John Cheever, (1912-1982), escritor norte americano nascido em Quincy,
Massachussetts, é por muitos considerado como um dos maiores contistas do século
20. Seu conto “O nadador” originalmente publicado no The New Yorker em Julho de
1964, foi depois adaptado ao cinema com Burt Lancaster. É um conto construído com
extrema precisão. Nada ali foi colocado ao acaso. Cada paragrafo e cada
palavra, vão construindo o inesperado final que obriga o leitor a uma
interessante reflexão.
O nadador
John Cheever
Era um daqueles domingos de verão em que todo mundo
diz: "Ontem à noite bebi demais." Podiam-se ouvir os fiéis a sussurra-lo
ao sair da igreja, ou da boca do próprio padre, a tentar livrar-se da sotaina
na sacristia, podia-se ouvir no golfe e na quadra de tênis, ou na reserva
natural onde o chefe do grupo Audubon de observadores de pássaros curtia uma
tremenda ressaca. "Bebi demais", disse Donald Westerhazy. "Todos
bebemos demais", disse Lucinda Merrill. "Deve ter sido o vinho",
disse Helen Westerhazy. "Bebi demais daquele clarete."
Passava-se isto na borda da piscina dos Westerhazy. A
piscina, alimentada por um poço artesiano com alto teor de ferro, era de um
verde pálido. Estava um dia magnífico. A Oeste havia uma densa formação de
cúmulos tão parecida com uma cidade vista de longe - da proa de um barco que se
aproximasse - que podia ter um nome. Lisboa. Hackensack. O sol estava quente.
Neddy Merrill estava sentado junto da piscina, uma mão dentro d’água verde,
outra segurando um copo de gin. Era um homem esguio – parecia ter a elegância
particular da juventude - e embora estivesse longe de ser novo, nessa manhã
descera pelo corrimão e dera um piparote nas costas de bronze da Afrodite de
cima da mesa da entrada, enquanto trotava em direção ao cheiro do café na sala
de jantar. Poderia ser comparado a um dia de Verão, mais precisamente às últimas
horas da tarde, e apesar de não trazer uma raquete de tênis, a impressão que
dava era decididamente de juventude, de esportista e de tempo ameno. Tinha
estado a nadar e agora respirava profundamente, arquejante como se pudesse
engolir pelos pulmões os elementos desse momento, o calor do sol, a intensidade
do prazer que sentia. Parecia fluir-lhe tudo para o peito. A casa dele ficava
em Bullet Park, cerca de treze quilômetros para Sul, onde as suas quatro lindas
filhas já teriam almoçado e deviam estar a jogar tênis. Ocorreu-lhe então que
se fizesse um desvio para Sudoeste podia ir a nado para casa.
A vida dele não era uma prisão, e o prazer que esta
observação lhe deu não se podia explicar pela evasão que sugeria. Parecia
vendo, com olho de cartógrafo, a linha de piscinas, aquele riacho quase
subterrâneo que traçava uma curva através da região. Tinha feito uma
descoberta, uma contribuição para a geografia moderna; iria dar ao rio o nome
de Lucinda, como a mulher. Não era pessoa dada a brincadeiras e não era bobo,
mas era decididamente original e tinha uma vaga e modesta ideia de si mesmo
como uma figura lendária. O dia estava bonito e pareceu-lhe que nadar uma
grande distância podia aumentar e comemorar essa beleza.
Tirou o pulôver que tinha sobre os ombros e mergulhou.
Sentia um desprezo inexplicável pelos homens que não se atiravam às piscinas.
Nadou num crawl sacudido, respirando ora a cada braçada, ora à quarta braçada e
contando, algures no fundo da consciência, o um-dois, um-dois, da batida dos pés.
