Alguns talvez digam que Jorge Amado (1912-2001), o grande escritor
baiano, não escrevia contos. Discordo, além do que eu seria absolutamente
incapaz de fazer uma lista de grandes escritores sem incluir o maior mestre. Este
conto/capitulo é para mim o melhor momento de toda obra de Jorge Amado. Faz parte do
Gabriela, Cravo e Canela, e começa com Nacib feliz por descobrir que finalmente
tem Gabriela ao seu lado e termina com ele aterrorizado pelo medo de perdê-la.
Irônica natureza humana retratada neste conto de construção perfeita, com
sensualidade, ritmo, graça e a magia inigualável do grande mestre.
De como se iniciou a confusão de sentimentos do árabe
Nacib
Jorge Amado
Leu umas linhas no jornal, aspirando a fumaça do charuto de São Félix,
perfumado. Em geral, nem chegava a fumar todo o charuto, a ler grande coisa nos
diários da Bahia.
Logo adormecia, embalado pela brisa do mar, afrontado pelas iguarias
gulosamente devoradas, o inigualável tempero de Gabriela. Ressonava feliz por
entre os bigodes frondosos. Aquela meia hora de sono, à sombra das árvores,
era uma das delícias de sua vida, sua boa vida tranquila, sem sustos, sem complicações,
sem problemas graves. Jamais tinham os negócios marchado tão bem, crescia a frequência
do bar, ele acumulava dinheiro no banco, o sonho de um pedaço de terra onde
plantar cacau ganhava realidade. Nunca fizera negocio tão vantajoso como ao
contratar Gabriela no mercado dos escravos. Quem diria ser ela tão competente
cozinheira, quem diria esconder-se sob trapos sujos tanta graça e formosura,
corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?...
Naquele dia da chegada do engenheiro, a curiosidade tomando conta do
bar, apresentações e cumprimentos, elogios a granel – é um nadador de primeira
– quando todos os almoços se atrasaram em Ilhéus, Nacib fizera dia por dia a
conta do tempo decorrido desde o anuncio de sua vinda. Gabriela voltava para
casa após pedir:
– Deixa eu ir no cinema hoje? Pra acompanhar dona Arminda...
Tirara da caixa uma nota de cinco mil-réis, generoso:
– Pague a entrada dela...
Vendo-a partir, esfogueada e risonha (ele não parara de beliscá-la e
tocá-la mesmo enquanto comia), contara os dias: três meses e dezoito dias
exatamente. De aperreação, cochichos, agitação, duvida e esperança para
Mundinho e seus amigos, para o coronel Ramiro Bastos e seus correligionários.
Com descomposturas nos jornais, conversas segredadas, apostas, bate-bocas,
surdas ameaças, um clima de tensão em aumento. Havia dias em que o bar parecia
uma caldeira prestes a explodir. Quando o Capitão e Tonico mal se falavam, o
coronel Amâncio Leal e o coronel Ribeirinho apenas se cumprimentavam.
É para ver-se como são as coisas da vida. Aqueles mesmos dias foram de
calma, de perfeita tranquilidade de espírito, de suave alegria para Nacib.
Talvez os mais felizes de toda a sua existência.
Jamais dormira tão sereno sua sesta, acordando risonho com a voz de
Tonico, infalível após o almoço para um dedo de amargo a ajudar a digestão, um
dedo de prosa antes de abrir o cartório. Pouco depois juntava-se a eles João
Fulgêncio, passando para a papelaria. Falavam de Ilhéus e do mundo, o livreiro
era entendido em assuntos internacionais, Tonico sabia tudo quanto se referia
ao mulherio da cidade.
Três meses e dezoito dias tardara o engenheiro a chegar, fazia
exatamente o mesmo tempo que contratara Gabriela. Naquele dia o coronel Jesuíno
Mendonça matara dona Sinhazinha e o dentista Osmundo. Mas só no outro dia
tivera Nacib certeza de que ela sabia cozinhar. Na espreguiçadeira, o jornal
abandonado no chão, o charuto a apagar-se, Nacib sorri, recordando... Três
meses e dezessete dias a comer comida temperada por ela, não havia em todo Ilhéus
cozinheira que se lhe pudesse comparar. Três meses e dezesseis dias dormindo
com ela, a partir da segunda noite, quando o luar lambia-lhe a perna e no
escuro do quarto saltava um seio da rota combinação...
