Guy de Maupassant (1850–1893), escritor francês,
contemporâneo de Machado de Assis, considerado um dos precursores do conto
moderno. Boule de Suif foi seu primeiro conto publicado (1980) – considerado
por muitos o melhor – e traz um retrato critico da burguesia nascente na França
depois da grande Revolução, no período das guerras franco-prussianas. É um
conto mais longo (38 paginas) assim como “O alienista” de Machado de Assis, “As
neves do Kilimanjaro” do Hemingway ou mesmo “A metamorfose” do Kafka, e talvez
chegue a confundir pelo excesso de personagens , mas sem duvida um grande conto
que vale a pena ler.
Boule de Suif
Guy de Maupassant
Tradução Plinio Augusto Coelho
(Fiz
algumas modificações na tradução, entre elas o titulo. Boule de Suif, foi traduzido literalmente para o português como
Bola de Sebo. Creio, porem, que a expressão em português denigre
desnecessariamente a personagem – e afugenta ao leitor – razão pela qual
preferi manter a expressão original em francês. M.A.)
Por dias e dias, passaram pela cidade
os destroços do exército derrotado. Não eram tropas, mas sim hordas em
debandada. Os homem tinham a barba longa e suja, os uniformes em farrapos, e
avançavam cansados, sem bandeira e sem ordem. Pareciam todos acabrunhados,
curvados, incapazes de pensar ou de tomar decisões, marchavam unicamente pelo
costume e caiam cansados sempre que paravam. Viam se principalmente os mobilizados, gente pacífica, apenas
acostumada a desfrutar de suas rendas que pareciam curvar-se sob o peso do
fuzil; os jovens voluntários, fáceis
de assustar e de entusiasmar, tão prontos para o ataque como para a fuga; e entre eles alguns cullottes rouges, sobreviventes de uma divisão esfacelada em
combate; artilheiros de uniformes escuros; e, por vezes, o brilhante capacete
de um dragão de passo arrastado que seguia penosamente a marcha mais rápida dos
soldados de infantaria.
Legiões de franco-atiradores, de nomes
heroicos - os "Vingadores da Derrota", os "Cidadãos do
Sepulcro", os "Distribuidores da Morte" -passavam, por sua vez,
com ares de bandidos.
Seus chefes, antigos comerciantes de
tecidos ou de cereais, ex-vendedores de sebo ou de sabão, guerreiros improvisados,
promovidos a oficiais devido a seus escudos ou ao comprimento de seus bigodes,
cobertos de armas, de roupas e de galões, falavam alto, discutiam planos de
campanha, e pretendiam sustentar sozinhos a França agonizante sobre seus ombros
de fanfarrões; mas não raro temiam à seus próprios soldados, sujeitos
perigosos, muita vez valentes em demasia, gatunos e debochados.
Os prussianos iam entrar em Ruão, diziam.
A Guarda Nacional, que naqueles dois últimos
meses andava fazendo cautelosos reconhecimentos pelos bosques vizinhos,
fuzilando algumas vezes suas próprias sentinelas, preparando-se para o combate
quando algum coelhinho se agitava nas moitas, já havia se retirado. Suas armas,
seus uniformes, toda a mortífera aparelhagem com que ainda ha pouco assustavam
os viajantes nas estradas, tinham subitamente desaparecido.
Os
últimos soldados franceses tinham acabado de atravessar o Sena para alcançar Pont-Audemar por Saint-Sever
e Bourg-Achard; e marchando atrás
deles, o general seguia a pé, entre dois ajudantes-de-ordens, desesperado, sem
nada poder fazer com aqueles farrapos em desordem, aturdido em meio a ruina de
um povo habituado a vencer e desastrosamente batido, apesar da sua bravura
legendaria .
Depois, uma calma profunda, uma
expectativa alarmante e silenciosa ficara pairando sobre a cidade. Muitos
burgueses pançudos, emasculados pelo comércio, esperavam com angústia os
vencedores, temendo que estes considerassem como armas seus espetos de assar ou
suas grandes facas de cozinha.
A vida parecia ter parado; as lojas
estavam fechadas; as ruas desertas. As vezes
um habitante, intimidado por aquele silêncio, esgueirava-se rapidamente ao
longo dos muros.
A angústia da espera fazia desejar a chegada
do inimigo.
Na tarde do dia seguinte à partida das
tropas francesas, alguns lanceiros, saídos não se sabe de onde, atravessaram às
pressas a cidade. Depois, um pouco mais tarde, uma massa negra baixou a encosta
de Sainte– Catherine , enquanto duas outras
ondas invasoras surgiam pelas estradas de Darnetal
e de Boisguillaume. As equipes de
vanguarda daqueles três corpos, chegaram, simultaneamente e se reuniram na
praça da prefeitura; e por todas as ruas vizinhas começou a chegar o exército
alemão, marchando com seus batalhões, que faziam ressoar o chão sob o seu passo
duro e ritmado.
Instruções de comando, gritadas por uma
voz desconhecida e gutural, subiam ao longo das casas, que pareciam mortas e
desertas, enquanto por detrás das venezianas fechadas, olhos espiavam aqueles
homens vitoriosos, senhores, "por direito de guerra", da cidade, dos
bens e das vidas. Os moradores nos seus quartos sombrios sentiam o desespero
que produzem os grandes cataclismos, as convulsões destrutoras da terra, contra
as quais toda sabedoria e toda força são inúteis. Aquela mesma sensação que
surge a cada vez que se subverte a ordem estabelecida das coisas, quando a
segurança não mais existe e tudo o que era protegido pelas leis dos homens ou
da natureza se encontra à mercê de uma brutalidade inconsciente e feroz. O
tremor de terra que esmaga uma população inteira sob as casas que desmoronam; o
rio transbordante que carrega os camponeses afogados, juntamente com os cadáveres
dos bois e os caibros arrancados dos tetos; ou o exército glorioso que trucida
os que se defendem, aprisiona os inimigos, saqueia em nome da Espada e rende
graças ao seu Deus, ao troar dos canhões - são todos flagelos horríveis que
desconcertam qualquer crença na Justiça Eterna, qualquer confiança que nos
ensinaram a ter na proteção do Céu e na razão do Homem.
Mas a cada porta os pequenos
destacamentos de invasores batiam, e depois desapareciam no interior das casas.
Era a ocupação após a invasão. Cabia agora aos vencidos o dever de se mostrar
amáveis para com os vencedores.
Após algum tempo, passado o primeiro
terror, estabeleceu-se nova calma. Em muitas famílias, o oficial prussiano
comia à mesa. Era algumas vezes bem educado e, por polidez, lamentava pela
França, externando a repugnância que sentia por ter participado naquela guerra.
As pessoas reconheciam aquele sentimento; já que poderiam, cedo ou tarde, necessitar daquela proteção.
Tratando-os bem, talvez conseguissem reduzir o numero de homens a sustentar. E
por que magoar uma pessoa de quem afinal dependiam? Agir assim não seria uma
bravura e sim uma temeridade – E a temeridade não é mais um defeito dos
burgueses de Ruão, como o foi naqueles tempos heroicos das defesas que
glorificaram a cidade. – Diziam enfim, argumento inspirado na urbanidade
francesa, que não ficava mal serem corteses em casa, desde que não se
mostrassem familiares com os soldados estrangeiro em publico. Nas ruas, as
pessoas não se conheciam mais, mas dentro de casa conversava-se de bom grado e,
a cada noite, o alemão se demorava um pouco mais de tempo junto à lareira
comum.
A própria cidade retomava pouco a pouco
a normalidade. Os franceses ainda não saíam, mas os soldados prussianos
formigavam pelas ruas. Além do que, os oficiais dos hussard bleus, que arrastavam com arrogância seus enormes instrumentos
de morte pelas calçadas, não pareciam dedicar aos simples cidadãos muito mais
desprezo que os oficiais de caçadores, que no ano passado bebiam nos mesmos
cafés.
Havia no entanto qualquer coisa no ar,
qualquer coisa de sutil e desconhecida, uma intolerável atmosfera estrangeira,
como um cheiro que a tudo permeava, o cheiro da invasão. Ele enchia as casas e
as praças públicas, mudava o gosto dos alimentos, dava a impressão de que se
estava viajando, em terras distantes, em meio a tribos barbaras e perigosas.
Os vencedores exigiam dinheiro, muito
dinheiro. Os habitantes pagavam sempre; eles eram ricos. Mas quanto mais um
negociante normando se enriquece, mais ele sofre quando vê passar a outras mãos
uma parcela da sua fortuna.
No entanto, alguns quilômetros além da
cidade, seguindo o curso do rio, na direção de Croisseti, Dieppedalle ou
Biessart, os marinheiros e os
pescadores constantemente retiravam do fundo das aguas algum cadáver de alemão,
inchado no seu uniforme, morto a facada, pedradas, ou arremessado com um
empurrão do alto de uma ponte. A lama do rio encobria essas vinganças obscuras,
selvagens e legítimas, heroísmos desconhecidos, ataques mudos, mais perigosos
que as batalhas em pleno dia, ainda que sem a repercussão da glória.
Pois o ódio ao estrangeiro arma sempre
alguns mais intrépidos, prontos a morrer por uma ideia.
Enfim, como os invasores, embora
sujeitando a cidade a inflexível disciplina, não tinham praticado nenhum dos
horrores que a fama os fizera cometer no percurso de sua marcha triunfal, as
pessoas começaram a criar coragem, e a necessidade de fazer negócios moldou de
novo o coração dos comerciantes locais. Alguns tinham grandes interesses no
Havre, ocupado pelo exército francês, e pretendiam alcançar aquele porto, viajando
por terra a Dieppe, onde embarcariam.
Recorreram à influência dos oficiais
alemães que conheciam, obtendo do general-comandante uma autorização para viajar.
Foi então que uma grande diligência de
quatro cavalos foi contratada para a viagem e dez pessoas se inscreveram. Decidiram
partir em uma , terça-feira, antes do raiar do dia, para evitar qualquer
aglomeração.
Já por alguns dias a geada tinha
endurecido a terra e, na segunda- feira, lá pelas três da tarde, grossas nuvens
negras vindas do norte trouxeram a neve, que tombou ininterruptamente durante a
tarde e a noite.
As quatro e meia da manhã, os
viajantes se reuniram no pátio do Hotel Normandia, onde deviam embarcar.
Estavam ainda sonolentos e tiritavam
de frio sob os seus abrigos. Enxergava-se mal na obscuridade; e as varias
camadas de pesadas roupas de inverno fazia com que todos se parecessem com
aqueles vigários obesos em suas longas batinas. Mas dois homens se reconheceram,
um terceiro os abordou e conversaram: "Eu levo a minha mulher", disse
um. "O mesmo faço eu". "E eu também". O primeiro ainda acrescentou:
"Não voltaremos a Ruão e, se os prussianos se aproximarem do Havre, viajaremos para a
Inglaterra". Todos tinham os mesmos projetos e até se pareciam.
Porém, ninguém atrelava os cavalos.