Não era a braçada indicada para longas distâncias, mas o treino da natação tinha
imposto ao esporte a sela de alguns costumes e nesta parte do mundo o crawl era
um costume. Ser abraçado e sustentado pela água verde-clara era menos um
prazer, dava a impressão, do que o reassumir de uma condição natural, e teria
gostado de nadar sem calções, mas isso não era possível, considerando o seu
projeto. Içou-se para a borda no canto oposto – nunca usava a escada - e
afastou-se pelo gramado. Quando Lucinda perguntou onde ia, disse que ia para
casa a nado.
Os únicos mapas e roteiros que tinha de seguir eram de
memória ou imaginários, mas suficientemente claros. Primeiro havia os Grahams,
os Hammers, os Lears, os Howlands, e os Crosscups. Atravessava Ditmar Street para
os Bunkers e seguia, depois de uma curta corrida, para os Levys, os Welchers, e
a piscina pública de Lancaster. Depois havia os Hallorans, os Sachses, os
Biswangers, Shirley Adams, os Gilmartins, e os Clydes. O dia estava magnífico, e
viver num mundo tão generosamente fornecido de água parecia-lhe um verdadeiro
dom, uma dádiva. Sentia o coração ligeiro e atravessou a grama correndo. Voltar
a casa por uma rota desacostumada fazia-o sentir-se um peregrino, um
explorador, um homem com um destino, e sabia que iria encontrar amigos ao longo
de todo o caminho; as margens do Rio Lucinda estariam cobertas de amigos.
Atravessou uma sebe que separava o terreno dos
Westerhazy do dos Grahams, passou debaixo de umas macieiras em flor, seguiu até
onde estavam a bomba e o filtro e foi dar à piscina dos Grahams. "Olha o
Neddy", disse a Sra. Graham, "que bela surpresa. Passei a manhã ao
telefone a ver se te encontrava. Vai, deixa-me arranjar-te uma bebida."
Percebeu e não, como qualquer explorador, que os costumes e tradições de
hospitalidade dos nativos tinham de ser tratados com diplomacia se realmente
quisesse chegar ao seu destino. Não queria deixar confusos os Grahams nem
parecer indelicado, mas não tinha tempo para se demorar ali. Nadou a piscina de
uma ponta à outra e foi se encontrar com eles ao sol, sendo salvo, minutos depois,
pela chegada de dois carros cheios de amigos de Connecticut. No meio do alarido
do encontro conseguiu escapar-se. Desceu pela frente da casa dos Grahams,
passou por cima de uma sebe com espinhos e atravessou um terreno vago para os
Hammers. A Sra. Hammer, levantando os olhos das roseiras, viu-o passar a nado
embora não percebesse muito bem quem era. Os Lears ouviram-no passar a
espadanar pelas janelas abertas da sala de estar. Os Howlands e os Crosscups
estavam fora. Depois de sair dos Howlands atravessou Ditmar Street e dirigiu-se
aos Bunkers, onde podia ouvir, mesmo àquela distância, o ruído de uma festa.
A água refratava o som das vozes e dos risos e parecia
deixá-lo suspenso no ar. A piscina dos Bunkers ficava numa elevação e teve de
subir umas escadas até um terraço onde uns vinte e cinco ou trinta homens e
mulheres estavam bebendo. A única pessoa na água era Rusty Towers, que estava
num colchão de inflável. Oh, como eram boas e verdejantes as margens do Rio Lucinda!
