Yukio Mishima escritor
japonês (1925-1970), levou a extremos o amor por seu país, criando para si próprio
um personagem de difícil compreensão, que saiu bombasticamente de cena com um
seppuku (haraquiri) o ritualístico suicídio japonês, depois de uma teatral
tentativa de golpe de estado para restaurar em 1970 os poderes do imperador. Da
sua paixão pela cultura japonesa e pelo teatro, nasce "Onnagata", um conto tão
elegante, sutil e misterioso quanto o ator de Kabuki que ele descreve.
Onnagata
Yukio Mishima
Tradução de Aulide. S. Rodrigues
Masuyama ficara
completamente encantado com a arte de Mangiku; assim, depois de se formar em
literatura clássica japonesa, resolveu empregar-se no teatro Kabuki. O
desempenho de Mangiku Sanokawa o deixara extasiado.
O gosto de Masuyama
pelo Kabuki começou a se manifestar quando estava no ginásio. Nessa época
Mangiku, então principiante como onnagata, fazia papeis sem importância,
como o da borboleta fantasma em Kagami Jishi ou, na melhor das
hipóteses, a empregada Chidori, no Repudio de Genta. A interpretação de
Mangiku era ortodoxa e sem personalidade; ninguém imaginava que pudesse chegar
a sua atual eminência. Porém, já naquele tempo, Masuyama percebia as chamas
geladas que emanavam da beleza altiva do ator. O publico em geral,
naturalmente, não notava coisa alguma. Além disso, nenhum critico de teatro
jamais chamara a atenção para aquela estranha qualidade de Mangiku, aquelas
centelhas de chamas, visíveis através da neve, que iluminavam seus desempenhos
desde o começo de sua carreira. Agora todos falavam como se Mangiku fosse uma
descoberta pessoal.
Mangiku Sanokawa era
um verdadeiro onnagata, espécie raramente encontrada nos nossos dias. Ao
contrario da maioria dos onnagatas contemporâneos, era incapaz de interpretar
bem papeis masculinos. Sua presença em cena era brilhante, mas com sugestões de
sombras, cada gesto seu a essência da delicadeza. Mangiku jamais expressava
coisa alguma — força, autoridade, resistência ou coragem — a não ser por meio
do único agente disponível a sua arte, a expressão feminina; mas através desse
agente conseguia filtrar todo o tipo de emoção humana. Essa é a característica
do verdadeiro onnagata, mas nos nossos dias eles são muito raros. Seu
colorido musical, produzido por um instrumento especial e muito refinado, não
pode ser conseguido com um instrumento normal em tom menor, nem reproduzido
por uma imitação servil de mulheres de verdade.
Yukihime, a Princesa
da Neve, em Kinkakuji era um dos papeis mais perfeitos de Mangiku.
Masuyama lembrava-se de ter visto Mangiku no papel de Yukihime dez vezes em um
mês, e por mais que repetisse a experiência, seu entusiasmo não diminuía. Tudo
o que simbolizava Sanokawa Mangiku podia ser encontrado nessa peça, os
elementos entrelaçados, desde as primeiras palavras do narrador: “O Pavilhão
Dourado, nas montanhas, refugio do Senhor Yoshimitsu, Primeiro-ministro e Monge
do Parque dos Gamos, tem três andares e seu jardim e adornado com belas
paisagens: a pedra guardiã da noite, a água escorrendo sob as rochas, a cascata
repleta de primavera, os salgueiros e as cerejeiras plantados lado a lado; a
capital de lá é um vasto brocado multicolorido.” O brilho ofuscante do cenário,
mostrando cerejeiras em flor, uma cachoeira e o cintilante Pavilhão Dourado; os
tambores, sugerindo o som surdo da agua caindo e contribuindo para uma
constante agitação no palco; o rosto pálido e sádico do lascivo Daizen
Matsunaga, o general rebelde; o milagre da espada magica, que cintila ao sol
da manhã com a imagem sagrada de Fudo, mas que mostra a imagem de um dragão
quando apontada para o sol poente; o fulgor do pôr-do-sol na cachoeira e nas
cerejeiras; as flores das cerejeiras espalhando suas pétalas uma a uma — tudo
na peça existe em função de uma mulher, a bela e aristocrática Yukihime. Não há
nada de diferente na roupa de Yukihime, o vestido de seda vermelha usado por
todas as jovens princesas. Mas a presença espiritual da neve, concordando com
seu nome, paira sobre essa neta do grande pintor Sesshu, e as paisagens de
Sesshu, impregnadas de neve, podem ser sentidas na vastidão do cenário. Essa
neve fantasma empresta ao vestido de Yukihime seu brilho ofuscante.
Masuyama gostava
especialmente da cena em que a princesa, amarrada com cordas na cerejeira,
lembra-se da lenda do seu avô, e com os dedos do pé desenha um rato nas flores
caídas, que, adquirindo vida, rói as cordas que a prendem. Não é preciso dizer
que Mangiku Sanokawa não se valia dos movimentos mecânicos usados por alguns onnagatas,
nessa cena. As cordas que prendiam Mangiku a arvore o faziam parecer mais
belo do que nunca: todos os arabescos artificiais desse onnagata — a
delicada linguagem do corpo, o jogo dos dedos, a curva da mão — por mais que
possam parecer forçados para os movimentos da vida diária — adquiriam uma
estranha vitalidade quando usados por Yukihime atada à árvore. As atitudes
contorcidas e complexas impostas pelas cordas faziam de cada momento uma crise
refinada e essas crises pareciam fluir, uma para dentro da outra, com a energia
irresistível de ondas sucessivas.
Os desempenhos de
Mangiku sem duvida tinham momentos de diabólico poder. Ele usava os belos olhos
com tanta arte que em um segundo podia criar em toda a audiência a ilusão de
que a característica de uma cena fora completamente alterada: quando seu olhar
envolvia o palco, vindo do hanamichi, [1] ou o
banamichi, vindo do palco, ou quando voltava-se rápido para cima, para o
sino, em Dojoji. Na cena do palácio, em Imoseyama, Mangiku fazia
o papel de Omiwa, cujo amante fora roubado pela Princesa Tachibana e que por
isso sofrera a zombaria cruel das damas da corte. No fim, Omiwa corre para o hanamichi,
quase ensandecida de ciúmes e de raiva; nesse momento escuta as vozes das damas
da corte no fundo do palco, dizendo: “Um noivo sem igual foi encontrado para a
nossa princesa. Que alegria para todas nos!” O narrador, sentado ao lado do
palco, declama com voz forte: “Omiwa, ouvindo isso, imediatamente olha para
trás.” Nesse momento Omiwa se transforma completamente e seu rosto revela os
sinais de uma devoção possessiva.