Uma pequena lanterna carregada por um criado de cavalariça, saía de vez em
quando de uma porta escura para desaparecer imediatamente em outra. Patas de
cavalos ressoavam na terra amortecidas pelo estrume das baias e ouvia-se ao fundo
da construção uma voz de homem, falando aos animais e praguejando. Um leve
murmúrio de gritos anunciou que manejavam os arreios; esse murmúrio se tornou
em breve um frêmito claro e contínuo, cessando as vezes, depois recomeçando
numa brusca sacudida, acompanhada do surdo baque de um casco ferrado contra o
solo.
A porta fechou-se de súbito. Todo ruído
cessou. Os burgueses enregelados haviam emudecido e permaneciam imóveis e
hirtos.
Uma ininterrupta cortina de flocos
brancos brilhava, descendo sobre a terra; suavizando as formas, polvilhando
todas as coisas com uma espuma gelada e, no grande silêncio da cidade calma e
sepulta sob o inverno, apenas se escutava aquele impalpável e vago perpassar da
neve que cai – mais uma sensação que um ruído – uma aglomeração de átomos leves
que pareciam encher o espaço e cobrir o mundo.
O homem reapareceu com sua lanterna
puxando por uma corda um cavalo triste, que não parecia vir de bom grado.
Colocou-o entre os varais, prendeu os tirantes, volteou por algum tempo para arranjar
os arreios, pois só podia servir-se de uma mão, já que a outra segurava a lanterna.
Quando ia buscar o segundo animal, notou aqueles viajantes imóveis, já brancos de neve,
e perguntou: “Por que não sobem na carruagem? Ao menos ficarão abrigados.”
Eles não haviam pensado nisso e se
apressaram em subir. Os três homens instalaram suas mulheres ao fundo e subiram
em seguida; depois os outros viajantes entraram e tomaram seus lugares sem
trocar nenhuma palavra.
O chão da carruagem estava coberto de
palha, onde os pés podiam mergulhar. As senhoras ao fundo, tendo trazido
pequenos aquecedores de cobre munidos de carvão químico, acenderam seus
aparelhos e, por algum tempo, descreveram suas vantagens em voz baixa,
repetindo coisas que sabiam de há muito.
Afinal, já pronta a diligência, com
seis cavalos em vez de quatro, já que ao parecer o esforço seria mais penoso, e
uma voz, de fora, indagou: "Já subiram todos?" Outra voz, de dentro, respondeu:
"Sim". E partiram.
O carro avançava bem lentamente e com
dificuldade. As rodas afundavam na neve; a carroceria gemia, em surdos
estalidos; os animais escorregavam, resfolegavam, com as ventas fumegantes e o
gigantesco chicote do cocheiro estalava sem cessar, enrolando e desenrolando
como uma fina serpente, açoitando uma ou outra anca encurvada, que se retesava
então num esforço mais violento.
Mas imperceptivelmente o dia ia
despontando. Já não caiam mais aqueles leves flocos; que um dos viajantes,
puro-sangue Ruanense, compararia a uma chuva de algodão. Uma luz se filtrava através de grossas nuvens escuras
e pesadas, tornando mais resplandecente a planície, onde já aparecia ora uma
carreira de grandes árvores vestidas de branco, ora uma cabana encapuzada de
neve.
No carro, os passageiros observavam curiosos,
à triste claridade daquela aurora.
Ao fundo, nos melhores assentos,
cochilavam, um em frente ao outro, M. e Mme. Loiseau, atacadistas de vinho da
rua Grand-Pont.
Antigo vendedor de um patrão
arruinado, Loiseau adquirira seu patrimônio e fizera fortuna. Vendia péssimo
vinho aos pequenos negociantes do campo e era considerado entre seus amigos e
conhecidos como um espertalhão e tanto, um verdadeiro normando, cheio de manhas
e jovialidade.
Tão bem assentada estava sua reputação
que uma noite, na prefeitura, M. Tournel, autor de fábulas e canções, espírito
mordaz e fino e uma glória local, achando as damas pouco animadas lhes propôs
como diversão uma partida de “oiseau vole”
[1]. A
piada voou através dos salões do prefeito; alcançando, depois, os da cidade,
fizera rir durante um mês inteiro todas as mandíbulas da província.
Loiseau era, por outro lado, célebre
por suas farsas de toda espécie, suas brincadeiras de bom ou mau gosto; e
ninguém o mencionava sem logo acrescentar: "Impagável, esse Loiseau".
De pouca altura, apresentava um ventre
de balão, encimado por uma cara avermelhada entre duas suíças grisalhas.
Sua mulher, grande, robusta, voluntariosa,
de voz forte e decisão rápida, era a ordem e a aritmética da casa de comércio,
que ele animava com a sua alegre atividade.
Ao lado deles na carruagem se
mantinha, mais digno, pertencente a uma casta superior, M. Carré-Lamadon, homem
considerável, grande negociante de algodão, proprietário de três tecelagens,
oficial da Legião de Honra e membro do Conselho Geral. Fora durante todo o Império
chefe da oposição moderada, unicamente para pagar mais caro sua adesão à causa
que combatia com armas corteses, conforme sua própria expressão. Mme. Carré-Lamadon,
muito mais jovem que o marido, era o consolo dos oficiais de boa família
destacados na guarnição local.
Linda, mimosa, aconchegada nas suas
peles, ela estava sentada defronte ao marido e contemplava com um ar desolado o
lamentável interior da carruagem.
Seus vizinhos, o conde e a condessa
Hubert, de Bréville, usavam um dos nomes mais antigos e mais nobres da
Normandia. O conde, velho cavalheiro de bela estampa, procurava acentuar com
seus trajes a sua semelhança com o rei Henrique IV, que, segundo uma lenda
gloriosa para a família, engravidara uma dama de Bréville cujo marido, por esta razão, se tornara conde e governador
de província.
Colega de M. Carré-Lamadon no Conselho
Geral, o conde Hubert representava o partido orleanista no departamento. A
história do seu casamento com a filha de um pequeno armador de Nantes sempre permanecera em mistério.
Mas como a condessa tinha nobres maneiras, recebia melhor que ninguém e, diziam
mesmo, tinha sido amada por um dos filhos de Luís Filipe, toda a nobreza lhe
fazia festa, e o seu salão era o primeiro da região, o único onde ainda se
conservava a velha galanteria, e onde o acesso era dificílimo.
A fortuna dos Bréville, toda em propriedades,
atingia, dizia-se, quinhentas mil libras de renda.
Essas seis pessoas representavam, ao
fundo da diligência, a ala endinheirada, serena e forte da sociedade, a
"gente direita", que tem Religião e Princípios.
Por um estranho acaso, todas as
mulheres se encontravam sobre o mesmo banco; e a condessa tinha ainda como
vizinhas duas boas freiras, que desfiavam longos rosários, a murmurar
ave-marias e padre-nossos. Uma era velha, com a face toda picada de varíola,
como se tivesse recebido uma carga de chumbo em pleno rosto. A outra, miudinha,
tinha um lindo rosto polido sobre um peito de tísica, minado por essa
devoradora fé que faz os iluminados e os mártires.
Em face das duas freiras, um homem e uma
mulher atraiam os olhares de todos.
O homem bastante conhecido era
Cornudet, o democrata, terror das pessoas respeitáveis. Há vinte anos que Molhava
a sua grande barba ruiva nos chopes de todos os cafés democráticos. Tinha dado cabo,
com os irmãos e amigos, da bela herança que recebera do pai, antigo
confeiteiro, e esperava impacientemente a Republica para obter enfim o lugar
merecido por tantos gastos revolucionarias. No 4 de setembro, talvez em
consequência de uma farsa, julgara-se nomeado prefeito, mas quando quis assumir
suas funções os amanuenses da prefeitura, então únicos senhores da situação,
recusaram-se a reconhecê-lo, o que o constrangeu à retirada. Excelente sujeito,
aliás, inofensivo e serviçal, ocupava- se com incomparável ardor em organizar a
defesa. Fizera abrir buracos nas planícies, derrubar todos os arbustos das
florestas vizinhas, arranjar armadilhas por todas as e, à aproximação do
inimigo, satisfeito com os seus preparativos, retirava-se para a cidade.
Pensava agora tornar-se mais útil no Havre,
onde seriam necessários novos entrincheiramentos.
A mulher, uma dessas chamadas
galantes, era célebre por sua gordura precoce, que lhe valera o apelido de Boule de Suif (Bolinha de gordura). Miúda,
redondinha, gordinha com dedos rechonchudos estrangulados nas falanges como
fieira de curtas salsichas, com uma tez luzidia e tensa, o seio enorme a
rebentar a blusa, era no entanto apetitosa e desejada, de tal modo agradava à
vista o seu frescor. Seu rosto era uma maçã vermelha, um botão de petúnia
prestes a florir; e ali se abriam, no alto, dois magníficos olhos negros, sombreados
de grandes cílios espessos, que mais escuros os tornavam; embaixo, uma boca
encantadora, pequena, úmida para o
beijo, mobiliada de dentinhos brilhantes e microscópicos.
De resto ela possuía, pelo que diziam,
inapreciáveis qualidades.
Logo que foi reconhecida, correu um
murmúrio entre as mulheres honradas, e as expressões "prostituta" e
"vergonha publica" foram cochichadas tão alto, que ela ergueu a
cabeça. Passeou então pelos vizinhos um olhar de tal modo provocante e atrevido
que em seguida se estabeleceu um grande silencio e todos baixaram os olhos, com
exceção de Loiseau, que a espiava com um ar divertido.
Mas logo recomeçou a conversa entre as
três damas, a quem a presença daquela rapariga tornava subitamente amigas,
quase intimas. Elas pareciam formar, um foco de resistência das suas dignidades
de esposas, em face daquela vendida sem-vergonha, pois sempre o amor legal
trata com desprezo o seu confrade livre.
Os três homens também, reaproximados
por um instinto de conservadores à vista
de Cornudet, falavam de dinheiro num tom desdenhoso para com os pobres. O conde
Hubert enumerava os prejuízos que lhe haviam causado os prussianos, as perdas
que resultariam do gado roubado e das colheitas perdidas, com uma segurança de
grão-senhor dez vezes milionário, a quem essas devastações incomodariam apenas
por um ano. M. Carré-Lamadon, muito experimentado na indústria algodoeira,
tivera o cuidado de enviar para a Inglaterra seiscentos mil francos - um
refrigério que ele guardava para alguma sede eventual. Quanto a Loiseau, dera
um jeito para vender à Intendência francesa todos os vinhos comuns que lhe
restavam em depósito, de sorte que o Estado lhe devia uma formidável soma, que
ele contava receber no Havre.
E os três trocavam olhadelas rápidas e
amistosas. Embora de condições diferentes, sentiam-se irmãos, pelo dinheiro, da
grande maçonaria dos que possuem, daqueles que fazem tilintar o ouro ao
mergulhar a mão no bolso.