Homens e mulheres prósperos reunidos junto às águas cor de safira, enquanto
empregados de casaco branco lhes serviam gin gelado. Nos ares, um pequeno avião
De Haviland dava voltas e voltas no céu com o que parecia a alegria de uma criança
num balanço. Ned sentiu uma afeição passageira pela cena, um enternecimento por
aquele convívio, como se fosse uma coisa que pudesse tocar. Ao longe ouviu um
trovão. Assim que Enid Bunker o viu, começou a berrar: "Oh, olha quem está
aqui! Mas que bela surpresa! Quando a Lucinda me disse que não podias vir,
quase morri." Abriu caminho até ele pelo meio do grupo, e depois de
trocarem um beijo levou-o até ao bar, um percurso interrompido por ter de
beijar outras oito ou dez mulheres e apertar a mão a outros tantos homens. Um
barman sorridente que tinha visto numas cem festas serviu-lhe um gin com água
tônica e Ned deixou-se ficar um pouco junto ao bar, ansioso por não se deixar
segurar em alguma conversa que lhe pudesse atrasar a travessia. Quando parecia
estar prestes a ficar cercado, deu um mergulho e nadou junto à borda para
evitar colidir com o colchão de Rusty. Na ponta oposta da piscina passou pelos
Tomlisons com um grande sorriso e seguiu em passo de corrida pela trilha do
jardim. Os gravetos cortavam-lhe os pés, mas era a única coisa desagradável. A
festa estava confinada à piscina, e à medida que avançava em direção à casa,
ouvia o som vivo e aquático das vozes mais apagado, ouvia o ruído de um rádio
na cozinha dos Bunkers, onde alguém escutava um jogo de beisebol. Domingo à
tarde. Esgueirou-se pelo meio dos carros estacionados e desceu pelo caminho
gramado até Alewives Lane. Não queria que o vissem na estrada de shorts, mas não
havia trânsito e percorreu a curta distância que o separava do caminho de
entrada dos Levys, assinalado com uma tabuleta de PROPRIEDADE PRIVADA e um tubo
verde para o New York Times. Todas as portas e janelas da casa enorme estavam abertas
mas não havia sinais de vida; nem sequer um cão latindo. Deu a volta à casa até
à piscina e viu que os Levys não tinham saído há muito tempo. Havia copos,
garrafas e pratos de nozes em cima de uma mesa junto ao lado fundo da piscina,
onde havia um vestiário ou um pavilhão, decorado com lanternas japonesas.
Depois de ter nadado uma piscina, pegou num copo e serviu-se de uma bebida. Era
a sua quarta ou quinta bebida e nadara cerca de metade do comprimento do Rio
Lucinda. Sentia-se cansado, limpo, contente
nesse momento por estar só; contente com tudo.
Ia cair uma tempestade. A formação de cúmulos - a tal
cidade - subira e estava mais escura, e enquanto estava ali sentado voltou a
ouvir o ribombar do trovão. O De Haviland girava ainda nos ares e Ned teve a impressão
de que quase podia ouvir o piloto a rir de prazer na tarde; mas quando se ouviu
um novo trovão largou para casa. Soou o apito de um trem e perguntou-se que
horas seriam. Quatro? Cinco? Imaginou o salão da estação àquela hora, onde um
empregado de mesa, o smoking sob um avental de plástico, um anão com um ramo de
flores embrulhado em jornal, uma mulher que tinha estado a chorar, estariam á
espera do trem suburbano. De repente começou a escurecer; foi nesse momento que
os pássaros minúsculos deram a impressão de mudar o seu canto para um qualquer
agudo e reconhecível anúncio da aproximação da tempestade. Ouviu então o tênue ruído
de água a cair da copa de um carvalho atrás dele, como se alguém tivesse aberto
uma torneira. E então um ruído de fontes chegou-lhe das copas de todas as árvores
altas. Porque gostaria de tempestades, que significado teria a sua excitação
quando as portas se escancaravam e os ventos da chuva irrompiam violentamente
pelas escadas acima, porque lhe teria a simples tarefa de fechar as janelas de uma
casa antiga parecido necessária e urgente, porque tinham para ele as primeiras
notas líquidas de uma tempestade o som inconfundível das boas notícias, das
novas festivas e alegres ? Depois houve uma explosão, um cheiro a pólvora, e a
chuva fustigou as lanternas japonesas que a Sra. Levy tinha comprado em Quioto
há dois anos, ou fora ainda no ano antes desse?