Masuyama sentia uma
espécie de terror cada vez que testemunhava esse momento. Por um instante, uma
sombra diabólica encobria o palco brilhante com seu cenário maravilhoso e belos
vestuários, bem como os milhares de espectadores atentos. Essa força emanava
visivelmente do corpo de Mangiku, mas ao mesmo tempo transcendia sua carne.
Nessas cenas, Masuyama tinha a impressão de que uma fonte escura jorrava
daquela figura no palco, aquela figura tão repleta de maciez, fragilidade,
graça, delicadeza e encantos femininos. Era algo que não podia identificar, mas
sentia que a verdadeira essência daquela fonte escura era uma presença maléfica
e estranha, o resíduo final da fascinação do ator, um demônio sedutor que
desviava os homens dos seus caminhos, afogando-os em um momento de beleza.
Porém, não se explica uma coisa simplesmente dando-lhe um nome.
Omiwa balança a
cabeça e seus cabelos se soltam em desordem. No palco, para o qual volta agora,
deixando o hanamichi, a lâmina de Funashichi a espera.
“A casa esta repleta
de musica com um tom de tristeza outonal”, declama o narrador.
Há algo de terrível
na pressa com que os passos de Omiwa a conduzem para a morte. Os pés descalços
muito brancos, correndo para o desastre e para o fim, desarrumando apressados
as pregas do quimono, parecem saber exatamente quando e onde, no palco,
atingirão o objetivo para onde os conduzem as violentas emoções; apressam-se,
jubilosos e triunfantes, mesmo entre as torturas do ciúme. A dor que ela
demonstra é desenhada em um fundo de alegria, como seu quimono, externamente
escuro, raiado de fios de ouro, e na parte interna iluminado com fios de prata
de varias cores.
2
A decisão original
de Masuyama de se empregar no teatro fora inspirada por seu entusiasmo pelo
Kabuki , e especialmente por Mangiku; além disso, sabia que jamais se
libertaria daquela servidão se não procurasse se familiarizar com o mundo dos
bastidores. Já haviam lhe falado sobre o desencanto dos bastidores, e queria
mergulhar naquele mundo e experimentar pessoalmente a desilusão genuína.
Porém, o desencanto
que esperava jamais chegou. O próprio Mangiku o tornava impossível. Mangiku
seguia fielmente as regras do manual do onnagata do século dezoito, Ayamegusa.
“Um onnagata, mesmo no camarim, deve conservar as atitudes de um onnagata.
Quando faz suas refeições, deve ter o cuidado de ficar de costas, para que não
possam vê-lo.” Sempre que Mangiku, sem tempo para deixar o camarim, era
obrigado a comer na presença de visitantes, virava-se para sua mesa e,
desculpando-se, comia rapidamente, com tanta discrição que nem se percebia, por
trás, que estava comendo.
Sem duvida, a beleza
feminina representada por Mangiku no palco havia cativado Masuyama, como homem.
Entretanto, por mais estranho que pareça, o encanto não se desfez, nem depois
de ter observado atentamente Mangiku no camarim. O corpo de Mangiku, quando
tirava o quimono da peça, era delicado, mas completamente masculino. Na
verdade, Masuyama ficava um tanto confuso quando Mangiku, sentado na frente da
penteadeira, sua quase nudez demonstrando claramente que era um homem,
cumprimentava os visitantes com gestos e palavras delicadas e femininas,
enquanto passava uma espessa camada de pós nos ombros. Se o próprio Masuyama,
há tanto tempo admirador de Kabuki, havia experimentado estranhas sensações nas
suas primeiras visitas ao camarim, qual seria a reação das pessoas que não
gostam do Kabuki, porque o onnagata as constrange, ao ver aquela cena?
Entretanto, o que
Masuyama sentiu ao ver Mangiku depois do espetáculo, despido, a não ser pelas
roupas de baixo de gaze, que usava para absorver a transpiração, não foi
desencanto e sim alivio. A imagem, por si mesma, poderia parecer grotesca, mas
a natureza do fascínio sentido por Masuyama — sua qualidade intrínseca, podemos
dizer — não se fundava em uma ilusão superficial, portanto aquela revelação não
podia destrui-lo. Mesmo depois de Mangiku tirar a roupa, era evidente que
continuava vestido com varias camadas de roupas esplêndidas sob a pele. Sua
nudez era uma manifestação passageira. Algo que era responsável por sua
aparência refinada no palco estava sem duvida guardado dentro dele.
Masuyama gostava de
ver Mangiku quando ele voltava para o camarim, depois de desempenhar um papel
importante. O fulgor das emoções do papel que acabava de representar pairava
ainda sobre todo o seu corpo, como o brilho do sol poente ou da luz no céu da
madrugada. As grandes emoções da tragédia clássica — emoções não relacionadas
com nossa vida mundana — podiam parecer orientadas, pelo menos nominalmente,
por faros históricos — o mundo das disputas por sucessões, campanhas pela
pacificação, guerras civis, e assim por diante — mas na verdade não pertenciam
a nenhum período. São as emoções próprias de um mundo estilizado, grotescamente
trágico, sobejamente colorido, como numa xilogravura recente. Dor que
ultrapassa os limites do homem, paixões sobre-humanas, amor ardente, alegria
aterradora, os brados breves de pessoas apanhadas em circunstâncias trágicas
demais para serem suportadas por seres humanos; essas eram as emoções que
momentos antes haviam se alojado no corpo de Mangiku. Era espantoso que sua
estrutura esbelta as pudesse conter sem que destroçassem aquele receptáculo tão
delicado.
De qualquer modo,
momentos atrás Mangiku vivera todos aqueles sentimentos grandiosos e irradiara
luminosidade no palco justamente porque as emoções que transmitia transcendiam
todas as que podiam ter sido experimentadas pela audiência. Talvez isso se
aplique a todos os personagens do teatro, mas entre os atores dos nossos dias
nenhum parecia estar vivendo honestamente emoções teatrais tão distanciadas da
vida quotidiana.