O carro seguia tão lentamente que às
dez da manhã ainda não tinham feito vinte e cinco quilômetros. Os homens
desceram três vezes para subir ladeiras a pé. Começavam a inquietar-se, pois
deviam almoçar em Tôtes e perdiam a
esperança de lá chegar antes da noite. Cada qual espiava, a ver se descobria
algum albergue, à beira da estrada, quando a diligencia afundou num atoleiro de
neve e foram necessárias duas horas para tirá-la dali.
A fome crescia, alterando os espíritos,
e nenhum botequim, nenhum vendedor de vinho aparecia, pois a aproximação dos
prussianos e a passagem das tropas francesas esfomeadas haviam espantado todos os
negócios.
Os homens correram às propriedades, à
beira do caminho, em busca de provisões, mas nada ali encontraram, nem mesmo
pão, pois o camponês desconfiado ocultava suas reservas, com medo de ser
pilhado pelos soldados, que, nada tendo para comer, tomavam à força o que
descobriam.
Lá pela uma hora da tarde, Loiseau
anunciou que decididamente sentia um terrível vazio no estômago. Há muito que
todos sofriam como ele; e o violento desejo de comer, aumentando sempre,
extinguira as conversações.
De tempos em tempos alguém bocejava; outro
quase em seguida o imitava; e cada qual, a seu turno, segundo seu caráter, suas
maneiras e sua posição social, abria a boca discreta ou ruidosamente, levando
depressa a mão à caverna faminta de onde saia um vapor.
Boule de Suif, por várias vezes, inclinou-se, como se procurasse qualquer coisa
debaixo de suas saias. Hesitava um segundo, olhava para os vizinhos, depois se endireitava
tranquilamente. Os rostos estavam pálidos e crispados. Loiseau afirmou que
pagaria mil francos por um presunto. Sua mulher fez um gesto para protestar;
depois acalmou-se. Sofria sempre ao ouvir falar em desperdício de dinheiro e não
compreendia nem mesmo os gracejos a esse respeito. "O fato é que eu não me
sinto bem", disse o conde. "Como é que não me lembrei de trazer
mantimentos?" Cada qual se fazia idêntica censura.
Enquanto isso Cornudet mantinha um
cantil cheio de rum; ofereceu-o; recusaram friamente. Apenas Loiseau aceitou um
gole, e quando devolveu o cantil, agradeceu: "Isso afinal é bom; aquece a
gente e engana a fome". O álcool deixou-o de bom humor e ele propôs que
fizessem como no navio da canção: comer o mais gordo dos viajantes. Essa indireta
a Boule de Suif chocou as pessoas
bem-educadas. Não responderam; apenas Cornudet sorriu. As duas boas freiras
tinham cessado de resmungar seu rosário, e com as mãos metidas nas suas grandes
mangas baixavam obstinadamente os olhos, oferecendo sem duvida ao céu o
sofrimento que lhes enviava.
Enfim, às três horas, como se encontrassem
no meio de uma planície interminável, sem uma
única aldeia à vista, Boule de
Suif, baixando-se vivamente, retirou de sob a banqueta um grande cesto
coberto com uma toalha branca.
Tirou primeiro um pequeno prato de faiança,
um fino copo de prata, depois uma vasta terrina, na qual dois frangos inteiros,
trinchados, reluziam de gordura. Percebiam-se ainda no cesto outras boas coisas
enroladas, patês, frutas, frios, provisões preparadas para uma viagem de três
dias, a fim de não tocar na cozinha dos albergues. Quatro garrafas emergiam
dentre os pacotes de comida. Ela pegou uma asa de frango e, delicadamente,
pôs-se a comê-la com um desses pãezinhos a que chamam "Regência", na Normandia.
Todos os olhares estavam voltados para
ela. Depois o cheiro se espalhou, dilatando as narinas, fazendo vir às bocas
uma saliva abundante, com uma dolorosa contração da mandíbula sob as orelhas. O
desprezo das senhoras por aquela rapariga tornava-se feroz; era como que um desejo
de matá-la ou de jogar para fora do carro sobre a neve, ela, com o seu copo de
prata, a sua cesta e as suas provisões.
Mas Loiseau devorava com os olhos a
terrina de frango. E disse: "Ainda bem que madame teve mais precauções do
que nós. Há pessoas que sabem sempre pensar em tudo". Ela ergueu a cabeça:
"Se quiser servir-se, senhor... ... difícil jejuar desde a
madrugada". Ele concordou: "Francamente não me recuso, estou que não
posso mais. Na guerra como na guerra, não é, madame?" E, lançando um olhar
a sua volta, acrescentou: "Num momento como este, da gosto encontrar atenciosas".
Trazia um jornal, que desdobrou para não manchar as calças, e, com a ponta da faca
que sempre guardava no bolso, espetou uma coxa toda envernizada de gordura,
despedaçou-a com os dentes e mastigou-a depois com tão evidente satisfação que
se ouviu no veiculo um grande suspiro de angustia.
Mas Boule de Suif, com uma voz humilde e suave, convidou as boas freiras
a partilharem da sua refeição. Ambas aceitaram instantaneamente e, sem erguer
os olhos, puseram-se a comer muito depressa, depois de balbuciar
agradecimentos. Cornudet tampouco
recusou o oferecimento de sua vizinha; e formaram com as religiosas uma espécie de mesa,
estendendo jornais sobre os joelhos.
As bocas abriam-se e fechavam-se sem
cessar, absorviam, mastigavam, engoliam ferozmente. Loiseau, no seu canto,
trabalhava com energia e, em voz baixa, induzia sua mulher a imitá-lo. Ela
resistiu por muito tempo; e finalmente, após uma contração que lhe percorreu as
entranhas, cedeu. Então o marido, modulando a voz, perguntou se a
"encantadora companheira" lhe permitia oferecer um pedacinho a Mme. Loiseau.
"Mas certamente, meu senhor", respondeu Boule de Suif com um sorriso amável, e estendeu a terrina.
Houve um embaraço quando desarrolharam
a primeira garrafa de Bordeaux: só havia um copo. Este correu de mão em mão,
depois de devidamente enxugado. Apenas Cornudet, por galanteria sem duvida,
pousou os lábios no lugar ainda úmido
dos lábios de sua vizinha.
Então, cercados de pessoas que comiam,
sufocados pelas emanações dos alimentos, o conde e a condessa de Bréville, bem
como M. e Mme. Carré-Lamadon, sofreram o suplicio que conservou o nome de Tântalo.
De súbito, a jovem senhora do manufatureiro soltou um suspiro que fez
voltarem-se as cabeças; estava branca como a neve do campo; seus olhos fecharam-se,
sua fronte também: ela perdera os sentidos. O marido, transtornado, implorava socorro
a todo o mundo. Ninguém sabia o que fazer, quando a mais velha das religiosas,
sustentando a cabeça da enferma, lhe meteu entre os lábios o copo de Boule de Suif e a fez engolir algumas
gotas de vinho. A linda senhora moveu-se, abriu os olhos, sorriu e declarou com
voz moribunda que se sentia agora muito bem. Mas para que o acidente não se
renovasse a freira obrigou-a a beber um copo cheio de Bordeaux, acrescentando:
"é fome, não é outra coisa".
Então, Boule de Suif, enrubescida e confusa, balbuciou, olhando os quatro
viajantes que ainda se achavam em jejum: "Meu Deus, se eu pudesse oferecer
a esses cavalheiros e a essas damas..." E calou-se, temendo haver
praticado um ultraje. Loiseau tomou a palavra: "Meu Deus, em casos como
este, todos são irmãos e devem ajudar-se. Vamos, senhoras, nada de cerimônias,
aceitem, que diabo! Sabemos nós se ao menos encontraremos uma casa onde passar
a noite? No andar em que vamos, n„o estaremos em Tôtes antes de amanhã ao meio-dia". Hesitavam. Ninguém ousava
assumir a responsabilidade do sim.
Mas o conde resolveu a questão.
Voltou-se para a gorda rapariga intimidada e, assumindo o seu ar de cavalheiro,
disse-lhe: “Nós aceitamos com reconhecimento, madame.”
O primeiro passo é que custava. Uma
vez transposto o Rubicão, agiram livremente. O cesto foi esvaziado. Continha
ainda patê de foie gras, paté de mauvietter, um pedaço de língua
defumada, peras de Crassane, um queijo de Pont-L’Evéque,
bolinhos e também uma vasilha cheio de pepinos e cebolas em vinagre, pois Boule de Suif, como todas as mulheres,
adorava as coisas cruas.
Não podiam comer as provisões daquela
rapariga sem lhe falar. Conversaram, a principio com reserva, e depois, visto
que ela se mantinha muito bem, com mais abandono. Mmes. de Bréville e Carré-Lamadon,
que possuíam um grande savoir-vivre,
foram polidas com delicadeza. Principalmente a condessa mostrou essa amável
condescendência das damas de alta estirpe a que nenhum contato pode macular, e
foi de fato encantadora. Mas a robusta Mme. Loiseau, que tinha uma alma de policial,
permaneceu intratável, falando pouco e comendo muito.
Falaram da guerra, naturalmente.
Contaram coisas horríveis dos prussianos, rasgos de bravura dos franceses; e
toda aquela gente que fugia prestava homenagem à coragem dos outros. Logo
começaram as historias pessoais, e Boule
de Suif, com emoção verdadeira, com o calor de palavras que têm às vezes
essas mulheres para exprimir seus encantos naturais, contou como havia deixado
Ruão: “Supus a principio que poderia ficar. Tinha a casa cheia de provisões e
preferia alimentar alguns soldados a expatriar-me sabe Deus para onde. Mas
quando vi esses tais prussianos, a sentimento foi mais forte do que eu. Eles me
revoltaram o sangue de raiva, e eu chorei de vergonha todo o dia. Ah! se eu
fosse homem... Eu olhava da minha janela aqueles porcos com os seus capacetes
pontudos; e a minha criada me segurava as mãos para impedir que eu lançasse minha
mobília no lombo deles. Depois chegaram alguns para alojar-se na minha casa:
então saltei à goela do primeiro deles. Eles não são mais difíceis de
estrangular do que os outros! E eu teria liquidado aquele se não me houvessem
puxado pelos cabelos. Depois disso, tive de esconder-me. Afinal, quando
encontrei uma ocasião, parti. E aqui estou.
Felicitaram-na muito. Ela crescia na
estima de seus companheiros, que não se haviam mostrado tão decididos. E
Cornudet, ao ouvi-la, conservava um sorriso aprovador e benévolo de apóstolo;
assim como um sacerdote que ouve um devoto louvar a Deus, pois os democratas
barbudos têm o monopólio do patriotismo, como os homens de batina o têm da
religião. Falou por sua vez num tom doutrinário, com a ênfase aprendida nas
proclamações que afixavam cada dia nos muros, e terminou com um rapto de eloquência,
no qual desancava magistralmente "esse crápula do Badinguet".