Deixou-se ficar no pavilhão dos Levys até passar a
tempestade. A chuva arrefecera o ar e Ned estremeceu. A força do vento tinha
despido um plátano das folhas vermelhas e amarelas, espalhando-as pela grama e
a água. Era em fins de Junho, pelo que a ·árvore devia estar com míldio, no entanto
sentiu uma tristeza estranha com este sinal do Outono. Retesou os ombros,
esvaziou o copo, e encaminhou-se para a piscina dos Welchers. Isto significava
atravessar o picadeiro dos Lindleys e ficou admirado ao vê-lo cheio de mato e
todos os obstáculos desmontados. Perguntou-se se os Lindleys teriam vendido os
cavalos ou se teriam ido passar fora o Verão e deixado os animais em pensão. Pareceu-lhe
lembrar-se de ter ouvido qualquer coisa sobre os Lindleys e os cavalos, mas a
lembrança era confusa. Prosseguiu então, descalço pela grama molhada, para os
Welchers, onde descobriu que a piscina estava seca.
Esta quebra na sua corrente de água desapontou-o de um
modo absurdo, e sentiu-se como um explorador que procura uma nascente
torrencial e encontra um regato morto. Sentia-se desapontado e ludibriado. Era
bastante comum ir para fora no Verão, mas nunca ninguém esvaziava a piscina. Os
Welchers tinham claramente ido embora. Os apetrechos da piscina estavam dobrados,
empilhados e cobertos com uma lona. O vestiário estava fechado á chave. Todas
as janelas da casa estavam fechadas, e quando deu a volta até á entrada viu uma
tabuleta de VENDE-SE pregada numa árvore. Quando fora a última vez que ouvira
falar nos Welchers - ou melhor, quando fora a última vez que ele e Lucinda
tinham recusado um convite deles para jantar? Parecia ter sido apenas há uma
semana ou à volta disso. Será que a memória lhe começava a falhar ou ser· que a
tinha disciplinado de tal modo na repressão dos fatos desagradáveis que acabara
por lhe atingir o sentido da verdade? E então ouviu ao longe o som de um jogo
de tênis. Isto animou-o, apagou todas as suas apreensões, permitindo-lhe olhar
o céu carregado e o frio do ar com indiferença. Este era o dia em que Neddy
Merrill tinha atravessado a nado o distrito. Grande dia! Encaminhou-se então
para a sua passagem mais difícil.
Quem tivesse ido dar uma volta de carro nessa tarde de
domingo, tê-lo-ia visto, praticamente nu, parado na beira da Estrada 424, à
espera de uma oportunidade para atravessar. Poderiam ficar a pensar se teria
sido vítima de alguma brincadeira de mau gosto, se o carro teria quebrado, ou
se era simplesmente algum maluco. Ali postado, descalço no meio dos detritos da
autoestrada - latas de cerveja, papéis e remendos de borracha – exposto ao
ridículo, tinha um ar patético. Sabia desde o começo que isto fazia parte da
travessia - figurava nos seus mapas - mas confrontado com as filas de trânsito,
contorcendo-se na luz estival, percebeu não estar preparado. Riam-se dele,
faziam chacota, atiraram-lhe uma lata de cerveja, e sentia-se sem dignidade nem
disposição para enfrentar a situação. Podia ter voltado para trás, para os
Westerhazys, onde Lucinda ainda devia estar sentada ao sol. Não tinha assinado
nada, prometido nada, nem feito qualquer juramento, nem sequer a si próprio.
Acreditando como acreditava que toda a teimosia humana era sensível ao
bom-senso, por que era incapaz de voltar para trás? Por que estava ele
determinado a completar a travessia mesmo que isso significasse pôr a vida em
perigo? A partir de que altura esta brincadeira, esta piada, esta criancice, se
tinha tornado numa coisa séria? Não podia voltar para trás, não conseguia
sequer lembrar-se com clareza da água verde dos Westerhazys, do sentimento de inalar
os elementos do dia, as vozes amigas e calmas dizendo que tinham bebido demais.
No espaço de uma hora, mais ou menos, tinha coberto uma distância que tornara o
regresso impossível.