Segundo uma passagem
do Ayamegusa, “O encanto e a essência do onnagata. Porem, mesmo o
onnagata bonito por natureza perderá o encanto se procurar impressionar
com seus movimentos. Se tentar conscientemente ser gracioso, parecera
completamente corrupto. Por esse motivo, a não ser que o onnagata viva
como mulher quotidianamente, jamais será considerado um onnagata
perfeito. Quando no palco, quanto mais se encontrar em um ou outro gesto
essencialmente feminino, mais masculino vai parecer. Estou convencido de que o
mais importante e o comportamento do ator em sua vida real.”
O comportamento do
ator em sua vida real... sim, Mangiku era completamente feminino, tanto no modo
de talar quando nos movimentos, em sua vida real. Se Mangiku fosse mais
masculino na vida quotidiana, aqueles momentos em que o ardor do papel de onnagata,
que acabava de desempenhar, gradualmente se dissolviam como a marca da maré
alta na praia, na feminilidade da sua vida diária — que era a extensão da mesma
fantasia — aqueles momentos funcionariam como uma divisão completa entre terra
e mar, uma porta sombria fechando-se entre o sonho e a realidade. O faz-de-
conta de sua vida real concordava com o faz-de-conta do seu desempenho no
palco. Masuyama estava convencido de que essa era a marca do verdadeiro onnagata.
Um onnagata é o filho nascido da união ilegítima do sonho com a
realidade.
3
Quando os famosos
atores da geração anterior foram morrendo, um depois do outro, a autoridade de
Mangiku nos bastidores tornou-se absoluta. Seus discípulos onnagatas o
serviam como empregados particulares; na verdade a hierarquia que observavam,
quando acompanhavam Mangiku no palco, como criadas servindo sua princesa ou sua
grande dama, era exatamente a mesma observada no camarim.
Quem abrisse as
cortinas da porta, com o brasão da família Sanokawa, e entrasse no camarim de
Mangiku, certamente teria uma estranha sensação: aquele santuário encantador
não abrigava um único homem. Até mesmo as figuras do mesmo elenco sentiam, ali
dentro, que estavam na presença do sexo oposto. Sempre que Masuyama ia ao
camarim de Mangiku, a serviço, bastava abrir as cortinas da porta para sentir —
antes mesmo de entrar — uma sensação estranhamente vivida e carnal de sua
própria masculinidade.
Masuyama fora
algumas vezes, a serviço da companhia, aos camarins das coristas de revistas.
Eram ambientes repletos de uma feminilidade quase
sufocante e as moças de pele áspera, esparramadas como animais no zoológico,
lançavam olhares entediados para ele, mas nunca se sentiu tão estranhamente
deslocado quanto no camarim de Mangiku; nada naquelas mulheres de verdade o
fazia sentir-se especialmente masculino.
Os membros do grupo
de Mangiku não demonstravam amizade especial para com Masuyama. Ao contrario,
ele sabia que falavam dele as escondidas, acusando-o de desrespeito e de ser
arrogante, só por ter frequentado a universidade. Sabia também que as vezes se
irritavam com sua insistência pedante sobre fatos históricos. No mundo do
Kabuki não se da nenhum valor à cultura acadêmica sem talento artístico.
O trabalho de
Masuyama tinha certas compensações. As vezes, quando Mangiku pedia um favor a
alguém — naturalmente só quando estava de bom humor — girava o corpo
diagonalmente na frente da penteadeira, acenando de leve com a cabeça e
sorrindo; o encanto indescritível dos seus olhos nesses momentos fazia com que
Masuyama nada mais desejasse do que servi-lo como escravo. Mangiku, por sua
vez, jamais esquecia sua dignidade: mantinha sempre uma certa distancia, embora
obviamente reconhecesse o próprio encanto. Se fosse uma mulher real, todo o seu
corpo estaria repleto com a fascinação dos olhos. A fascinação de um onnagata
resume-se em uma centelha momentânea, mas o bastante para que tenha existência
própria e as características do eterno feminino.
Mangiku estava
sentado em frente ao espelho depois de sua atuação no Castelo do Senhor
Protetor de Hachijin, o primeiro número do programa. Tirara o quimono e a
peruca do papel da Senhora Hinaginu e vestia um roupão, pois não era obrigado a
aparecer na parte central do programa. Masuyama, informado de que Mangiku
queria vê-lo, havia esperado no camarim pelo fim do Hachijin. O espelho
subitamente explodiu em chamas vermelhas quando Mangiku voltou, enchendo a
porta com o farfalhar de suas roupas. Três discípulos e encarregados do
vestuário aproximaram-se para remover o que devia ser removido e guarda-lo nos
respectivos lugares. Os que deviam sair saíram, permanecendo apenas alguns
discípulos perto do hibachi[2]
no quarto ao lado. O camarim ficou silencioso de um momento para outro. De um
alto-falante no corredor vinham os sons dos martelos dos assistentes do palco
que desmontavam o cenário da peça. Estavam no fim de novembro e o vapor
embaçava as vidraças, tristes como as de uma enfermaria de hospital.
Crisântemos inclinavam-se graciosamente em um vaso esmaltado ao lado da
penteadeira de Mangiku. Talvez porque seu nome artístico significasse
literalmente “dez mil crisântemos”, gostava muito dessa flor.
Estava sentado sobre
uma gorda almofada de seda púrpura, de frente para a penteadeira.
— Poderia dizer ao
cavalheiro da Rua Sakuragi? — Mangiku, de acordo com o costume antigo,
referia-se aos seus professores de dança e canto pelos nomes das ruas onde
moravam. — Seria difícil para mim dizer-lhe. — Olhava diretamente para o
espelho enquanto falava.
Masuyama, sentado
perto da parede, via a nuca de Mangiku e no espelho a imagem do rosto ainda
maquilado para o papel de Hinaginu. Os olhos não estavam em Masuyama;
contemplavam de frente o próprio rosto. O rubor provocado pelo esforço do
desempenho era visível ainda sob a camada de pó, como o sol nascente surgindo
através de uma fina camada de gelo. Ele estava olhando para Hinaginu.
Na verdade, ele a
via no espelho — Hinaginu, que ele acabava de personificar, Hinaginu, a filha
de Mori Sanzaemon Yoshinari e noiva do jovem Sato Kazuenosuke. Seus elos
matrimoniais desfeitos por causa da lealdade feudal do marido, Hinaginu comete
suicídio para permanecer fiel àquela união “cujos elos eram tão tênues que
jamais haviam compartilhado a mesma cama”. Hinaginu, no palco, morria possuída
de um desespero tão grande que a impedia de continuar vivendo. A Hinaginu do
espelho era um fantasma. Mesmo aquele fantasma, Mangiku sabia, estava naquele
exato momento deixando o seu corpo. Seus olhos procuravam seguir Hinaginu. Mas
a medida que se desvaneciam as paixões ardentes do personagem, o rosto de Hinaginu
desaparecia. Mangiku despedia-se dela. Teria ainda sete espetáculos antes do
fim. No dia seguinte o rosto de Hinaginu sem duvida voltaria ao molde maleável
do rosto de Mangiku.