Mas Boule de Suif logo se agastou, pois era bonapartista. Ficou vermelha
como um tomate e gaguejava de indignação: “Ah! eu queria era ver um de vocês no
lugar dele! Havia de ser muito bonito! Foram vocês que traíram esse homem! Só
faltava deixar a França, se fossemos governados por vagabundos como vocês. Cornudet,
impassível, mantinha um sorriso desdenhoso e superior, mas sentia-se que
estavam para chegar os palavrões quando o conde interveio e acalmou, não sem
custo, a rapariga exasperada, proclamando que todas as opiniões sinceras eram
respeitáveis. No entanto, a condessa e a manufatureira, que tinham na alma o ódio
desarrazoado que a gente direita dedica à República e essa instintiva ternura
que têm todas as mulheres pelos governos de penacho e despotismo, sentiam- se,
a contragosto, atraídas por aquela prostituta cheia de dignidade, cujos
sentimentos tanto se assemelhavam aos seus.
O cesto estava vazio. As dez pessoas haviam-no
esgotado sem pena, lamentando que não fosse maior. A conversa continuou por
algum tempo, porem menos animada, depois de haverem comido.
Caía a noite, a obscuridade pouco a
pouco se tornou profunda e o frio, mais sensível durante as digestões, fazia
estremecer Boule de Suif, apesar da
sua gordura. Então Mme. Bréville lhe ofereceu o seu aquecedor, cujo carvão
desde a manhã fora várias vezes substituído, e a outra logo o aceitou, pois
tinha os pés gelados. Mmes. Carré-Lamadon e Loiseau emprestaram os seus às
religiosas.
O cocheiro acendera as lanternas.
Estas focavam vivamente em uma nuvem de vapor formada acima da anca suarenta
dos cavalos e, de ambos os lados da estrada, a neve, parecia ir caindo sob o
reflexo móvel das luzes.
Não se distinguia mais nada do carro;
mas de súbito houve um movimento entre Boule
de Suif e Cornudet; e Loiseau, cujo olhar sondava a treva, julgou ver o homem
das grandes barbas afastar se rapidamente, como se houvesse recebido algum bom
golpe lançado em silêncio.
Pequenos pontos brilhantes surgiram à
frente, na estrada. Era Tôtes. Tinham
andado onze horas, o que, com as duas horas divididas em quatro períodos para
alimentação e repouso dos cavalos, perfazia treze. Entraram na vila, parando
diante do Hotel do Comércio.
Abriu-se a portinhola. Um rumor
bastante conhecido fez estremecer a todos os viajantes; eram as batidas da
bainha de uma espada contra o solo. E logo a voz de um alemão gritou qualquer
coisa.
Embora a diligencia estivesse imóvel,
ninguém descia, como se esperassem ser massacrados na saída. Nisto apareceu o
condutor, empunhando uma das suas lanternas, que clareou subitamente, até o
fundo, as duas fileiras de caras assustadas, cujas bocas estavam abertas e os
olhos desnorteados de surpresa e temor.
Ao lado do cocheiro mantinha-se, em
plena luz, um oficial alemão, um jovem alto, excessivamente delgado e loiro,
apertado em seu uniforme como uma rapariga em seu espartilho, e apertando ao
lado o seu capacete chato e luzidio, que o fazia assemelhar-se ao porteiro de
um hotel inglês. Seu desmesurado bigode de longos pelos retos afinava-se
indefinidamente de cada lado, terminando por um
único fio loiro, tão delgado, que não se percebia o fim; parecia pesar
sobre os cantos da boca e, repuxando as bochechas, imprimia-lhe aos lábios uma
prega descaída.
Num francês de alsaciano, convidou os
viajantes a descerem, dizendo num tom ríspido: “Queiram descer, senhoras e
senhores.”
As duas freiras desceram primeiro, com
uma docilidade de santas mulheres habituadas a todas as submissões. Em seguida
apareceram o conde e a condessa, seguidos do manufatureiro e de sua mulher, e
depois, Loiseau levando pela frente a sua grande cara-metade. Este, ao pisar em terra, disse ao oficial:
"Boa-noite, senhor", mais por prudência do que por polidez. O oficial,
insolente como os todo-poderosos, olhou-o sem responder.
Boule de Suif e Cornudet, embora estivessem mais perto da portinhola, desceram
por último, graves e altivos perante o
inimigo. A gorda rapariga tratava de dominar-se e de parecer calma; o democrata
atormentava num gesto trágico e um pouco
trêmulo a sua longa barba ruiva. Queriam guardar dignidade, sabendo que em tais
encontros cada qual representa um pouco o seu país; e revoltados ambos pela
docilidade de seus companheiros, tratava ela de mostrar-se mais altiva que as
suas vizinhas, as mulheres honestas, ao passo que ele, sentindo que devia dar o
exemplo, continuava em sua atitude a missão de resistência a que dera início
com a obstrução das estradas.
Entraram na vasta cozinha do albergue,
e o alemão, tendo exigido a apresentação da ordem de partida assinada pelo
general-comandante, onde vinham mencionados os nomes, características e
profissão de cada viajante, examinou longamente a todos eles, comparando as
pessoas com os dados escritos.
Depois disse bruscamente: "Está
bem". E desapareceu.
Todos então respiraram. Como ainda
tivessem fome, foi encomendada a ceia. Tomaria meia hora para ficar pronta; e,
enquanto as duas criadas se ocupavam disso, foram visitar os quartos.
Achavam-se todos estes num longo corredor que terminava por uma porta
envidraçada marcada com um número bem visível.
Finalmente iam sentar se à mesa,
quando o próprio dono do albergue apareceu. Era um antigo negociante de
cavalos, homenzarrão asmático, sempre às voltas com pigarros e ronqueiras. Seu
pai lhe transmitira o nome de Follenvie. Ele indagou: “Mlle. Elisabeth Rousset?”
Boule de Suif estremeceu, voltou-se: “Sou eu.”
“Mademoiselle, o oficial prussiano
quer falar-lhe imediatamente.”
“A mim?”
“Sim, se é mesmo Mlle. Elisabeth
Rousset.”
Ela perturbou-se, refletiu um segundo
e depois declarou redondamente: “ ... é possível, mas eu não irei.”
Fez-se um movimento em torno dela;
todos discutiam, procurando a causa de tal ordem. O conde aproximou-se: “A
senhora tem razão, madame, mas a sua recusa pode acarretar dificuldades
consideráveis, não somente para a senhora, mas até para todos os seus
companheiros. Nunca se deve resistir àqueles que são mais fortes. Esta
deliberação seguramente não pode oferecer perigo algum; é sem dúvida para
satisfazer alguma formalidade esquecida.
Todos o apoiaram, instaram com ela,
pediram-lhe, aconselharam-na, e acabaram por convencê-la; pois todos temiam as
complicações que poderiam resultar de uma cabeçada. Ela afinal declarou: “...
pelos senhores que obedeço, podem crer!”
A condessa tomou-lhe a mão: “E nós
todos lhe agradecemos.”
Ela saiu. Esperaram-na para sentar-se
á mesa. Cada qual lamentava por não ter sido chamado, em lugar daquela rapariga
violenta e irascível, e preparava mentalmente servilismos para o caso em que o
reclamassem por sua vez.
Mas, ao cabo de dez minutos, ela
reapareceu, resfolegante, vermelha, exasperada. E balbuciava: “Oh! o canalha! o
canalha!”
Todos a cercaram para saber, mas Boule de Suif não disse nada; e, como o
conde insistisse, respondeu com grande dignidade: “Não, isso é só comigo, não
posso falar.
Sentaram-se então ao redor de uma grande
sopeira, de onde emanava um perfume de couve. Apesar do incidente, a ceia foi
alegre. A cidra era boa; o casal Loiseau e as freiras serviram-se dela por economia.
Os outros pediram vinho; Cornudet reclamou cerveja. Tinha ele um modo
particular de abrir a garrafa, fazendo espumar o líquido, reverenciando e inclinando
o copo, que erguia em seguida entre o lampião e os olhos, para bem apreciar a
cor. Quando bebia, a sua grande barba, que conservava o matiz de seu líquido amado,
parecia tremer de ternura; seus olhos envesgavam para não perder de vista a
bebida, e ele tinha a impressão de estar preenchendo a única função para a qual nascera. Dir-se-ia
que estabelecia no espírito uma aproximação e como que uma afinidade entre as
duas grandes paixões que ocupavam toda a sua vida: a Cerveja e a Revolução; e
certamente não podia degustar uma sem pensar na outra.
M. e Mme. Follenvie jantavam na extremidade
da mesa. O homem, arquejando como uma locomotiva emperrada, tinha muita pressão
no peito para que pudesse falar enquanto comia; mas a mulher não se calava
nunca. Contou todas suas impressões quando da chegada dos prussianos, o que
eles faziam, o que diziam. Abominava-os, em primeiro lugar porque lhe custavam dinheiro
e depois porque ela possuía dois filhos no exército. Era a condessa a quem principalmente
se dirigia, lisonjeada por conversar com uma dama de qualidade.
Depois baixava a voz para contar
certas coisas delicadas, e o marido, de tempos em tempos, a interrompia:
"Seria melhor que ficasse quieta, Mme. Follenvie". Mas a esta pouco
se lhe dava, e prosseguia: “Sim, madame, essa gente não faz senão comer batata
e porco, e depois porco e batata. E não se vá acreditar que sejam limpos. Qual!
Sujam por toda parte, com perdão da palavra. E se a senhora os visse fazer
exercícios durante horas e dias... Ficam todos num campo - e marcha para aqui!
marcha para ali! Se eles ao menos cultivassem a terra ou trabalhassem nas
estradas em seu país! Mas não, madame, esses militares não prestam serviço a
ninguém! ... preciso que o pobre povo os alimente, para que eles não aprendam
nada mais a não ser massacrar. Eu não passo de uma mulher velha e sem educação,
mas quando os vejo nesse trabalho árduo de manhã à noite, digo com os meus
botões: Quando há pessoas que fazem tantas descobertas para ser úteis, é justo que outros se deem tanto
trabalho para ser prejudiciais? Não é uma verdadeira abominação matar gente, sejam
prussianos, ou ingleses, ou polacos ou franceses? Quando a gente se vinga de
alguém que nos fez mal, não está direito, pois nos condenam. Mas quando exterminam
os nossos rapazes como caça, com fuzis, então está muito direito, pois dão condecorações
aos que matam mais. Não, madame, eu nunca compreenderei isso!”
Cornudet elevou a voz: “A guerra é uma
barbárie quando atacam um vizinho pacífico; e é um dever sagrado quando se
trata de defender a pátria.
A velha baixou a cabeça: “Sim, quando
nos defendemos, È outra coisa. Mas não seria preferível matar a todos os reis
que fazem guerras por sua alta recreação?
O olhar de Cornudet inflamou-se:
“Bravos, cidadã!”, disse ele.
M. Carré-Lamadon refletia
profundamente. Embora fanático dos ilustres capitães, o bom senso daquela conterrânea
fazia-o pensar na opulência que trariam a um país tantos braços desocupados e
por conseguinte ruinosos, tantas forças mantidas improdutivas, se os
empregassem nos grandes trabalhos industriais, que demandarão séculos para se
realizarem.
