Fiodor
Dostoievski, escritor russo (1821-1881). “O grande inquisidor” não é um conto
mas sim um capitulo de seu ultimo romance, Os Irmãos Karamazov. Não é um texto
fácil de ser lido, mas é certamente um dos maiores momentos da literatura
mundial. Nele Cristo regressa a terra em meio a Inquisição do século XV e nas
palavras do Grande Inquisidor, Dostoievski provoca uma profunda reflexão sobre
a liberdade – desejo supremo para alguns e talvez um grande temor para outros. Provavelmente
uma segunda, ou mesmo uma terceira leitura será necessária, mas ao final, muitos
elementos da discussão religiosa, e mesmo da questão política que podem parecer ilógicos,
terão para o leitor um novo e mais claro significado.
O grande inquisidor
Fiodor Dostoiéwski
É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo.
A ação passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer
intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante. Em França, os
"clercs de la basoche" e os
monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os
santos, Cristo e Deus. Eram espetáculos ingênuos. Na Nossa Senhora de Paris, de
Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do
nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo
da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a
pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações
deste gênero, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava
uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as
necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam-
se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação
dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do
grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o
Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos;
entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de
fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles "de que até
Deus se esquece" – expressão esta duma profundeza e duma energia notável.
A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de
todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu dialogo com Deus é
dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés
e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu
perdoar aos seus verdugos?" –, ordena a todos os santos, a todos os mártires,
a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe
a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos,
todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do
fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é
justa!". Pois bem: o meu poemazito teria sido deste gênero, se o tivesse
escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos,
depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu:
"Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só
o sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que
pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé
mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou
de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não dão
penhores".
É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos
realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a
acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa
a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha
uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardendo
como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que
se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lagrimas da humanidade
elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança
n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor:
"Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que para Ele vão
seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já
antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires
e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev, que acreditava profundamente na
verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao peso da Sua cruz e
com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te
toda".
Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor
e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A ação
passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando
todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os
medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que
prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente,
"como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis
visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos
hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma
que tinha durante os três anos de vida publica. Desce pelas ruas ardentes da
cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos
cortezões, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o
grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei. Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e,
coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais
belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo
comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio
da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de
amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas
almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude
salutar emana do Seu contato e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança,
grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma
escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão
que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos
gritam: Hosana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Para no adro da
Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma
menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta
de flores.
– Vai ressuscitar a tua filha – gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.
O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o
sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és
Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito para, pousam o
caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente,
uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta,
senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o
ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há
perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande
inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos
cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo
com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os
inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e
a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Para diante da multidão
e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da
criança – e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os
olhos brilham lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas
que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a
submeter-se, a obedecer- lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos
esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como
um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa
sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e
sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o
dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo
perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de
ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só
e a porta se fecha por trás dele. Para no limiar, considera longamente a Face
Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
– És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: –
Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não
tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste
incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá
amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência?
Mas amanhã hei de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o
mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu,
para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez – diz ainda o velho,
pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.
– Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivan - objetou Aliocha, que
tinha escutado em silêncio. – É uma fantasia, um erro do velho, um estranho
mal-entendido?
– Admite essa última hipótese – respondeu Ivan, rindo - se o realismo
moderno te tornou a esse ponto refratário ao sobrenatural. Seja como tu
quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua
ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um
simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada
pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O
que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu
pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
– E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
– Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho
lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que
disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental
do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende
agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos." Tal
é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos.
"Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde
vens?" – pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: "Não, não
tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e
isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas
as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam
miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade
da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"?
Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" - acrescenta o velho, com
um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-O, com severidade,
mas, enfim, sempre completamos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos
de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não
crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é
bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo,
depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na
verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
– Não compreendo outra vez – interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é
uma troça?
– De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a
liberdade, com o objetivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora,
pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na
felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados
ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te
importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens;
e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses
prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não
poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste
incomodar-nos?
– Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
– Mas é o ponto capital do discurso do velho.
"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada
– continua ele – falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te
"tentou". É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais
penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as "tentações"
que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi
no dia dessas três tentações. Basta o fato de se terem formulado as três
perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras,
que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra
vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de
Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia:
"Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância
do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da
humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar
alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs
então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito
eterno e absoluto, não de um espírito humano transitório, porque resumem e predizem
ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em
que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse
momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje,
como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e
se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.
"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te
interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo
com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a
sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz
medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade!
Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade
seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com
medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe. "Mas não quiseste
privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a
obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão;
mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará
contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão de seguir gritando:
"Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?" Hão de
passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência
e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só
há famintos. "Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam
virtuosos!" Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que
abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre
de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias
ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão de vir
procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a
sua torre. Hão de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em
que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão de clamar:
"Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu
nada nos deram." Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é
preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lhes faremos
crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto
estiverem livres; e hão de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão:
"Fazei de nós escravos, mas alimentai- nos." Compreenderão, enfim,
que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão
de saber reparti-lo entre si! Também se hão de convencer da sua impotência para
se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos.
Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele
comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e
depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão de seguir por causa
deste pão, mas que há de ser dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem
de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes
e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que
Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos
seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão de tornar-se finalmente dóceis.
Hão de admirar-nos e hão de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo- nos
à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será́,
por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos,
que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não
deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá́ o
nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da
primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em
nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do
mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação
da humanidade - indivíduos e coletividade - : "diante de quem se
inclinar?" Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais
constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline.
Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os
seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas
atormentam-se na busca de um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no
qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na
adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira,
desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios
a gladio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros:
"Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos
vossos deuses!" E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os
deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não
podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo,
repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação,
todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome
do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da
liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o
de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade
que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário
dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se
diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se
assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou
a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana
consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem
uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora
estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de
ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade
humana, foste alargá-la ainda mais!
Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de
discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio,
mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que
tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções
vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste,
portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por
eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste
assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser
livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado.
Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração
livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não
previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade,
porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão de
gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão
angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis.
Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém
dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas
que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o
milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um
exemplo. O Espirito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e
dissera-Te: "Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque
está escrito que os anjos O hão de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficaras
então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu
Pai." Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa
altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são
deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te
precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com
grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar.
Mas haverá́ muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam
a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana
repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais
e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua
firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões
mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se
contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele
Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele
busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios
milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma
feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não
desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da
cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar
de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não
inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes
dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são
escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos:
quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-te: o homem é mais fraco e mais
vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima
que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que,
no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos,
ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São covardes
e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se
orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram
e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão
os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas
crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua
revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o
Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão de chamá-Lo
com desespero e esta blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes porque a
natureza humana não suporta a blasfêmia e acaba sempre por se vingar. A inquietação,
as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de
tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica,
que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze
mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens,
deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados
a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da
liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de
que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles,
dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os
fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis?
Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós,
e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a
livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter
cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos.
Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E
os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam
livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos
razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua
fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca
natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto,
entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu
olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu
amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei de dissimular? Sei a quem falo, conheço
o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso
segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos
contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exatamente Oito séculos que
recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te
mostrava todos os reinos da Terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declarámo-nos
os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de
ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio,
está longe do termo e a Terra terá́ ainda muito que sofrer, mas nós
atingiremos o nosso objetivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade
universal.
No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo
afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito,
realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se
inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia
num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último
tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência
para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história
gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem
mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes
conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões,
encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a
unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e
dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que
lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao
fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão de passar ainda séculos de licença
intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão de
acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta
virá ter conosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas
de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará
gravada a palavra "Mistério!" Só então a paz e a felicidade reinarão
entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao
passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes
destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram
e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do
seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade.
Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e
chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de
que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso
favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão
de que falamos a verdade, porque se hão de lembrar da escravatura e da perturbação
em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a
ciência, hão de perdê-los num tal labirinto, hão de pô-los em presença de tais
prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios,
outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão de
arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós possuís o
seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem dúvida, ao
receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus,
ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão
bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos
dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão de lembrar-se de que outrora
esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que
depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão
o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão
infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o
rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá
de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma
felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que
eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao
elevá-los, quem lhes ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são
umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa.
Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios
de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão de sentir uma receosa
surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão
permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-a
tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lagrimas como
nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma
facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças. Havemos,
certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso,
organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças
inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por
isso nos hão de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será
redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos
pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão de querer-nos como a benfeitores que
se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns
segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que
vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão de
escutar-nos com alegria. Hão de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência;
resolver-lhes-emos todos os casos e hão de aceitar a nossa decisão com alegria,
porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente.
E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns cem mil, os dirigentes,
exceto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão de contar-se por biliões
e haverá́ cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal.
Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão
senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua
felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não
seria decerto para seres como eles.
Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos,
poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo
que nós salvamos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo
na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo,
lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me
levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós,
os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade,
erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no
deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com
que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus
eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o numero".
Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar
aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes,
para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império.
Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, veras o dócil rebanho trazer brasas
para a fogueira a que hás de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém
mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivan parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe
um sorriso nos lábios. Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção.
Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
– Mas... é absurdo! – exclamou, corando. – O teu poema é um elogio a
Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da
liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja
ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os
inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu
inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são
esses detentores do mistério que se carregam de maldiçoes para bem da
humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas,
diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É
simplesmente o exercito romano, o instrumento da futura dominação universal,
tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles tem; não
há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar
cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles
seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O
teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
– Espera, espera – disse-lhe rindo Ivan. – Como tu te exaltas! Uma ficção?
Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos
séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão
os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
– Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as
tuas vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
– Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha,
quase zangado. – Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo,
eis o segredo. O teu inquisidor não crê̂ em Deus.
– Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo,
todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem
como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar
a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os
conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência
dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça".
Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína
e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens
para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não
revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade.
Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente
durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se
houver um só homem semelhante à frente deste exercito "ávido do poder
apenas para os vis bens", não bastará isto para que se dê uma tragédia?
Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia diretriz
do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia
superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste
tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices
romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a
humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por
efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta,
organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados
e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal.
Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e
que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; veem neles
concorrentes, veem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir
apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta
defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.
– Talvez tu sejas também maçom – disse de súbito Aliocha. – Não
acreditas em Deus – continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também
que o irmão o contemplava com ar de troca. – Como acaba o teu poema? – prosseguiu
ele, baixando os olhos. – Não há mais nada?
- Há. O fim que eu tinha pensado era este: "O inquisidor cala-se,
espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo
escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido
a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa,
mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se
em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma
resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a
e diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas
trevas da cidade. O Preso vai.
– E o velho?
O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.
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