Masuyama, observando
com prazer aquela abstração de Mangiku, quase sorria de afeição. Subitamente,
Mangiku voltou-se para ele. Durante todo o tempo estivera consciente do olhar
de Masuyama, mas, com o desembaraço do ator acostumado aos olhares do publico,
continuou com o que estava dizendo.
– Trata-se daquelas
passagens instrumentais. Simplesmente são curtas demais. Não quero dizer que
não conseguiria passar por essa parte se me apressasse, mas isso tira a beleza
de tudo. — Mangiku referia-se a musica da nova peça com dança que seria
apresentada no mês seguinte. — Sr. Masuyama. o que acha?
– Concordo
plenamente. Estou certo de que se refere a passagem logo depois de “Como é
lento o fim do dia na ponte chinesa, em Seta.
– Sim, exatamente.
Co-mo é len-to o fim do di-a... — Mangiku cantou a passagem em questão,
marcando o ritmo com os dedos delicados.
– Eu direi a ele.
Tenho certeza de que o cavalheiro da Rua Sakuragi vai compreender.
– Tem certeza de que
não se importa? Sinto-me tão embaraçado incomodando tanto as pessoas o tempo
todo.
Uma vez terminado o
assunto, Mangiku costumava se levantar.
– Acho que vou tomar
banho agora — disse.
Masuyama afastou-se
da estreita porta do camarim, dando passagem para Mangiku. Este, com uma leve
inclinação da cabeça, saiu para o corredor, acompanhado por um discípulo.
Voltou-se um pouco para Masuyama e, sorrindo, acenou com a cabeça novamente. O
ruge nos cantos dos seus olhos tinham um encanto indescritível. Masuyama sentiu
que Mangiku estava consciente da sua afeição.
4
O grupo ao qual
Masuyama pertencia ia trabalhar no mesmo teatro durante os meses de novembro,
dezembro e janeiro e o programa de janeiro já estava sendo objeto de
comentários. Seria encenada a peça de um autor do teatro moderno. O homem, cujo
senso da própria importância não condizia com sua juventude, havia imposto
varias condições, e Masuyama ocupou-se febrilmente com as complexas negociações
que tinham por objetivo reunir, não só o dramaturgo e os atores, mas também a
direção do teatro. Masuyama foi encarregado dessa parte porque os outros o
consideravam um intelectual.
Uma das condições
impostas pelo autor da peça era que a direção fosse confiada a um jovem
talentoso de sua confiança. A direção do teatro aceitou. Mangiku também
concordou, mas sem muito entusiasmo. Expressou suas duvidas dizendo:
— Na verdade, não
sei, mas se esse jovem não compreender o Kabuki muito bem é fizer exigências
pouco razoáveis, será muito difícil explicar.
Mangiku desejava um
diretor mais velho, mais maduro — isto é, mais condescendente — para a peça.
A nova peça era uma
dramatização em linguagem moderna do romance do século XII, Se ao menos eu
pudesse modificá-los! O diretor administrativo da companhia resolveu não
deixar a produção nas mãos do seu pessoal e incumbiu Masuyama dessa parte.
Masuyama ficou nervoso com a ideia do trabalho que o esperava; mas, convencido
de que a peça era de primeira qualidade, achou que valia a pena.
Uma vez prontos os scripts
e distribuídos os papeis, houve uma reunião preliminar, certa manha, no meio do
mês de dezembro, no salão de recepção ao lado do escritório do proprietário do
teatro. Compareceram o executivo encarregado da produção, o escritor da peça, o
diretor, o desenhista de cenários, os atores e Masuyama. A sala estava bem
aquecida e os raios de sol entravam pelas janelas. Masuyama sempre se sentia
bem nas reuniões preliminares. Era o mesmo que abrir um mapa e discutir um
passeio projetado: onde tomamos o ônibus e onde começamos a caminhada? Existe
agua potável no lugar? Onde vamos almoçar? De onde se tem a melhor vista?
Voltaremos de trem? Ou será melhor esperarmos mais e voltarmos de navio?
Kawasaki, o diretor,
chegou atrasado. Masuyama nunca vira uma peça dirigida por Kawasaki, mas
conhecia sua fama. A despeito da sua juventude, fora escolhido para dirigir
pegas de Ibsen e do moderno teatro americano para uma companhia teatral e no
decurso de um ano tivera tanto sucesso, especialmente com as peças americanas,
que um jornal lhe conferira um premio de teatro.
Os outros (exceto
Kawasaki) já estavam reunidos. O desenhista, que nunca podia esperar nem um
segundo para começar o trabalho, já estava anotando em um caderno especial as
sugestões feitas pelos outros, frequentemente batendo com a ponta do lápis nas
paginas em branco, como se sua mente estivesse explodindo com novas ideias.
Finalmente o executivo começou a falar sobre o diretor.
— Pode ser tão
talentoso como dizem, mas é muito jovem ainda. Os atores terão de ajuda-lo.
Nesse momento
bateram a porta, e a secretaria fez entrar Kawasaki. Entrou com um olhar
ofuscado, como se as luzes da sala fossem fortes demais para ele e, sem uma
palavra, cumprimentou a todos com uma rígida inclinação da cabeça. Era alto,
quase um metro e oitenta, com traços fortes e masculinos — mas extremamente
sensíveis. Era um dia frio de inverno, mas Kawasaki vestia apenas uma capa de
chuva muito fina e amarrotada. Sob a capa, um paletó de veludo canelado cor de
tijolo. O cabelo liso e longo descia ate a ponta do nariz, obrigando-o a
afasta-lo para trás constantemente. Masuyama ficou desapontado com essa
primeira impressão. Esperava que um homem famoso por seu talento tentasse de
alguma forma evitar os estereótipos da sociedade, mas Kawasaki vestia-se
exatamente como se esperava que se vestisse um típico jovem do teatro moderno.