Loiseau, deixando o seu lugar, foi
conversar em voz baixa com o proprietário do albergue. O homem ouvia, tossia e
escarrava; o seu enorme ventre saltitava de alegria com os gracejos do vizinho;
e ele acabou encomendando a Loiseau seis pipas de Bordeaux para a primavera,
depois que os prussianos se houvessem retirado.
Mal terminada a ceia, como estavam
mortos de fadiga, foram todos deitar-se.
No entanto Loiseau, que observava as
coisas, fez a esposa deitar-se, depois colou, ora o ouvido, ora o olho, ao
buraco da fechadura, para tratar de descobrir o que ele chamava de "os
mistérios do corredor".
Ao cabo de uma hora mais ou menos
ouviu um rumor, olhou depressa e viu Boule
de Suif, que parecia mais gorda ainda num penteador de cachemira azul,
rendado de branco. Tinha uma vela na mão e caminhava em direção à porta envidraçada,
ao fundo do corredor. Mas uma porta ao lado entreabriu-se e, quando ela voltou,
após alguns minutos, Cornudet a seguia, em mangas de camisa. Falavam baixo,
depois pararam. Boule de Suif parecia
defender com energia a entrada de seu quarto. Loiseau, infelizmente, não
entendia as palavras, mas, no fim, como elevassem a voz, pôde apanhar algumas.
Cornudet dizia com vivacidade: “Vamos, não seja tola, que importa isso?”
Ela tinha um ar indignado e respondeu:
“Não, meu caro, há momentos em que não se pode fazer essas coisas. E depois,
aqui, seria uma vergonha.”
Ele não compreendia, sem dúvida, e
perguntou por quê. Então ela se irritou, elevando mais a voz: “Por quê? Você
não compreende por quê? Quando há prussianos em casa, no quarto ao lado,
talvez?”
Ele calou-se. Aquele pudor patriótico
de rameira que não se deixava acariciar perto do inimigo decerto lhe reavivara
a dignidade desfalecente, pois Cornudet, contentando-se em beijá-la, recolheu-se
ao quarto nas pontas dos pés.
Loiseau, muito excitado, deixou a
fechadura, deu um passo de dança, enfiou a touca e ergueu a coberta sob a qual
jazia a dura carcaça de sua companheira, a quem despertou com um beijo,
murmurando: “Gostas de mim, querida?”
Então toda a casa se tornou
silenciosa. Mas logo se elevou em alguma parte, que tanto podia ser a adega
como o sótão, um ronco potente, monótono, regular, um ruído surdo e prolongado,
com estremecimentos de caldeira sob pressão. M. Follenvie dormia.
Como tinham combinado partir no dia
seguinte às oito horas, todos se reuniram cedo na cozinha; mas a diligência,
cujo toldo tinha uma capa de neve, erguia-se solitária no meio do pátio, sem
cavalos e sem condutor. Este foi em vão procurado nas estrebarias, nas ferragens,
nas cocheiras. Então todos os homens resolveram procura-lo pelos arredores e
saíram. Foram dar na praia, com a igreja ao fundo e duas fileiras de casas
baixas, onde se avistavam soldados prussianos. O primeiro com que toparam descascava
batatas. O segundo, mais adiante, lavava o salão de barbeiro. Um outro, barbudo
até os olhos, beijava um garoto que chorava e embalava-o sobre os joelhos para
acalmá-lo. E as corpulentas camponesas, cujos homens estavam incorporados ao
exército, indicavam por gestos, aos seus vencedores obedientes, o trabalho que era
preciso fazer: rachar lenha, temperar a sopa, moer o café. E um deles até
lavava os panos de sua hospedeira, uma velhinha decrépita.
O conde, espantado, interrogou o
sacristão, que saía do presbitério. O velho rato de igreja respondeu: “Oh!
esses não são maus; não são prussianos, pelo que dizem. São de mais longe, não
sei bem de onde. E todos deixaram mulher e filhos em sua terra. Esta guerra não
é nada divertida para eles. Estou certo de que lá também se chora pelos homens.
E isso trará uma grande miséria tanto para eles quanto para nós. Aqui, ainda,
não se é muito infeliz de momento, porque eles não fazem mal e trabalham como
se estivessem na própria casa. Entre pobres, senhor, é preciso que uns se ajudem
aos outros. Os grandes é que fazem a guerra.
Cornudet, indignado com a entente
cordiale estabelecida entre vencedores e vencidos, retirou-se, preferindo
encerrar-se no albergue. Loiseau soltou uma piada: "Eles repovoam". M.
Carré-Lamadon observou gravemente: "Eles reparam". Mas não
encontravam o cocheiro. Afinal o acharam no café da aldeia, fraternalmente
sentado à mesa com a ordenança do oficial.
O conde o interpelou: “Não lhe tinham
dado ordem de atrelar para as oito horas?”
“Sim, mas deram-me outra depois.”
“Qual?”
“De não atrelar mais.”
“Quem lhe deu essa ordem?”
“O comandante prussiano.”
“Por quê?”
“Não sei. Pergunte a ele. Proíbem-me
de atrelar e eu não atrelo. Só isso.”
“Foi ele mesmo quem lhe disse?”
“Não, senhor, foi o hoteleiro que me
transmitiu a ordem.”
“Quando?”
“Ontem, à noite, quando eu ia
deitar-me.”
Os três homens recolheram-se bastante
inquietos.
Reclamaram a presença de M. Follenvie,
mas a criada respondeu que o patrão, devido à sua asma, não se levantava antes
das dez horas. Tinha até formalmente proibido que o acordassem mais cedo, salvo
em caso de incêndio.
Quiseram avistar-se com o oficial, mas
isso era absolutamente impossível, embora ele morasse no albergue. Apenas M. Follenvie
tinha autorização para lhe falar, no tocante a assuntos civis. Então esperaram.
As mulheres subiram aos seus quartos, ocupando-se de mil e uma insignificâncias.
Cornudet instalou-se junto à chaminé
da cozinha, onde estalava um vigoroso fogo. Mandou trazer para ali uma das
mesinhas do café, um canecão de cerveja, e puxou do seu cachimbo, que gozava
entre os democratas de uma consideração quase igual à sua, como se tivesse
servido à pátria, servindo a Cornudet. Era um soberbo cachimbo de espuma,
admiravelmente enegrecido, tão escuro como os dentes de seu dono, mas perfumado,
recurvo, luzidio, familiar à sua mão, e que completava sua fisionomia. E ele
ficou imóvel, com os olhos ora fixos nas chamas, ora na faixa branca que orlava
a sua bebida. A cada gole passava com um ar satisfeito os longos dedos magros
pelos longos cabelos sebosos, enquanto chupava o bigode franjado de espuma.
Loiseau, sob o pretexto de
desentorpecer as pernas, foi tentar vender vinho nos estabelecimentos das
redondezas. O conde e o manufatureiro puseram-se a conversar sobre política. Prognosticavam
o futuro da França. Um tinha fé nos Orleans, o outro num salvador desconhecido,
um herói que se revelaria quando tudo parecesse perdido: um Du Guesclin, uma
Joana d'Arc talvez... ou um outro Napoleão I... Ah! se o príncipe imperial não
fosse tão jovem! Cornudet, ouvindo-os, sorria, como um homem que conhece a
chave dos destinos.
Às dez horas M. Follenvie apareceu e
todos se apressaram em interrogá-lo. Mas ele nada mais pôde fazer que repetir
duas ou três vezes, sem uma variante, estas palavras: “O oficial assim me
falou: "Monsieur Follenvie, o senhor proibirá que atrelem amanhã a diligência
desses viajantes. Entendeu? ... Isso é tudo".
Pretenderam então falar com o oficial.
O conde lhe enviou o seu cartão, ao qual M. Carré-Lamadon acrescentou seu nome
e todos os seus títulos. O prussiano mandou dizer que receberia os dois homens
depois que houvesse almoçado, isto é, pela uma hora.
As senhoras reapareceram e todos
comeram um pouco, apesar da inquietação. Boule
de Suif parecia enferma e prodigiosamente perturbada.
Terminaram o café, quando a ordenança
veio chamar os dois emissários.
Loiseau juntou-se aos dois primeiros;
mas como procurassem arrastar Cornudet para emprestar mais solenidade ao ato,
ele declarou altivamente que jamais pretendia ter quaisquer relações com os
alemães; e voltou para o seu canto, encomendando outro canecão.
Os três homens subiram e foram
introduzidos no mais belo quarto do albergue, onde o oficial os recebeu
recostado numa poltrona, com os pés na chaminé, fumando um longo cachimbo de porcelana e envolto num flamante
robe de chambre, pilhado sem dúvida na residência abandonada de algum burguês
de mau gosto. Ele não se ergueu, não os cumprimentou, não os olhou. Apresentava
uma esplêndida demonstraçao da insolência natural ao militar vitorioso.
Passados alguns instantes, disse
afinal: “Que querem?”
O conde tomou a palavra: “Desejamos
partir, senhor.”
“Não.”
“Posso saber a causa de tal recusa?”
“... porque eu não quero.”
“Lembro-lhe respeitosamente, senhor,
que o general-comandante nos concedeu licença para ir a Dieppe. E eu não creio
que tenhamos feito alguma coisa para merecer tal severidade.
“ Eu não quero. Acabou-se! Podem descer.”
Os três inclinaram-se e bateram em
retirada. A tarde foi lamentável. Não compreendiam nada daquele capricho do
alemão; e as ideias mais singulares perturbavam seus cérebros. Todos permaneceram
na cozinha e discutiam infindavelmente, imaginando coisas inverossímeis.
Queriam talvez guardá-los como reféns? Mas com que fim? Ou levá-los prisioneiros?
Ou, ainda, exigir-lhes um resgate considerável? A este último pensamento, o pânico foi enorme. Os
mais ricos eram os mais aterrorizados, vendo-se já coagidos, para resgatar a
vida, a despejar bolsas cheias de ouro entre as mãos daquele soldado insolente.
E escarafunchavam os miolos para descobrir mentiras aceitáveis, dissimular as
suas riquezas, fazer-se passar por pobres, muito pobres. Loiseau tirou a
corrente do relógio e ocultou-a no bolso. A noite, que caía, aumentou as
apreensões. Acenderam o lampião e, como ainda faltavam duas horas para o jantar,
Mme. Loiseau propôs uma partida de trinta e um. Seria uma distração. Aceitaram.
O próprio Cornudet, tendo apagado o cachimbo por polidez, tomou parte no jogo.
O conde baralhou as cartas,
distribuiu. Boule de Suif tinha o
melhor jogo e logo o interesse da partida atenuou o temor que pesava sobre os espíritos.
Mas Cornudet em seguida se apercebeu de que o casal Loiseau se combinavam para
trapacear.
