alguma inquietação, uma vez que parecia estar escurecendo, quando estes eram os dias mais compridos do ano. A festa, quando entrou, estava animada e com muita gente. Grace Biswanger era o tipo de anfitriã que convidava o oculista, o veterinário, o agente imobiliário, e o dentista. Não havia ninguém a nadar e o crepúsculo, refletindo-se na água da piscina, tinha uma claridade de inverno. Havia um bar e Ned dirigiu-se para lá. Quando Grace Biswanger o avistou veio ter com ele, não amistosamente como tinha todo o direito de esperar, mas sim com ar belicoso.
 Olha, nesta festa há de tudo – disse ela em voz alta – até mesmo penetras.
Não que lhe pudesse incomodar - tal hipótese estava fora de questão e por isso não se encolheu.
– E como penetra – perguntou delicadamente – tenho direito a bebida?"
  Faça como entender – disse ela. – Não me parece que ligue muito a convites.
Virou-lhe as costas e Ned dirigiu-se ao bar e pediu um uísque. O barman serviu-o, mas serviu-o com maus modos. Ned pertencia a um universo onde os empregados respeitavam os escalões sociais e ser enxovalhado por um tipo que era barman de meio espediente significava que tinha sofrido alguma perda de estima social. Ou talvez o homem fosse novo e mal informado. E então ouviu Grace dizer às suas costas: "Perderam tudo de um ia para o outro – ficaram só com o ordenado – e ele apareceu aqui bêbado um domingo e pediu cinco mil dólares emprestados..." Aquela estava sempre a falar em dinheiro. Pior do que comer ervilhas com faca. Mergulhou na piscina, nadou de uma ponta à outra e foi-se embora.
A piscina seguinte na lista, a antepenúltima, era a da sua antiga amante, Shirley Adams. Se em casa dos Biswangers sofrera algumas feridas, seriam saradas aqui. O amor - a intimidade sexual, na verdade - era o supremo elixir, o analgésico, a pílula de cores alegres capaz de trazer de novo a Primavera à sua vida, a alegria de viver ao seu coração. Tinham tido um caso na semana passada, no mês passado, no ano passado. Não conseguia lembrar-se. Tinha sido ele a romper, ele é que saíra por cima, e transpôs a cancela do muro que rodeava a piscina sem sequer lhe aflorar alguma sombra à sua autoconfiança. Parecia-lhe de certo modo ser a sua própria piscina, pois que o amante, especialmente o amante ilícito, dispõe dos bens da amante com uma autoridade que o sagrado matrimônio desconhece. Shirley estava lá, o cabelo cor de cobre, mas a sua figura, na borda da água luminosa, cerúlea, não despertou nele nenhuma lembrança profunda. Tinha sido, pensou, um caso ligeiro, embora ela tivesse chorado quando ele rompeu. Pareceu-lhe ficar confusa ao vê-lo e Ned perguntou-se se ainda estaria magoada. Será que ela, Deus queira que não, iria chorar outra vez?
– Que é que que você quer? – perguntou ela.
– Estou a atravessar o Condado a nado.
  Meu Deus. Será que nunca mais cresces?
– O que está acontecendo?
 Se veio pedir dinheiro - disse ela - não te dou nem mais um centavo.
 Podia me oferecer uma bebida.
– Podia, mas não ofereço. Não estou só.
  Bem, então vou andando.
Mergulhou e atravessou a piscina, mas quando tentou içar-se para a borda apercebeu-se de ficara sem força nos braços e nos ombros e esbracejou até às escadas, subindo-as para sair. Olhando por cima do ombro viu, no vestiário iluminado, um homem novo. Ao sair para a grama escura sentiu o cheiro dos crisântemos ou malmequeres - um desses teimosos aromas outonais - no ar da noite, forte como um gás. Levantando os olhos, viu que as estrelas já tinham surgido, mas por que tinha a impressão de estar vendo Andrômeda, Cefeu e a Cassiopéia? Onde estavam as constelações de Junho? Começou a chorar.
Era provavelmente a primeira vez em sua vida de adulto que chorava, e seguramente a primeira vez na vida que se tinha sentido tão perdido, enregelado, cansado e confuso. Não conseguia entender a grosseria do barman ou a brusquidão de uma amante que tivera ajoelhada aos seus pés e lhe molhara de lágrimas as calças. Tinha nadado demais, tinha estado imerso demasiado tempo, e o nariz e a garganta doíam-lhe por causa da água. Precisava de uma bebida, de um pouco de companhia, e algumas roupas lavadas e secas, e embora pudesse ir diretamente pela estrada para casa, prosseguiu em direção à piscina dos Gilmartins. Aqui, pela primeira vez na sua vida, não mergulhou, descendo antes a escada para as águas gélidas e nadou de lado, sem jeito, uma coisa que devia ter aprendido em rapaz. Cambaleava de fadiga ao caminhar para casa dos Clydes e esbracejou a todo o comprimento da piscina deles, detendo-se várias vezes com a mão na borda para descansar. Subiu pela escada e perguntou a si próprio se teria forças para chegar a casa. Tinha feito o que queria, tinha atravessado o Condado a nadar, mas estava tão aturdido de cansaço que o triunfo lhe surgia vago. Curvado, segurando-se às estacas da cerca como apoio, subiu o caminho da sua própria casa.

Estava tudo às escuras. Seria assim tão tarde que já estavam todos deitados? Será que Lucinda tinha ficado em casa dos Westerhazys para jantar? E que as meninas tinham ido se encontrar com ela ou tinham ido a qualquer outro lugar? Então não tinham combinado, como faziam todos os domingos, não aceitar nenhum convite e ficar em casa? Experimentou as portas da garagem para ver que carros estavam, mas as portas estavam fechadas à chave e as mãos ficaram-lhe cheias da ferrugem dos puxadores. Dirigindo-se a casa, viu que a violência da tempestade tinha desprendido uma calha. Pendia agora por cima da porta de entrada como uma vareta de guarda-chuva, mas podia repará-la na manhã seguinte. A casa estava fechada, e Ned pensou que o estúpido do cozinheiro ou a estúpida da empregada deviam ter fechado tudo à chave até que se lembrou que há muito tempo não tinham cozinheiro nem empregada. Gritou, bateu à porta, tentou força-la com o ombro, e então, espreitando pela janela, viu que a casa estava vazia.

2 comentários:

  1. Fiquei impressionado e encantado com este blog. Obrigado. Este conto de Cheever é realmente deprimente para quem teve algum parente próximo atacado pelo Demônio ALGOL...

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