Kawasaki sentou-se
na cadeira que lhe foi oferecida, a cabeceira da mesa. Não apresentou os
delicados protestos de praxe por aquela honra. Olhava para o autor da peça, seu
amigo íntimo, e a cada ator que lhe era apresentado resmungava um cumprimento
qualquer, voltando imediatamente os olhos para o amigo. Masuyama lembrou-se de
experiências semelhantes. Não era fácil para um homem treinado no teatro
moderno, onde quase todos os atores são jovens, estabelecer um contato
satisfatório com os atores do Kabuki, quase sempre cavalheiros imponentes e
idosos fora do palco.
Os atores presentes
àquela reunião preliminar, na verdade, procuraram demonstrar de certa forma seu
desprezo por Kawasaki, sempre com a maior delicadeza e sem uma palavra hostil.
Masuyama olhou para Mangiku. O ator mantinha-se modestamente calado, evitando
qualquer demonstração de importância; não se via no seu rosto nenhum sinal do
desprezo manifestado pelos outros. Masuyama sentiu crescer sua admiração e
afeição por Mangiku.
Agora que estavam
todos presentes, o autor fez um resumo da peça. Mangiku, provavelmente pela
primeira vez em sua carreira — a não ser por papeis representados quando era
criança — ia fazer um papel masculino. A pega era sobre um certo Grande
Ministro que tinha dois filhos, um menino e uma menina. Por natureza, eles não
tem as características dos respectivos sexos e são criados de acordo com suas
tendências: o menino (na verdade a menina) finalmente vem a ser um General da
Esquerda, e a menina (na verdade o menino) torna-se chefe. das damas de honra
no Senyoden, o palácio das concubinas imperiais. Mais tarde, quando a verdade e
revelada, passam a viver mais de acordo com seus sexos originais: o irmão
casa-se com a quarta filha do Ministro da Direita, a irmã com um Conselheiro do
Centro e tudo acaba bem.
O papel de Mangiku
seria o da menina que é na realidade um homem. Embora fosse um papel masculino,
Mangiku apareceria como homem nos poucos momentos da cena final. Até ali, seu
papel seria o de um verdadeiro onnagata, como chefe das damas de honra
no Senyoden. O autor e o diretor recomendaram a Mangiku que não tentasse de
modo algum sugerir que era na verdade um homem, até a cena final.
Um aspecto
interessante da pega era que inevitavelmente acabava satirizando a convenção
Kabuki do onnagata. A chefe das damas de honra era na verdade um homem;
exatamente como o papel representado por Mangiku. Não era tudo. Para que
Mangiku, onnagata e homem ao mesmo tempo, pudesse desempenhar o papel,
teria de desdobrar suas ações na vida real em dois níveis, algo muito diferente
do caso do ator que se veste com roupas de mulher durante a peça para enganar
as pessoas. As complexidades do papel fascinavam Mangiku.
As primeiras
palavras de Kawasaki para Mangiku foram:
– Eu gostaria que
desempenhasse o papel todo como mulher. Não faz a menor diferença que atue como
mulher até mesmo na ultima cena. — Sua voz tinha uma sonoridade agradável e
clara.
– Tem certeza? Se
não se importa que eu desempenhe o papel desse modo, será muito mais fácil para
mim.
– Em nenhum caso
será fácil. Definitivamente não — disse Kawasaki em tom decidido.
Quando falava com
convicção, seu rosto ficava vermelho como se tivessem acendido uma lâmpada
dentro dele. A aspereza da sua voz provocou um mal-estar em todos. Os olhos de
Masuyama voltaram-se para Mangiku. Ele abafava o riso com bom humor, as costas
da mão contra os lábios. Os outros ficaram menos tensos, vendo que Mangiku não
estava ofendido.
– Muito bem, então —
disse o autor. — Vou ler o livro. — Abaixou os olhos saltados, que pareciam
duplicados atrás das lentes grossas, e começou a ler o script que estava
sobre a mesa.
Os ensaios dos
papeis separados começaram dois ou três dias depois, sempre que os atores
tinham algum tempo livre. Ensaios em conjunto só seriam possíveis nos poucos
dias entre o fim do mês e o começo do programa do mês seguinte.
A não ser que todos
os problemas estivessem resolvidos nessa ocasião, não teriam tempo para montar
a peça.
Quando começaram os
ensaios por partes, ficou aparente que Kawasaki era como um estranho perdido no
meio deles. Não compreendia nada de teatro Kabuki e Masuyama viu-se obrigado a
ficar sempre ao seu lado, explicando palavra por palavra a linguagem técnica
daquele tipo de teatro, o que fazia Kawasaki por demais dependente dele. Logo
que terminaram o primeiro ensaio, Masuyama convidou Kawasaki para um drinque.
Masuyama sabia que,
para uma pessoa na sua posição, era um erro aliar-se ao diretor, mas achava que
compreendia o que Kawasaki estava passando. As opiniões do jovem eram precisas
e definidas, suas atitudes mentais saudáveis, e ele lançava-se ao trabalho com
entusiasmo infantil. Masuyama compreendeu então por que o caráter de Kawasaki
agradara tanto ao autor da peça; era como se a juventude genuína de Kawasaki
agisse como um elemento purificador, uma qualidade desconhecida no mundo do
Kabuki. Masuyama justificava sua amizade com Kawasaki alegando que procurava
transformar essa qualidade em vantagem para o Kabuki.
Os ensaios gerais
começaram finalmente no dia seguinte a última representação do programa de
dezembro, dois dias depois do Natal. O movimento de fim de ano nas ruas podia
ser ouvido através das janelas do teatro e dos camarins. Uma mesa de trabalho
velha e gasta fora colocada ao lado de uma das janelas do grande salão de
ensaios. Kawasaki e um dos principais auxiliares de Masuyama — o diretor de
cena — sentaram-se de costas para a janela. Masuyama estava atrás de Kawasaki.
Os atores estavam sentados no tatami encostado na parede. Cada um ia ate
o centro da sala quando chegava a sua vez. O diretor de cena fazia o papel de
ponto
Centelhas se cruzavam
repetidamente entre Kawasaki e os atores.
— Neste ponto —
dizia Kawasaki —, gostaria que ficasse de pé ao dizer: “Gostaria de poder ir a
Kawachi e acabar com tudo isto.” Depois deve caminhar até a coluna a direita do
palco.
– Eu simplesmente
não posso, de modo algum, ficar de pé nesse local.
– Por favor, tente
fazer ao meu modo. — Kawasaki forçava um sorriso, mas seu rosto empalidecia
visivelmente com o orgulho ferido.