Um homem de idade, rodando pela auto-estrada a vinte
quilômetros por hora, permitiu-lhe atingir o meio da estrada, onde havia um
ilha de grama. Ficava agora exposto à zombaria do trânsito que seguia para
Norte, mas ao fim de dez ou quinze minutos conseguiu atravessar. Daqui não
tinha de caminhar muito para chegar ao Centro Recreativo no limite da aldeia de
Lancaster, onde havia alguns campos de handebol e uma piscina pública.
O efeito da água nas vozes, a ilusão de brilho e de
suspense, era o mesmo que nos Bunkers, mas os sons aqui eram mais altos, ásperos,
e havia mais guinchos, e assim que entrou no recinto apinhado deparou com o regulamento.
"TODOS OS BANHISTAS DEVEM TOMAR UMA DUCHA ANTES DE ENTRAR NA PISCINA. TODOS
OS BANHISTAS DEVEM PASSAR PELO LAVA-PÉS. TODOS OS BANHISTAS DEVEM USAR O CRACHÁ
DE IDENTIFICAÇAO." Tomou uma ducha, andou por uma solução turva e acre, e
abriu caminho até à borda da piscina. Tresandava a cloro e dava-lhe a impressão
de um tanque. Dois salva-vidas em duas torres, a intervalos que pareciam
regulares, sopravam apitos de polÌcia e descompunham os banhistas através de
alto-falantes. Neddy lembrou-se com saudade da água cor de safira dos Bunkers e
pensou que se calhar ia ficar contaminado - arriscando a prosperidade e o
encanto - ao nadar naquele caldo, mas lembrou-se que era um explorador, um
peregrino, e que isto não passava de uma curva estagnada no Rio Lucinda.
Mergulhou, com um franzir desgostado, no cloro e viu-se obrigado a nadar com a
cabeça fora da água para evitar colisões, mas mesmo assim não deixaram de
esbarrar nele, de o salpicar, de o empurrar. Quando atingiu a parte baixa,
ambos os guardas estavam aos berros: "Eh! Você, você sem crachá de
identificação, saia já da piscina." Obedeceu, mas não tinham maneira de o
perseguir e ele continuou, por entre cheiro de bronzeador e cloro, pela vedação
de rede e passou os campos de handebol. Atravessando a estrada entrou na parte arborizada
da propriedade dos Hallorans. A mata não tinha sido limpa, o caminho era
traiçoeiro e difícil até chegar ao gramado e à sebe aparada de faia que rodeava
a piscina.
Os Hallorans eram amigos, um casal idoso com uma
fortuna enorme que parecia deliciar-se com a suspeita de que pudessem ser comunistas.
Eram devotados reformistas, mas não eram comunistas, e no entanto, sempre que os
acusavam, como por vezes acontecia, de subversão, dava a impressão de que isso
lhes agradava e os entusiasmava. A sebe de faia estava amarela e Ned pensou que
deveria estar com mÌldio, tal como o plátano dos Levys. Gritou olé, olé, para
avisar os Hollorans da sua chegada, para atenuar a invasão da sua privacidade.
Os Hallorans, por razıes que nunca lhe tinham sido explicadas, não usavam
maiôs. Nem havia, de fato, explicações a dar. O nudismo era um aspecto do seu
inflexível zelo reformista e Ned tirou educadamente os shorts antes de passar
pela abertura na sebe.
A Sra. Halloran, uma mulher corpulenta de cabelos
brancos e rosto sereno, estava lendo o Times. O Sr. Holloran estava a retirar
folhas da piscina com um apanhador. Não pareciam surpreendidos ou desagradados
por o verem. A piscina deles era talvez a mais antiga da região, um retângulo
em alvenaria, alimentada por um riacho. Não tinha filtro nem bomba e a água era
do dourado opaco da torrente.
– Estou atravessando o Condado a nado - disse Ned.
– Sim? Não sabia que era possível - exclamou A Sra.
Halloran.
– Bem, já consegui vir desde os Westerhazys - disse
Ned. - Devem ser uns seis quilômetros e tal.