Como se dirigiam à mesa, M. Follenvie
reapareceu. E, com a sua voz rouca, pronunciou: “O oficial prussiano manda
perguntar a Mme. Elisabeth Rousset se ela ainda não mudou de opinião.”
Boule de Suif permaneceu de pé, muito pálida; depois tornando-se subitamente
vermelha, ficou tão sufocada de cólera que não podia falar. Afinal explodiu: “Diga
a esse canalha, a esse porco, a esta peste de alemão que eu nunca consentirei.
Compreende bem? Nunca! Nunca!”
O gordo estalajadeiro retirou-se. Então
Boule de Suif foi cercada, interrogada,
solicitada por todo o mundo para desvendar aquele mistério. A princípio
resistiu, mas logo se deixou arrebatar: “O que ele quer... O que ele quer...
Ele quer dormir comigo!”, gritou ela. Ninguém se chocou com a frase, tão viva
foi a indignação. Cornudet quebrou o seu canecão ao pousá-lo violentamente sobre
a mesa. Era um clamor de reprovação contra aquele ignóbil sujeito, um sopro de cólera,
uma união de todos para a resistência, como se houvessem exigido, a cada um,
uma parte do sacrifício exigido dela. O conde declarou com desgosto que aqueles
homens se comportavam à maneira dos
antigos bárbaros. As mulheres, sobretudo, testemunhavam a Boule de Suif uma comiseração enérgica e carinhosa. As duas
freiras, que só apareciam nas refeições, tinham baixado a cabeça e não diziam
nada.
Em todo caso, jantaram logo que passou
o primeiro furor. Mas falaram pouco: estavam todos entregues a seus
pensamentos.
As senhoras se recolheram cedo; e os
homens, fumando, organizaram um écarté,
para o qual foi convidado M. Follenvie, a quem pretendiam interrogar habilmente
sobre os meios de vencer a resistência do oficial. Mas ele só pensava em suas cartas,
sem nada ouvir, sem nada responder, e repetia sem cessar: "Ao jogo,
senhores, ao jogo!" Sua atenção estava de tal modo tensa que ele se
esquecia de cuspir, o que lhe enchia às vezes o peito de ressonâncias de um
Órgão. Seus pulmões, arquejantes, ofereciam toda a gama da asma, desde as notas
graves e profundas até as rouquidões agudas dos frangos que começam a cantar.
Recusou-se a subir quando a mulher,
que caía de sono, veio buscá-lo. Então ela partiu sozinha, pois era "da
manhã", sempre se levantando com o sol, ao passo que o seu homem era
"da noite", sempre pronto a passá-la com os amigos. E ele gritou-lhe:
"Não se esqueça da minha gemada". E continuou o jogo. Quando viram que
nada podiam arrancar dele, declararam que já era tempo de recolher-se, e cada
qual foi para a sua cama.
Levantaram-se ainda mais cedo no dia
seguinte, com uma indeterminada esperança, um desejo maior de ir embora e o
terror do dia que deveriam passar naquele horrível albergue.
Ah! os cavalos continuavam na
estrebaria, o cocheiro permanecia invisível. Foram, por graça, rondar em torno
da diligência.
O almoço foi bastante triste; e
produzira-se como que um esfriamento para com Boule de Suif, pois a noite, que traz conselhos, modificara um pouco
as opiniões. Agora, quase que odiavam aquela rapariga, por não ter ido
encontrar-se secretamente com o prussiano, a fim de dar, pela manhã, uma boa surpresa
aos seus companheiros de viagem. Haveria coisa mais simples? E depois, quem
ficaria sabendo? Ela bem podia salvar as aparências, dizendo ao oficial que só
o fazia de pena dos viajantes. E aquilo, para ela, tinha afinal tão pouca
importância!
Mas ninguém confessava ainda tais
pensamentos.
De tarde, como se aborreciam muito, o
conde propôs um passeio pelos arredores da vila. Todos se abrigaram com
cuidado, e o pequeno grupo partiu, com exceção de Cornudet, que preferia ficar
perto do fogo, e as freiras, que passavam os dias na igreja ou em companhia do
padre.
O frio, mais intenso dia a dia, picava
cruelmente o nariz e as orelhas; os pés se tornavam tão dolorosos que cada
passo era um sofrimento. E, quando avistaram o campo, este lhes pareceu tão
terrivelmente lúgubre sobre aquela brancura ilimitada, que todos em seguida
deram meia-volta, de alma gelada e coração aflito.
As quatro mulheres caminhavam na
frente; seguiam os três homens um pouco atrás.
Loiseau, que compreendia a situação,
perguntou de súbito se "aquela mulher" ainda os faria ficar por muito
tempo em semelhante lugar. O conde, sempre cortês, disse que não se podia
exigir de uma mulher um sacrifício tão penoso, e que ela deveria resolver isso
por si mesma. M. Carré-Lamadon observou
que, se os franceses fizessem como se esperava uma contra-ofensiva por Dieppe,
o encontro só poderia dar-se em Tôtes.
Esta reflexão deixou os dois outros preocupados. “E se fugíssemos a pé?” sugeriu
Loiseau. O conde ergueu os ombros: “Com
essa neve? E com as nossas mulheres? E depois seríamos em seguida perseguidos,
alcançados em dez minutos e trazidos prisioneiros à mercê dos soldados.” Era
verdade; calaram-se. As damas falavam de modas; mas um certo constrangimento
parecia desuni-las.
De repente, na extremidade da rua,
apareceu o oficial. Sobre a neve que fechava o horizonte ele desenhava o seu
grande perfil de vespa de uniforme e marchava de joelhos afastados, com esse
movimento peculiar dos militares que se esforçam por não macular as botas
cuidadosamente lustradas.
Inclinou-se ao passar pelas senhoras e
olhou desdenhosamente para os homens, que tiveram, aliás, a dignidade de não
descobrir-se, embora Loiseau esboçasse um gesto para retirar o chapéu.
Boule de Suif ficara vermelha até as orelhas; e as três mulheres casadas sentiam uma
grande humilhação ao serem encontradas, por aquele soldado, na companhia daquela
rapariga que ele tratava tão grosseiramente.
Então falaram dele, do seu aspecto, da
sua casa. Mme Carré-Lamadon, que conhecera muitos oficiais e os avaliava como
conhecedora, não achava aquele de todo mau; lamentava até que ele não fosse
francês, pois daria um bonito hussardo, por quem todas as mulheres decerto
cairiam.
Uma vez recolhidos, não sabiam mais o
que fazer. Chegavam até a trocar palavras ásperas por coisas insignificantes. O
jantar, silencioso, durou pouco, e cada qual foi para o quarto, esperando
dormir para passar o tempo.
Desceram no dia seguinte com as
fisionomias fatigadas e o desespero na alma. As mulheres mal falavam com Boule de Suif.
Um sino badalou. Era um batizado. A
gorda rapariga tinha um filho a cuidado de uns camponeses de Yvetot. Não chegava a vê-lo uma vez por ano
e nunca se lembrava dele. Mas o pensamento naquele que iam batizar
despertou-lhe no coração uma ternura súbita e violenta pelo seu e ela quis por
força assistir à cerimônia.
Logo que ela partiu, todos se
entreolharam, depois aproximaram as cadeiras, pois sentiam que era preciso
afinal decidir alguma coisa. Loiseau teve uma inspiração: propôs ao oficial que
retivesse apenas Boule de Suif,
deixando partir os demais viajantes.
M. Follenvie se encarregou dessa missão,
mas desceu quase em seguida. O alemão, que conhecia a natureza humana,
despachara-o sumariamente. Pretendia reter a todos enquanto seu desejo não
fosse satisfeito.
Então explodiu o temperamento plebeu
de Mme. Loiseau: “Nós é que não vamos morrer de velhice aqui. Pois se é o ofício
dessa ordinária é fazer isso com todos os homens, acho que ela não tem o direito
de recusar quem quer que seja. Ela que não rejeitava nada em Ruão, nem os
cocheiros! Sim, madame, o cocheiro da prefeitura! Eu bem o sei, ele compra vinho
em nossa casa. E hoje que se trata de nos tirar de apuros, ela se faz de
melindrosa, essa coisa à toa!... Eu até
acho que esse moço oficial se conduz muito bem. Ele está talvez privado há
muito tempo, e havia aqui nós três que ele sem dúvida teria preferido. Mas não,
contentou-se com aquela que é de todo o mundo. Respeita as mulheres casadas.
Afinal de contas, ele é o senhor. Era só dizer: Eu quero, e poderia pegar-nos á força, com os seus soldados.”
As duas mulheres tiveram um pequeno
estremecimento. Os olhos da linda Mme. Carré-Lamadon brilhavam, e ela estava um
pouco pálida, como se já se sentisse pegada à força pelo oficial.
Os homens, que discutiam à parte,
aproximaram-se. Loiseau, enfurecido, queria entregar "aquela miserável",
atada de pés e mãos, ao inimigo. Mas o conde, oriundo de três gerações de
embaixadores, e dotado de um físico de diplomata, era partidário da habilidade:
“Seria preciso dissuadi-la” disse ele.
Puseram-se então a conspirar.
As mulheres se achegaram mais, baixou-se
o tom de voz, e a discussão se tornou geral, dando cada qual a sua opinião.
Tudo dentro das conveniências, aliás. Sobretudo as mulheres achavam delicados
rodeios, encantadoras sutilezas de expressão, para dizer as coisas mais
escabrosas. Um estrangeiro não teria compreendido, tão estritas eram as
precauções de linguagem. Mas como a leve camada de pudor, com que se unta toda
mulher da sociedade, apenas cobre a superfície, elas se desafogavam naquela aventura
picaresca, divertiam-se, loucamente no íntimo, sentindo-se no seu elemento,
imiscuindo-se no amor com a sensualidade de um cozinheiro glutão que prepara a
ceia de outrem.
A alegria voltava por si mesma, tão
engraçada lhes parecia a história. O conde aventurou gracejos um pouco
arriscados, mas tão bem ditos que faziam sorrir. Por sua vez, Loiseau largou
algumas piadas mais arriscadas, que não feriram a ninguém; e o pensamento
brutalmente expresso por sua mulher dominava todos os espíritos: pois "se
aquele era o seu ofício, ela não tinha o direito de recusar quem quer que fosse".
E a gentil Mme. Carré-Lamadon parecia mesmo pensar que, no lugar de Boule de Suif, ela até que não o
recusaria..
Prepararam longamente a campanha, como
para assediar uma fortaleza. Cada qual deliberou o papel que desempenharia, os
argumentos com que apoiar-se, as manobras que deveria executar. Regulavam o
plano dos ataques, as artimanhas a empregar, e as surpresas do assalto, para
obrigar aquela cidadela viva a receber o inimigo em praça.
Cornudet, no entanto, permanecia
afastado, completamente estranho àquele assunto.