– Pode me pedir para
ficar de pé, de hoje até o próximo Natal, mas eu não posso fazer isso. Nesse
local eu devo estar pensando profundamente sobre alguma coisa. Como posso andar
pelo palco quando estou pensando?
Kawasaki não
respondeu, mas era evidente sua extrema irritação por ter sido interpelado
nesses termos.
Já com Mangiku tudo
era diferente. Se Kawasaki dizia: “Sente-se!”, Mangiku sentava, se ele dizia;
“Levante-se!”, Mangiku se levantava. Obedecia passivamente a todas as ordens de
Kawasaki. Masuyama achava que o entusiasmo de Mangiku pelo papel não
justificava o fato de se mostrar muito mais obediente nos ensaios do que de
hábito.
Masuyama precisou
sair da sala para cuidar de certos negócios no momento em que Mangiku, tendo
representado a cena do primeiro ato, voltava ao seu lugar perto da parede.
Quando Masuyama voltou, defrontou-se com a seguinte cena: Kawasaki, quase
deitado em cima da mesa, acompanhava atentamente o ensaio, sem se dar ao
trabalho de afastar o cabelo dos olhos. Estava debruçado sobre os braços
cruzados, os ombros sob o paletó de veludo tremendo de raiva contida. A direita
de Masuyama havia uma parede branca com uma janela no meio, através da qual se
via um balão de ar oscilando com o vento norte, com uma faixa anunciando uma
liquidação de fim de ano. Nuvens carregadas de inverno pareciam desenhadas com
giz contra o azul pálido do céu. Viu um santuário dedicado a Inari e um pequeno
torii[3]
vermelho vivo no telhado de um velho prédio. Mais à direita, Mangiku estava
sentado ereto de costas para a parede, no estilo japonês, com as pernas
cruzadas no tatami. O script estava aberto no seu colo e as
pregas do seu quimono cinza-esverdeado caiam em retas perfeitas. De onde
estava, ao lado da porta, Masuyama não podia ver o rosto de Mangiku de frente,
mas os olhos, vistos de perfil, estavam completamente tranquilos, o olhar resolutamente
fixo em Kawasaki.
Masuyama sentiu um
súbito tremor de medo. Estava com um dos pés dentro da sala de ensaios, mas
sentia agora que era quase impossível entrar.
6
Mais tarde, naquele
mesmo dia, Masuyama foi chamado ao camarim de Mangiku. Quando inclinou a
cabeça, como sempre fazia, para passar sob as cortinas da porta, sentiu um
estranho bloqueio emocional. Mangiku o cumprimentou, todo sorridente, da sua
almofada púrpura e ofereceu a Masuyama os doces recebidos de um visitante.
– O que achou do
ensaio de hoje?
– Como disse? —
Masuyama sobressaltou-se com a pergunta. Não era do feitio de Mangiku pedir sua
opinião sobre esses assuntos.
– O que achou?
– Se tudo continuar
tão bem como hoje, acho que a peça vai ser um sucesso.
– Acha mesmo? Estou
com muita pena do Sr. Kawasaki. É tão difícil para ele. Os outros o tratam com
tanta arrogância que fico nervoso. Tenho certeza de que percebeu, pelo ensaio,
que pretendo fazer tudo exatamente como o Sr. Kawasaki quer. De qualquer modo,
é precisamente como desejo representar esse papel e achei que poderia facilitar
as coisas para o Sr. Kawasaki, mesmo sem a ajuda de ninguém mais. Não posso
dizer aos outros, mas tenho certeza de que notarão, se eu fizer exatamente o
que ele mandar. Sabem que geralmente sou muito difícil. É o mínimo que posso
fazer para proteger o Sr. Kawasaki. Seria uma pena se ninguém ajudasse, quando
ele esta se esforçando tanto.
Masuyama não sentiu
nenhuma emoção especial ouvindo as palavras de Mangiku. Era muito provável,
pensou, que o próprio Mangiku não soubesse que estava apaixonado: afinal,
estava acostumado a representar o amor em escala muito mais heroica. Masuyama,
por sua vez, achava que aqueles sentimentos — fosse qual fosse a definição dos
mesmos — que surgiam no coração de Mangiku eram extremamente impróprios.
Esperava de Mangiku uma demonstração de emoções muito mais transparente,
artificial e este- tica.
Mangiku,
contrariando seus hábitos, estava em uma atitude informal, o que emprestava ao
seu corpo delicado uma espécie de languidez. O espelho refletia as flores
vermelhas no vaso esmaltado e a nuca recentemente raspada de Mangiku.
O exaspero de
Kawasaki tornou-se patético na véspera dos ensaios no palco. Assim que terminou
o último ensaio em separado, convidou Masuyama para um drinque, parecendo ter
chegado ao fim de sua capacidade de resistência. Masuyama estava ocupado
naquele momento, mas duas horas mais tarde, encontrou Kawasaki ainda à sua
espera no bar onde tinham combinado se encontrar. O bar estava cheio, embora
fosse véspera de Ano-novo, quando os bares geralmente ficam desertos. Kawasaki
estava pálido, bebendo sozinho. Era do tipo que, quanto mais bebe, mais pálido
fica. Masuyama, notando a palidez de Kawasaki assim que entrou no bar, sentiu
que o jovem estava transferindo para seus ombros uma carga espiritual
injustamente pesada. Eles viviam em mundos diferentes; não havia nenhum motivo
pelo qual a cortesia exigisse que as incertezas e a angustia de Kawasaki
passassem para os ombros de Masuyama.
Kawasaki logo
começou a provocar Masuyama, como este já esperava, acusando-o de agente duplo.
Masuyama aceitou a provocação com um sorriso. Era cinco ou seis anos mais velho
do que Kawasaki, mas possuía a autossuficiência de um homem que vivera entre
pessoas que “conheciam as regras”. Ao mesmo tempo, sentia uma espécie de inveja
daquele homem que jamais conhecera as dificuldades da vida, ou pelo menos, as
dificuldades reais. Não era exatamente por falta de integridade moral que
Masuyama se mostrava indiferente aos mexericos dos bastidores a seu respeito,
agora que estava com seu lugar garantido na hierarquia do Kabuki; sua
indiferença demonstrava que não tinha nada a ver com o tipo de sinceridade que
podia destrui-lo.
Kawasaki falou:
– Estou farto disso
tudo. Assim que a cortina se abrir na noite de estreia, terei o maior prazer em
desaparecer. Os ensaios no palco começam amanha! É demais para mim, aborrecido
como estou. Esta é a pior incumbência que já tive até agora. Cheguei ao meu
limite. Nunca mais pretendo tomar de assalto um mundo que não é o meu.