Deixou os shorts junto ao lado fundo da piscina,
dirigiu-se à parte baixa e fez a distância a nado. Quando estava saindo da água
ouviu a Sra. Halloran dizer: "Ficamos imensamente tristes com todas as
suas desgraças, Neddy."
– As minhas desgraças? – perguntou Ned. – Não sei do
que está falando.
– Então, mas
ouvimos dizer que vendeu a casa e que as suas pobres filhas...
– Não me lembro de ter vendido a casa – disse Ned – e
as meninas estão em casa.
– Pois -
suspirou a Sra. Halloran – Pois é.... – A voz dela enchia o ar de uma melancolia
inesperada e Ned respondeu com vivacidade:
– Obrigado pelo mergulho.
– Então, bom passeio – disse a Sra. Halloran.
Passando a sebe, vestiu os shorts. Estavam largos e
Ned perguntou-se se, no espaço de uma tarde, poderia ter perdido algum peso.
Estava com frio e cansado e os Hallorans nus e a água escura deles tinham-no
deprimido.
Tanto tempo a nadar era demasiado para as suas forças,
mas como poderia tê-lo adivinhado, ao escorregar pelo corrimão nessa manhã ou
sentado ao sol em casa dos Westerhazys? Sentia os braços sem forças. As pernas
pareciam de borracha e doíam-lhe nas articulações. O pior era o frio nos ossos
e o pressentimento de que não voltariam a aquecer. As folhas caíam á sua volta
e sentiu o cheiro de fumaça de lenha no vento. Quem estaria fazendo fogueiras
nesta época do ano?
Precisava de uma bebida. Um uísque havia de o aquecer,
de lhe levantar o moral, aguentá-lo durante a última parte da jornada,
renovando-lhe o sentimento de que era original e valoroso atravessar o distrito
a nado. Os nadadores do Canal bebiam brandy. Precisava de um estimulante.
Atravessou o gramado em frente da casa dos Hallorans e foi por uma vereda que
descia até onde eles tinham construÌdo uma casa para a filha única, Helen, e o marido,
Eric Sachs. A piscina dos Sachs era pequena e Ned encontrou lá Helen e o
marido.
– Oh, Neddy –
disse Helen – Almoçou em casa da mãe?
– Não foi bem isso – disse Ned. – Passei para ver os
teus pais. – Pareceu-lhe ser uma explicação suficiente – Lamento imenso uma intrusão destas, mas
apanhei um resfriado e pensei se me dariam uma bebida.
– Pois, teria muito prazer – disse Helen – mas nesta
casa nunca mais houve nada que se bebesse desde a operação do Eric. Já lá vão
três anos.
Será que estava perdendo a memória, será que a sua
capacidade para ignorar fatos penosos fizera com que se esquecesse de que tinha
vendido a casa, que as filhas estavam com problemas, e que o amigo tinha estado
doente? Os olhos desviaram-se do rosto de Eric para o seu abdomem, onde viu três
cicatrizes apagadas, suturadas, duas delas com pelo menos trinta centímetros de
comprimento. O umbigo tinha desaparecido, e como seria, pensou Neddy, quando a
mão tateante que às três da manhã avalia o que recebemos da natureza
encontrasse uma barriga sem umbigo, sem nenhuma ligação ao nascimento, uma tal
quebra na sucessão?
– Tenho a certeza de que encontra uma bebida nos
Biswangers – disse Helen.
– Há uma festa enorme. Ouve-se daqui. Escute!
Helen levantou a cabeça e do outro lado da estrada,
dos gramados, dos jardins, do arvoredo, dos campos, Ned ouviu de novo o animado
som das vozes por cima da água. "Bem, vou-me molhar", disse ele,
continuando a sentir que não tinha liberdade de escolha quanto aos seus meios
de viajar. Mergulhou na água fria dos Sachs e, arquejante, quase se afogando, atravessou
a piscina de uma ponta à outra. "Lucinda e eu queremos imenso vê-los –
disse ele por cima do ombro, o rosto voltado para casa dos Biswangers. –
Lamentamos ter deixado passar tanto tempo e vamos telefonar muito em breve."