Tão profunda era a concentração dos
espíritos que ninguém ouviu Boule de Suif
entrar. Mas o conde soprou um ligeiro "psiu" que fez com que se
erguessem todos os olhos. Ela ali estava. Calaram-se bruscamente e um certo
embaraço o impediu no princípio que lhe dirigissem a palavra. A condessa, mais acostumada que os outros às
duplicidades dos salões, a interrogou: “Esteve divertido, esse batismo?”
A gorda rapariga, ainda comovida,
contou tudo, as caras, as atitudes, o aspecto da igreja. E acrescentou: “... algumas
vezes é tão bom rezar!”
No entanto, até o almoço, as senhoras
contentaram-se em ser amáveis com ela, para lhe aumentar a confiança e a
docilidade a seus conselhos.
Logo que se sentaram á mesa, começou a
abordagem. A princípio foi uma conversação vaga sobre o sacrifício. Citavam
exemplos antigos: Judite e Holofenes e depois, sem nenhuma razão, Lucrécia com
Sextus, e Cleópatra, fazendo passar pelo seu leito todos os generais inimigos e
reduzindo-os ali a servilismos de escravos. Desenrolou-se então uma história
fantasiosa, brotada no cérebro daqueles milionários ignorantes, onde as cidadãs
de Roma iam adormecer, em Cápua, Aníbal entre os seus braços, e, com ele, seus
tenentes, e as falanges dos mercenários. Citavam todas as mulheres que
detiveram os conquistadores, fazendo de seu corpo um campo de batalha, um meio
de dominar; uma arma, que venceram com suas carícias heroicas a seres
repulsivos ou detestados e sacrificaram a sua castidade à vingança e ao devotamento.
Referiram-se até, em termos velados, a
essa inglesa de importante família que se deixara inocular uma horrível e
contagiosa doença, para transmiti-la a Bonaparte, salvo milagrosamente, por uma
fraqueza súbita, na hora do encontro fatal.
E tudo isso era contado de um modo
conveniente e discreto, em que apontava às vezes um estudado entusiasmo, próprio
para excitar o estímulo. Dir-se-ia, afinal, que o único papel da mulher, neste mundo, era um perpétuo
sacrifício da sua pessoa, em contínuo abandono aos caprichos da soldadesca.
As duas freiras, perdidas em profundos
pensamentos, não pareciam ouvir coisa alguma. Boule de Suif não dizia nada.
Durante toda a tarde, deixaram-na
refletir. Mas, em vez de chamá-la "madame", como até então tinham
feito, diziam-lhe simplesmente "mademoiselle", sem que ninguém
soubesse ao certo por que, como se quisessem fazê-la descer um degrau na estima
que havia escalado, frisando a sua vergonhosa situação.
No momento em que se servia a sopa, M.
Follenvie reapareceu, repetindo a frase da véspera: “O oficial prussiano manda
perguntar a Mlle. Elisabeth Rousset se ela ainda não mudou de opinião.”
Boule de Suif respondeu secamente: “Não, senhor.”
Depois a coligação enfraqueceu.
Loiseau teve três frases infelizes. Cada qual puxava pelo memoria para descobrir
exemplos novos e nada encontrava, quando a condessa, sem premeditação talvez,
experimentando um vago desejo de prestar homenagem à religião, interrogou a
mais velha das freiras sobre os grandes atos das vidas dos santos. Ora, muitos
haviam cometido coisas que seriam crimes a nossos olhos; mas a Igreja absolve
sem dificuldade tais atos, quando são praticados pela glória de Deus, ou pelo
bem do próximo. Era um argumento poderoso, de que a condessa se aproveitou.
Então, ou por um desses entendimentos tácitos, dessas veladas complacências, em
que se sobressai quem quer que use um hábito eclesiástico, ou simplesmente por
efeito de um mal-entendido feliz, de uma providencial estupidez, a velha
religiosa trouxe para a conspiração um formidável apoio. Julgavam-na tímida;
ela mostrou-se ousada, até mesmo violenta. Não era perturbada pelos rodeios da
casuística; sua doutrina parecia uma tranca de ferro; sua fé não hesitava
nunca; sua consciência não tinha escrúpulos. Achava muito natural o sacrifício
de Abraão, pois teria imediatamente matado pai e mãe, a uma ordem vinda do
Alto; e nada, a seu ver, podia desagradar ao Senhor quando a intenção era louvável.
A condessa, explorando a autoridade sagrada de sua imprevista cúmplice,
obrigou-a a fazer como que uma edificante paráfrase deste axioma de moral:
"O fim justifica os meios".
Ela a interrogava: “Então, irmã, acha
que Deus aceita todas as vias e perdoa o fato, quando o motivo é puro?”
“Quem o poderia duvidar, madame? Uma
ação censurável em si torna-se muitas vezes meritória pelo pensamento que a
inspira. “
E ela continuavam, assim,
destrinchando os desígnios de Deus, prevendo suas decisões, fazendo-o
interessar-se em coisas que, na verdade, não lhe diziam respeito.
Tudo isso velado, hábil, discreto. Mas
cada palavra da santa mulher abria brecha na resistência indignada da cortesã.
Depois, tendo-se a conversa desviado um pouco, a mulher do rosário falou dos
estabelecimentos da sua ordem, da sua superiora, de si própria, e da sua amável
companheira, a querida irmã Saint-Nicéphore. Tinham-nas pedido do Havre para tratar nos hospitais a
centenas de soldados atacados de varíola. Ela descreveu esses miseráveis,
pormenorizou os seus males. E enquanto estavam detidos em caminho pelos
caprichos daquele prussiano, quantos franceses poderiam morrer, a quem elas
salvariam, talvez! Tratar dos militares era a sua especialidade; ela estivera
na Criméia, na Itália, na Áustria, e, contando suas campanhas, revelou-se uma dessas
religiosas de tambor e cometa que parecem feitas para seguir os acampamentos,
recolher os feridos na confusão das batalhas e, melhor que um chefe, dominar
com uma palavra os sargentos indisciplinados; uma verdadeira irmã, cuja cara
assolada, crivada de inúmeras cicatrizes, parecia uma imagem das devastações da
guerra.
Ninguém disse nada depois dela, tão
esplêndido parecia o efeito das suas palavras.
Terminada a refeição, logo subiram
para o quarto, para só descerem no dia seguinte, quando já ia alta a manhã.
O almoço foi tranquilo. Davam à
semente lançada na véspera o tempo de germinar e produzir seus frutos.
A condessa propôs um passeio à tarde;
então o conde, como se estivesse combinado, tomou o braço de Boule de Suif e ficou para trás, com
ela.
Falou-lhe naquele tom familiar,
paternal, um pouco desdenhoso, que os homens importantes empregam com as
raparigas, chamando-a: "minha cara menina", tratando-a do alto da sua
posição social, de sua honorabilidade indiscutida. Entrou logo no vivo da questão:
“Então você prefere deixar-nos aqui, expostos, como você mesma, a todas as
violências que se seguiriam a um fracasso prussiano? Prefere tudo isso a
consentir numa dessas complacências que você já teve tantas vezes na sua vida?”
Boule de Suif não respondeu nada.
Ele aliciou-a pela brandura, pela razão,
pelos sentimentos. Soube permanecer "o senhor conde", não sem se
mostrar galante quando preciso, lisonjeiro, amável, enfim. Exaltou o serviço
que ela lhes prestaria, falou do reconhecimento de todos eles. Depois, de súbito
tuteando-a jovialmente: “E você sabe, minha pequena, ele poderá gabar-se de
haver estado com uma bonita mulher como não há muitas na sua terra.”
Boule de Suif não respondeu e reuniu-se ao grupo.
Logo que voltou, recolheu-se ao quarto
e não mais reapareceu. A inquietação era extrema. Que iria ela fazer? Se
resistisse, que transtorno! Chegou a hora da janta; esperaram-na inutilmente.
No entanto, M. Follenvie anunciou que Mlle. Rousset sentia-se indisposta e que
podiam sentar-se à mesa. Todos aguçaram o ouvido. O conde aproximou-se do
estalajadeiro e perguntou baixinho: “Estão juntos?” “Sim.” Por conveniência, o
conde não disse nada a seus companheiros, mas limitou-se a fazer-lhes um breve
aceno de cabeça. No mesmo instante um grande suspiro de alívio exalou-se de
todos os peitos, todas as caras se iluminaram de alegria. Loiseau exclamou: “Caramba!
Eu pago champanhe, se houver nesta casa.” E Mme. Loiseau sentiu um baque no
coração, quando o patrão chegou, empunhando quatro garrafas. Cada qual se
tornara de repente comunicativo e brilhante; uma saltitante alegria enchia os
corações. O conde pareceu aperceber-se de que Mme. Carré-Lamadon era
encantadora, o manufatureiro dirigiu galanteios
à condessa. A conversação foi viva, leve, cheia de piadas.
De súbito, Loiseau, com a fisionomia
ansiosa e erguendo os braços, gritou: “Silêncio!” Todos se calaram, atônitos,
já quase assustados. Então ele levou a mão em concha ao ouvido, e o dedo ao lábio,
fazendo "psiu" e, erguendo os olhos para o teto, escutou novamente. E
depois, com sua voz natural: “Tranquilizem-se, tudo vai bem.”
Hesitavam em compreender, mas logo
esboçou-se um sorriso geral. Ao cabo de um quarto de hora, recomeçou a mesma
farsa, renovando-a várias vezes durante o serão; e fingia interpelar alguém no
andar superior, dando-lhe conselhos de duplo sentido, colhidos no seu espírito
de caixeiro-viajante. De vez em quando tomava um ar triste e suspirava:
"Pobre rapariga!" Ou então murmurava entre dentes, com um ar
colérico: "Maldito prussiano!" As vezes, quando menos se esperava,
lançava, com uma voz vibrante, vários "basta! basta!" E acrescentava,
como que falando para si mesmo: "Desde que a gente torne a vê-la... e que
ele não a mate, o miserável!"
Embora essas brincadeiras fossem de um
gosto deplorável, divertiam e não feriam a ninguém, pois a indignação depende
do meio, como tudo mais, e a atmosfera que pouco a pouco ali se formara estava
carregada de pensamentos obscenos.
À sobremesa, as próprias mulheres
fizeram alusões espirituosas e discretas. Os olhos brilhavam; tinham bebido
muito. O conde, que até nos seus momentos alegres conservava um ar de solene
gravidade, fez uma comparação muito apreciada com o degelo no polo e a alegria
dos náufragos que veem abrir-lhes um caminho para o sul. Loiseau, arrebatado,
ergue-se, empunhando uma taça de champanhe: “Eu bebo à nossa libertação. Todos
se puseram de pé; aclamavam-no. As próprias freiras, instadas pelas senhoras,
consentiram em molhar os lábios naquele vinho espumante que nunca haviam
provado. Declararam as duas que aquilo se parecia com gasosa, mas que era muito
mais fino.
Loiseau resumiu a situação: “... pena
não termos um piano, aqui, porque senão poderíamos fazer uma quadrilha.”