– Mas, não é mais ou
menos o que esperava, desde o começo? O Kabuki não e igual ao teatro moderno,
afinal — disse Masuyama friamente.
As palavras de
Kawasaki o surpreenderam.
– Mangiku é o pior
de todos. Eu realmente não gosto dele. Nunca mais vou dirigir uma peça com ele.
— Kawasaki olhava para os filetes espiralados de fumaça sob o teto baixo, como
se estivesse enfrentando um inimigo invisível.
– Eu jamais teria
imaginado isso. Tenho a impressão de que ele esta fazendo o melhor possível
para cooperar.
– Por que pensa
isso? O que ha de tão bom nele? Não me importo muito quando os outros atores
não dão atenção ao que eu digo durante os ensaios ou quando tentam me
intimidar, nem mesmo quando procuram sabotar toda a peça, mas Mangiku vai além
do que posso suportar. Tudo o que faz e olhar para mim com aquele sorriso
zombeteiro. No fundo, ele é completamente inflexível e me trata como se eu
fosse uma criança ignorante. Por isso faz tudo exatamente como eu digo. É o único que obedece as minhas
sugestões e isso me irrita mais ainda. Posso adivinhar o que esta pensando: “Se
e assim que você quer, e assim que vou fazer, mas não espere que eu tome
nenhuma responsabilidade pelo que acontecer na pega.” É exatamente o que esta sempre comunicando sem dizer uma
palavra, é o pior tipo de sabotagem que conheço. Ele e o pior de todos.
Masuyama ouvia
atônito, mas não achou prudente dizer a verdade a Kawasaki naquele momento.
Hesitou até em garantir que Mangiku estava tentando ser amigável, quanto mais
em revelar a verdade. Kawasaki estava confuso, sem saber como reagir as emoções
completamente desconhecidas daquele mundo no qual fora subitamente lançado; se
soubesse o que Mangiku sentia, talvez pensasse que não passava de mais uma
armadilha. Seus olhos viam claro demais: por mais que conhecesse os princípios
do teatro, não conseguia detectar aquela sombria presença estética que se
escondia por trás dos textos.
Chegou o novo ano e
com ele a primeira noite do novo programa.
Mangiku estava
amando, Seus astutos discípulos foram os primeiros a comentar o fato. Masuyama,
visitante frequente ao camarim de Mangiku, sentiu a verdade no ambiente.
Mangiku estava envolto no seu amor como o bicho-da-seda no seu casulo, pronto
para se transformar em borboleta. O camarim era o casulo do seu amor. Mangiku
sempre procurara se isolar, mas o contraste com o movimento festivo do ano novo
dava ao seu camarim uma seriedade silenciosa e estranhamente solene.
Na noite da estreia,
Masuyama, notando que a porta do camarim de Mangiku estava aberta, resolveu dar
uma olhada. Viu Mangiku de costas, sentado na frente do espelho, completamente
vestido para a peça, esperando o aviso para entrar em cena. Observou o tom
pálido de lilás do quimono de Mangiku, a curva suave dos ombros empoados e
seminus, a peruca negra brilhante. Em momentos como esse, no camarim deserto,
Mangiku parecia uma mulher ocupada em fiar; estava fiando o seu amor e ia
continuar para sempre, o pensamento muito longe.
Masuyama compreendeu
instintivamente que o molde para o amor daquele onnagata fora fornecido
apenas pelo teatro. O teatro estava presente o tempo todo, o teatro onde o amor
estava sempre gritando, se lamentando, derramando sangue. A musica que
celebrava os píncaros sublimes do amor soava perpetuamente nos ouvidos de Mangiku,
e cada gesto requintado do seu corpo era constantemente usado no palco para
significar amor. Ate as pontas dos dedos, nada em Mangiku desconhecia o amor.
Seus pés dentro das tabi[4]
brancas, as cores sedutoras do quimono sob o manto apenas visíveis através das
aberturas das mangas, sua nuca longa como a de um cisne, tudo estava a serviço
do amor.
Masuyama tinha
certeza de que Mangiku seria guiado na conquista do seu amor pelas emoções
grandiosas dos seus papeis no palco. O ator comum pode enriquecer seu
desempenho infundindo-o com as emoções de sua vida real, mas não Mangiku. No
momento em que Mangiku se apaixonou, os amores de Yukihime, Omiwa, Hinaginu e
de outras heroínas trágicas foram em seu auxilio.
A ideia de Mangiku
apaixonado chocava Masuyama. Aquelas emoções trágicas que desejara com tanto
ardor no seu tempo de estudante, aquelas sublimes emoções que Mangiku sempre
evocava com sua presença corpórea no palco, envolvendo suas faculdades sensuais
em chamas geladas, Mangiku estava agora visivelmente em sua vida real. Mas o
objeto dessas emoções — sem negar seu grande talento — era completamente
ignorante no que se referia ao Kabuki; não passava de um diretor jovem e
vulgar, cuja qualificarão única para ser objeto do amor de Mangiku consistia no
fato de ser um estranho naquele pais, um jovem viajante que logo deixaria o
mundo do Kabuki para nunca mais voltar.
8
Se
ao menos eu pudesse modificá-los! foi bem recebida. Kawasaki, apesar de ter anunciado sua intenção de
desaparecer depois da noite de estreia, ia ao teatro todos os dias para se
queixar do desempenho dos atores, correndo de um lado para o outro nas
passagens subterrâneas sob o palco, examinando com curiosidade os mecanismos do
alçapão, ou o banamicbi. Masuyama achou que o homem tinha algo de infantil
na sua atitude.
As criticas dos
jornais elogiaram Mangiku. Masuyama fez questão de mostra-las a Kawasaki, mas
ele limitou-se a fazer um muxoxo, como uma criança teimosa, e a dizer com
aspereza: ‘Todos representam bem. Mas não tiveram o que se pudesse chamar direção.”
Naturalmente Masuyama não repetiu para Mangiku essas palavras contundentes, e o
próprio Kawasaki se comportava muito bem quando estava com Mangiku. Contudo, o
que irritava Masuyama era o fato de que Mangiku, completamente cego no que se
referia aos sentimentos dos outros, não tivesse sequer questionado o
reconhecimento de Kawasaki em relação a sua boa vontade. Mas Kawasaki era
absolutamente insensível aos sentimentos dos outros. Este era o único traço que
Kawasaki e Mangiku tinham em comum.