Atravessou alguns campos até chegar a casa dos
Biswangers e aos ruídos de farra que de lá vinham. Haviam de sentir que era uma
honra dar-lhe uma bebida, seria um prazer darem-lhe uma bebida. Os Biswangers
convidavam-no para jantar, a ele e Lucinda, quatro vezes por ano, com seis
semanas de antecedência. Eram sempre rejeitados e mesmo assim continuavam a mandar-lhes
convites, sem querer compreender as rígidas e pouco democráticas realidades da
sua sociedade. Eram o tipo de pessoas que discutem o preço das coisas nas
recepções, que trocam dicas sobre a Bolsa durante o jantar, e que depois do
jantar contam anedotas porcas sem olhar quem está por perto. Não pertenciam ao
círculo de Ned - nem sequer estavam na lista de cartões de Natal de Lucinda.
Dirigiu-se à piscina deles com um sentimento de indiferença, de benevolência, e
alguma inquietação, uma vez que parecia estar escurecendo, quando estes eram os
dias mais compridos do ano. A festa, quando entrou, estava animada e com muita
gente. Grace Biswanger era o tipo de anfitriã que convidava o oculista, o
veterinário, o agente imobiliário, e o dentista. Não havia ninguém a nadar e o
crepúsculo, refletindo-se na água da piscina, tinha uma claridade de inverno.
Havia um bar e Ned dirigiu-se para lá. Quando Grace Biswanger o avistou veio
ter com ele, não amistosamente como tinha todo o direito de esperar, mas sim
com ar belicoso.
– Olha, nesta
festa há de tudo – disse ela em voz alta – até mesmo penetras.
Não que lhe pudesse incomodar - tal hipótese estava
fora de questão e por isso não se encolheu.
– E como penetra – perguntou delicadamente – tenho direito
a bebida?"
– Faça como
entender – disse ela. – Não me parece que ligue muito a convites.
Virou-lhe as costas e Ned dirigiu-se ao bar e pediu um
uísque. O barman serviu-o, mas serviu-o com maus modos. Ned pertencia a um
universo onde os empregados respeitavam os escalões sociais e ser enxovalhado
por um tipo que era barman de meio espediente significava que tinha sofrido alguma
perda de estima social. Ou talvez o homem fosse novo e mal informado. E então
ouviu Grace dizer às suas costas: "Perderam tudo de um ia para o outro –
ficaram só com o ordenado – e ele apareceu aqui bêbado um domingo e pediu cinco
mil dólares emprestados..." Aquela estava sempre a falar em dinheiro. Pior
do que comer ervilhas com faca. Mergulhou na piscina, nadou de uma ponta à
outra e foi-se embora.
A piscina seguinte na lista, a antepenúltima, era a da
sua antiga amante, Shirley Adams. Se em casa dos Biswangers sofrera algumas
feridas, seriam saradas aqui. O amor - a intimidade sexual, na verdade - era o
supremo elixir, o analgésico, a pílula de cores alegres capaz de trazer de novo
a Primavera à sua vida, a alegria de viver ao seu coração. Tinham tido um caso
na semana passada, no mês passado, no ano passado. Não conseguia lembrar-se.
Tinha sido ele a romper, ele é que saíra por cima, e transpôs a cancela do muro
que rodeava a piscina sem sequer lhe aflorar alguma sombra à sua autoconfiança.
Parecia-lhe de certo modo ser a sua própria piscina, pois que o amante,
especialmente o amante ilícito, dispõe dos bens da amante com uma autoridade
que o sagrado matrimônio desconhece. Shirley estava lá, o cabelo cor de cobre,
mas a sua figura, na borda da água luminosa, cerúlea, não despertou nele
nenhuma lembrança profunda. Tinha sido, pensou, um caso ligeiro, embora ela
tivesse chorado quando ele rompeu. Pareceu-lhe ficar confusa ao vê-lo e Ned
perguntou-se se ainda estaria magoada. Será que ela, Deus queira que não, iria
chorar outra vez?