Cornudet não dissera uma palavra, não
fizera um gesto; parecia mergulhado em pensamentos muito graves, e puxava às
vezes, com um gesto furioso, a sua comprida barba, como se quisesse alongá-la
ainda mais. Enfim, pela meia-noite, quando iam separar-se, Loiseau, que mal se
aguentava nas pernas, deu-lhe de repente um tapa na barriga ne disse a
gaguejar: “Você não parece disposto esta noite. Como é que não diz nada, cidadão?”
Mas Cornudet ergueu bruscamente a cabeça e, passeando pela assistência um olhar
fuzilante e terrível: “Uma coisa eu digo a todos: vocês acabam de cometer uma
verdadeira infâmia!” Ergueu-se, alcançou
a porta, repetiu mais uma vez: "Uma infâmia!" E desapareceu.
Isto, a princípio, lançou em todos um jato
de frio. Loiseau, confuso, permanecia estupidificado. Mas logo recuperou a
linha e, de repente, contorcendo-se de riso, pôs-se a repetir: “Estão verdes,
meu velho, estão verdes.” Como ninguém compreendesse, ele contou os "mistérios
do corredor". Houve então um retorno de formidável alegria. As senhoras
divertiam-se como loucas. O conde e M. Carré-Lamadon choravam de tanto rir. Não
podiam acreditar. “Como! Tem certeza? Ele queria...”
“Estou dizendo que vi.”
“E ela recusou...”
“Porque o prussiano estava no quarto
ao lado.”
“Verdade?”
“Juro!”
O conde sufocava. O industrial apertava
o ventre com as duas mãos. Loiseau continuava: “De modo que hoje ele não lhe
acha graça alguma, está visto.”
E os três recomeçaram, doentes de
tanto rir, arquejantes, tossindo.
Nesta altura, todos se separaram. Mas
Mme. Loiseau, que era da natureza das urtigas, observou ao marido, no momento
em que se deitavam, que "aquela mexeriqueira" da Mme. Carré-Lamadon
tinha um riso amarelado durante toda a noite. “Bem sabes, as mulheres, quando
dão para gostar de uniforme, pouco se importam que seja francês ou prussiano.
Ora, já se viu!”
Por toda a noite, na obscuridade do
corredor, correram como que frémitos, leves rumores, quase inaudíveis,
semelhantes a sopros, roçar de pés nus, mal perceptíveis estalidos. E decerto
só dormiram muito tarde, pois durante muito tempo brilharam os filetes de luz
sobre as portas. A champanhe tem desses efeitos: dizem que perturba o sono.
No dia seguinte, um claro sol de
inverno tornava ofuscante a neve. A diligência, finalmente atrelada, esperava
diante da porta, enquanto um mundo de pombos brancos, enfunados em sua espessa
plumagem, com os olhos róseos marcados de um ponto negro ao centro, passeavam
gravemente por entre as patas dos seis cavalos, buscando alimento no esterco
fumegante que estes espalhavam.
O cocheiro, envolto no abrigo de
carneiro, dava a sua cachimbada na boleia, e todos os passageiros, radiantes,
mandavam empacotar rapidamente provisões para o resto da viagem.
Só esperavam por Boule de Suif. Esta afinal apareceu.
Parecia um pouco confusa,
envergonhada; e avançou rapidamente para os seus companheiros, que, num mesmo
"movimento, se voltaram para o outro lado, fingindo que não a tinham
visto. O conde tomou com dignidade o braço da sua esposa e afastou-a daquele
contato impuro.
A gorda rapariga parou, estupefata.
Depois, reunindo toda a sua coragem, abordou a mulher do manufatureiro com um
"bom-dia, madame" humildemente murmurado. A outra fez com a cabeça
uma leve saudação impertinente e um olhar de virtude ultrajada. Todos pareciam
muito laboriosos, e conservavam-se longe de Boule
de Suif, como se esta carregasse alguma infecção nas suas saias.
Precipitaram-se para a diligência, onde ela chegou sozinha, por último, retomando em silêncio o lugar que
ocupara durante a primeira parte da viagem.
Pareciam não vê-la, não conhecê-la.
Mas Mme. Loiseau considerando-a de longe com indignação, disse a meia voz ao
marido: “Felizmente eu não estou ao lado dela.”
O pesado carro se movimentou,
reiniciando a viagem.
A princípio ninguém falou. Boule de Suif não ousava levantar os
olhos. Sentia-se ao mesmo tempo indignada com todos os seus companheiros e humilhada
por haver cedido, maculando-se com os beijos daquele prussiano, em cujos braços
a tinham hipocritamente lançado.
Mas a condessa, voltando-se para Mme.
Carré-Lamadon, logo rompeu aquele penoso silêncio. “Decerto conhece Mme.
d'Etrelles, não?”
“Sim, é uma de minhas amigas.”
“Que mulher encantadora!”
“Fascinante! Uma verdadeira natureza
de elite, muito instruída, aliás, e artista até a medula, canta admiravelmente
e desenha que é uma perfeição.
O manufatureiro conversava com o conde
e, em meio ao ruído do carro, uma palavra às vezes sobressaía: "ação",
"vencimento", "bónus", "preço". Loiseau, que
surrupiara o velho baralho de cartas da estalagem ensebado por cinco anos de
uso, começou um besigue com a sua mulher.
As duas freiras tomaram da cinta o longo rosário
pendente, fizeram juntas o sinal da cruz, e de repente os seus lábios se
puseram a mexer vivamente, apressando-se cada vez mais, acelerando o seu vago
murmúrio como para uma corrida de oremus;
e de tempos em tempos beijavam uma medalha, benziam-se de novo, depois recomeçavam
o seu resmungo rápido e contínuo.
Cornudet pensava, imóvel.
Ao cabo de três horas de viagem,
Loiseau recolheu as cartas: “Está batendo a fome”, disse ele.
Sua mulher então desembrulhou pacote
de onde tirou um pedaço de assado frio. Cortou-o habilmente em tenras fatias, e
puseram-se ambos a comer. “E se fizéssemos o mesmo?”, sugeriu a condessa.
Concordaram e ela abriu as provisões preparadas para os dois casais, em uma
dessas terrinas alongadas, em cuja tampa há uma lebre em faiança para indicar o
seu conteúdo. Era uma suculenta iguaria, com a carne escura de caça atravessada
de brancas fitas de toucinho e misturada com outras carnes picadas. Um belo
pedaço de gruyère conservava impresso o letreiro “fait divers” na sua superfície untuosa.
As duas freiras desenrolaram uma fiada
de salsichas, que cheirava a alho; e Cornudet, mergulhando ao mesmo tempo ambas
as mãos nos vastos bolsos de seu casaco, sacou de um deles quatro ovos cozidos
e do outro uma casca de pão. Descascou os ovos, lançando as cascas as palhas,
debaixo de seus pés, e pôs-se a morder os ovos, enquanto lhe tombavam na longa
barba partículas de gemas, que pareciam estrelinhas.
Boule de Suif, na pressa e sobressalto de seu despertar, não pudera pensar em nada; e
olhava exasperada, sufocando de raiva, todas aquelas pessoas que comiam
placidamente. Crispada primeiro de violenta cólera, ela abriu a boca para lhes
dizer as verdades numa onda de injúrias que lhe subia aos lábios; mas não conseguia
falar, de tal modo a exasperação a estrangulava.
Ninguém a olhava, ninguém se importava
com ela. Sentia-se afogada no desprezo daqueles crápulas honestos, que primeiro
a haviam sacrificado, e depois rejeitado, como uma coisa indecente e inútil.
Pensou então no seu grande cesto cheio de boas comidas, que eles tinham
sofregamente devorado, nos seus dois frangos reluzentes de gordura, nos seus
patês, nas suas peras, nas suas quatro garrafas de Bordeaux; então seu furor
tombou de repente, como uma corda muito tensa que rebenta, e ela sentiu-se
prestes a chorar. Fez esforços terríveis, empertigou-se, engoliu os soluços
como uma criança, mas o pranto subia, brilhava lhe na borda das pálpebras, e
logo duas grossas lágrimas, destacando-se dos olhos, rolaram lentamente pelas
suas faces. Seguiram-se outras mais rápidas, deslizando como as gotas d'agua
que filtram de uma rocha, e tombando regularmente sobre a curva roliça de seu
peito. Ela permanecia direita, com o olhar fixo, a face rígida e pálida,
esperando que não a vissem.
Mas a condessa o notou e preveniu o
marido com um sinal. Ele ergueu os ombros como quem diz: "Que queres? A
culpa não é minha". Mme. Loiseau teve
um silencioso riso de triunfo e murmurou: “Ela chora a sua vergonha.”
As duas irmãs de caridade tinham
recomeçado a orar, depois de haverem embrulhado num papel o resto das
salsichas.
Foi quando Cornudet, que digeria os
ovos, espichou as longas pernas sob a banqueta fronteira, recostou-se, cruzou
os braços, sorriu como quem acaba de descobrir uma boa farsa e pôs-se a
assobiar a Marselhesa.
Todas as caras se fecharam “O canto
popular decerto não lhes agradava. Ficaram nervosos, irritados, e pareciam
prestes a soltar ganidos, como cães que ouvem um realejo. Cornudet, que bem o percebia,
não parou. Às vezes até cantarolava as palavras:
Amour sacré de la patrie,
Conduis, soutiens nos bras vengeurs,
Liberté, liberté chérie,
Combats avec tes défenseurs!
Corriam agora mais depressa, estando a
neve mais dura. E até Dieppe, durante as longas horas tediosas da viagem,
através dos solavancos do caminho, pela noite que tombava, depois na escuridão
profunda da diligência, ele continuou, com uma obstinação feroz, o seu assobio
vingativo e monótono, constrangendo os espíritos cansados e exasperados a
seguir o canto de princípio a fim e a recordar, a cada compasso, a palavra que
lhe correspondia.
E Boule
de Suif continuava chorando; e às vezes um soluço, que ela não pudera
reter, atravessava as trevas, entre dois versos.
FIM
Nota da edição Conard (Paris) das
Obras Completas de Guy de Maupassant: "Boule de Suif realmente existiu e
chamava-se, por seu verdadeiro nome, Adrienne Legay".
[1] Trocadilho
intraduzível, baseado no fato de Loiseau, nome próprio, ter som idêntico a
l'oiseau (o pássaro) e no duplo significado do verbo voler (voar ou roubar). N.
do T.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito interessante esse conto. Por vezes me remete a uma ópera nacional, cujo "autor" foi e ainda o é; ovacionado como um gênio em composições nos anos 70 e 80. Me refiro a alguém com um nome de santo, mas que, após conhecer essa obra que nos disponibilizou "Boule de Suif", penso que nosso compositor, de "SANTO" não tem nada. E que sua narrativa é praticamente a mesma mudando apenas os gêneros das personagens. Obrigada por me revelar essa magnífica obra. Lamento que na obra nacional, ocultaram referências, mencionando nomes e datas de relatos que o inspiraram. Seria mais ético. Me decepcionei com a personagem da "Ópera" brasileira, ao ver que foi nitidamente copiada. Lamentável.
ResponderExcluir