Uma semana depois da
primeira apresentação da peça, Masuyama foi chamado ao camarim de Mangiku.
Sobre a mesa de Mangiku estavam dispostos amuletos e relíquias do santuário em
que ele regularmente fazia suas orações, bem como alguns docinhos de Ano-novo.
Sem duvida os doces seriam distribuídos entre seus discípulos. Mangiku deu
alguns deles a Masuyama, sinal de que estava de bom humor.
– O Sr. Kawasaki
esteve aqui hé pouco — disse ele.
– Sim, eu o vi na
porta.
– Será que está
ainda no teatro?
– Acredito que vá
ficar ate o fim de Se ao menos...
– Ele disse alguma
coisa a respeito de ter algum compromisso depois?
– Não, nada de
especial.
– Então, quero lhe
pedir um pequeno favor.
Masuyama assumiu o
ar mais compenetrado possível.
– E qual é ?
– Esta noite, compreende,
quando terminar o espetáculo... Quero dizer, esta noite.... — O rosto de
Mangiku ficou corado. Sua voz estava mais clara e estridente do que de hábito —
Esta noite, quando terminar o espetáculo, acho que gostaria de jantar com ele.
Poderia perguntar a ele se esta livre?
– Sim, eu pergunto.
– E horrível de
minha parte pedir-lhe isso, não é?
– Não, esta tudo
bem. — Masuyama percebeu que os olhos de Mangiku não percorriam mais o camarim,
mas estavam fixos, procurando decifrar sua expressão. Parecia esperar — desejar
mesmo — ver alguma perturbação em Masuyama. — Muito bem — disse Masuyama,
levantando-se imediatamente — Eu o informarei.
Assim que chegou ao
saguão, Masuyama encontrou Kawasaki vindo em sua direção; aquele encontro
casual, no meio do saguão cheio de gente, durante o intervalo, pareceu-lhe um
ato do destino. A atitude de Kawasaki não combinava com o ambiente festivo do
saguão. O ar de superioridade adotado pelo jovem parecia ridículo entre aquela
multidão de cidadãos sólidos vestidos com suas melhores roupas e que estavam no
teatro pelo simples prazer de assistir a peça.
Masuyama levou
Kawasaki para um canto e o informou sobre o convite de Mangiku.
– O que será que ele
quer de mim agora? Jantar juntos — engraçado. Não tenho nada para fazer esta
noite e não vejo razão para não ir, mas não compreendo o porquê.
– Suponho que queira
discutir alguma coisa sobre a peça.
– A peça! Eu já
disse tudo o que tinha a dizer sobre o assunto.
Nesse momento, um
desejo gratuito de fazer mal, aquela emoção geralmente associada no palco aos
vilões secundários, instalou-se no coração de Masuyama, sem que ele se desse
conta; não percebia que estava agindo agora como o personagem de uma peça.
– Não compreende —
esse convite para jantar é uma ótima oportunidade para dizer a ele tudo o que
pensa, desta vez sem poupar palavras.
– Ainda assim...
– Não acredito que
tenha coragem de dizer tudo a ele.
Essa observação
feriu o orgulho do jovem.
– Esta certo, eu
vou. Sempre achei que mais cedo ou mais tarde teria oportunidade de falar
francamente com ele. For favor, diga a Mangiku que aceito o convite.
Mangiku aparecia na
ultima parte do programa e só ficou livre no fim do espetáculo. Quando termina
o espetáculo, geralmente os atores trocam de roupa rapidamente e saem do teatro,
mas Mangiku não demonstrava nenhum sinal de pressa, enquanto se vestia, no
camarim com uma capa e um cachecol sobre o quimono de passeio. Esperava
Kawasaki. Quando este apareceu finalmente, cumprimentou Mangiku com frieza, sem
tirar as mãos dos bolsos do sobretudo.
O discípulo que
sempre atendia Mangiku como sua “camareira” apareceu correndo, como quem vem
anunciar uma calamidade.
– Começou a nevar —
informou ele, com uma mesura.
– Muita neve? —
Mangiku levou a ponta da capa ao rosto.
– Não, uma pequena pancada.
– Vamos precisar de
um guarda-chuva até o carro — disse Mangiku.
O discípulo saiu as
pressas para apanhar o guarda-chuva.
Masuyama os
acompanhou até a saída do teatro. O porteiro havia gentilmente colocado as
sandálias de Mangiku e de Kawasaki lado a lado. O discípulo de Mangiku ficou do
lado de fora, sob a neve fina, segurando o guarda-chuva aberto. A neve caia com
tanta leveza que mal aparecia contra a parede escura de concreto, no outro lado
da rua. Um ou dois flocos chegaram até o degrau da entrada do teatro.
Mangiku curvou-se
cortesmente para Masuyama.
– Vamos sair agora —
disse. O sorriso nos seus lábios foi semi-encoberto pelo cachecol. Voltou-se
para o discípulo. — Está bem. Eu levo o guarda-chuva. Gostaria que você fosse
avisar o motorista que estamos prontos.
Mangiku segurou o
guarda-chuva sobre a cabeça de Kawasaki. Quando Kawasaki com seu sobretudo e
Mangiku com sua capa saíram lado a lado, alguns flocos de neve voaram
subitamente — quase saltando — da parte superior do guarda-chuva que os
abrigava.
Masuyama os viu
partir. Era como se um guarda-chuva imenso, negro e barulhento, estivesse se
abrindo dentro do seu coração. Sentiu que a ilusão nascida quando era menino,
na primeira vez que viu Mangiku no palco, uma ilusão que ele havia mantido
intacta, mesmo depois de começar a trabalhar no Kabuki, naquele instante se
esfacelava, espalhando- se em todas as direções, como uma delicada peça de
cristal deixada cair de grande altura. Afinal, agora sei o que quer dizer
desilusão, pensou ele. O melhor que tenho a fazer e desistir do teatro.
Mas Masuyama sabia
que, ao lado da desilusão, outro sentimento se apossava dele, o ciúme. Teve
medo de pensar até onde essa nova emoção poderia leva-lo.
[1] Hanamichi — um compartimento
sob o palco, visível para os espectadores, com uma porta de alçapão. Faz parte
do cenário típico do Kabuki ou teatro popular. (N. da T.).
O texto é apaixonante. Não gostei da "chave de latão" no final. Poderia ter encerrado com a queda da peça de cristal...
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