– Que é que que você quer? – perguntou ela.
– Estou a atravessar o Condado a nado.
– Meu Deus.
Será que nunca mais cresces?
– O que está acontecendo?
– Se veio pedir
dinheiro - disse ela - não te dou nem mais um centavo.
– Podia me
oferecer uma bebida.
– Podia, mas não ofereço. Não estou só.
– Bem, então
vou andando.
Mergulhou e atravessou a piscina, mas quando tentou içar-se
para a borda apercebeu-se de ficara sem força nos braços e nos ombros e
esbracejou até às escadas, subindo-as para sair. Olhando por cima do ombro viu,
no vestiário iluminado, um homem novo. Ao sair para a grama escura sentiu o
cheiro dos crisântemos ou malmequeres - um desses teimosos aromas outonais - no
ar da noite, forte como um gás. Levantando os olhos, viu que as estrelas já tinham
surgido, mas por que tinha a impressão de estar vendo Andrômeda, Cefeu e a
Cassiopéia? Onde estavam as constelações de Junho? Começou a chorar.
Era provavelmente a primeira vez em sua vida de adulto
que chorava, e seguramente a primeira vez na vida que se tinha sentido tão
perdido, enregelado, cansado e confuso. Não conseguia entender a grosseria do
barman ou a brusquidão de uma amante que tivera ajoelhada aos seus pés e lhe
molhara de lágrimas as calças. Tinha nadado demais, tinha estado imerso demasiado
tempo, e o nariz e a garganta doíam-lhe por causa da água. Precisava de uma
bebida, de um pouco de companhia, e algumas roupas lavadas e secas, e embora
pudesse ir diretamente pela estrada para casa, prosseguiu em direção à piscina
dos Gilmartins. Aqui, pela primeira vez na sua vida, não mergulhou, descendo
antes a escada para as águas gélidas e nadou de lado, sem jeito, uma coisa que
devia ter aprendido em rapaz. Cambaleava de fadiga ao caminhar para casa dos
Clydes e esbracejou a todo o comprimento da piscina deles, detendo-se várias
vezes com a mão na borda para descansar. Subiu pela escada e perguntou a si
próprio se teria forças para chegar a casa. Tinha feito o que queria, tinha
atravessado o Condado a nadar, mas estava tão aturdido de cansaço que o triunfo
lhe surgia vago. Curvado, segurando-se às estacas da cerca como apoio, subiu o
caminho da sua própria casa.
Estava tudo às escuras. Seria assim tão tarde que já
estavam todos deitados? Será que Lucinda tinha ficado em casa dos Westerhazys para
jantar? E que as meninas tinham ido se encontrar com ela ou tinham ido a
qualquer outro lugar? Então não tinham combinado, como faziam todos os domingos,
não aceitar nenhum convite e ficar em casa? Experimentou as portas da garagem
para ver que carros estavam, mas as portas estavam fechadas à chave e as mãos
ficaram-lhe cheias da ferrugem dos puxadores. Dirigindo-se a casa, viu que a
violência da tempestade tinha desprendido uma calha. Pendia agora por cima da
porta de entrada como uma vareta de guarda-chuva, mas podia repará-la na manhã
seguinte. A casa estava fechada, e Ned pensou que o estúpido do cozinheiro ou a
estúpida da empregada deviam ter fechado tudo à chave até que se lembrou que há
muito tempo não tinham cozinheiro nem empregada. Gritou, bateu à porta, tentou
força-la com o ombro, e então, espreitando pela janela, viu que a casa estava
vazia.
Muito, muito obrigada!
ResponderExcluirFiquei impressionado e encantado com este blog. Obrigado. Este conto de Cheever é realmente deprimente para quem teve algum parente próximo atacado pelo Demônio ALGOL...
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