Nessa tarde, devido talvez ao anormal movimento do bar, à excitação da presença
do engenheiro, Nacib não conciliava o sono, tomado por seus pensamentos. A princípio
não dera maior importância a nenhuma das duas coisas: nem à qualidade da
comida nem ao corpo da retirante nas noites ardentes. Satisfeito com o tempero
e a variedade dos pratos, só lhes deu o devido valor quando a freguesia começou
a crescer, quando foi preciso aumentar o número de salgados e doces, quando
sucederam-se unânimes os elogios e Plínio Araçá, cujos métodos comerciais eram
dos mais discutíveis, mandou fazer uma oferta a Gabriela. Quanto ao corpo –
aquele fogo de amor a consumi-la no leito, aquela loucura de noites
atravessadas insones – prendeu-se a ele, insensivelmente. Nos primeiros tempos,
apenas certas noites a procurava, quando, ao chegar em casa, ocupada ou doente
Risoleta, não estava cansado e com sono. Então decidia deitar-se com ela, à
falta de outra coisa a fazer. Mas durara pouco essa displicência. Logo
habituara-se de tal maneira à comida feita por Gabriela que, convidado a
jantar com Nhô-Galo no dia de seu aniversário, mal provara os pratos, sentindo diferença
na finura do tempero. E fora, sem o sentir, amiudando as idas ao quarto do
quintal, esquecendo a sabida Risoleta, passando a não suportar seu carinho
representado, suas manhas, seus eternos queixumes, mesmo aquela ciência do amor
que ela usava para lhe tirar dinheiro. Terminou por não mais procurá-la, não
responder a seus bilhetes, e desde então, há quase dois meses, não tinha outra
mulher senão Gabriela. Agora arribava todas as noites em seu quarto, procurando
sair do bar o mais cedo possível.
Tempo bom, meses de vida alegre, de carne satisfeita, boa mesa,
suculenta; de alma contente, cama de felizardo. No rol das virtudes de
Gabriela, mentalmente estabelecido por Nacib na hora da sesta, contavam-se o
amor ao trabalho e o senso de economia. Como arranjava tempo e forças para
lavar a roupa, arrumar a casa – tão limpa nunca estivera! –, cozinhar os
tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite
estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando
dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. Parecia adivinhar os pensamentos de
Nacib, adiantava-se às suas vontades, reservava-lhe surpresas: certas comidas
trabalhosas das quais ele gostava – pirão de caranguejo, vatapá́, viúva de
carneiro –, flores num copo ao lado de seu retrato na mesinha da sala de
visitas, troco do dinheiro dado para fazer a feira, essa ideia de vir ajudar no
bar.
Antes era Chico Moleza, ao voltar do almoço, quem trazia para Nacib a
marmita preparada por Filomena. A barriga a dar horas, o árabe esperava
impaciente. Ficava só, com Bico-Fino, a servir os últimos fregueses do
aperitivo. Um dia, sem prevenir, Gabriela aparecera com a marmita, vinha lhe
pedir licença para ir à sessão espírita, dona Arminda a convidara. Ficou
ajudando a servir, passou a vir todos os dias. Naquela noite lhe dissera:
– É melhor eu levar a comida pro moço. Assim come mais cedo, posso
ajudar também. Importa não?
Como ia importar se a presença dela era mais uma atração para a
freguesia? Nacib logo se deu conta: demoravam-se mais, pedindo outro trago, os
ocasionais passavam a permanentes, vindo todos os dias. Para vê-la, dizer-lhe
coisas, sorrir-lhe, tocar-lhe a mão. Afinal que lhe importava, era apenas sua
cozinheira com quem dormia sem nenhum compromisso. Ela servia-lhe a comida,
armava-lhe a cadeira de lona, deixava a rosa com seu perfume. Nacib, satisfeito
da vida, acendia o charuto, tomava dos jornais, adormecia na santa paz de Deus,
a brisa do mar a acariciar-lhe os bigodões florescentes. Mas nesse começo de
tarde não conseguia dormir. Fazia mentalmente o balanço daqueles três meses e
dezoito dias, agitados para a cidade, calmos para Nacib. Gostaria, no entanto,
de cochilar pelo menos uns dez minutos, em vez de deter-se a relembrar coisas
à toa, sem maior importância. De repente, sentiu que algo lhe faltava, talvez
por isso não conseguisse dormir. Faltava-lhe a rosa, cada tarde encontrada caída
no bojo da espreguiçadeira. Ele vira quando o juiz de direito, sem dar-se o
respeito devido ao seu cargo, a furtara da orelha de Gabriela e a pusera em sua
botoeira... Um homem idoso, de seus cinquenta anos, aproveitando-se da confusão
em torno do engenheiro para roubar a rosa, um juiz... Ficara com medo de um
gesto brusco de Gabriela, ela fez como se não tivesse percebido. Esse juiz
estava saindo do sério. Antigamente nunca vinha ao bar na hora do aperitivo,
aparecendo apenas, de quando em vez, à tardinha, com João Fulgêncio ou com o
Dr. Maurício. Agora esquecia todos os preconceitos e, sempre que podia, lá
estava no bar, bebendo um vinho do porto, rondando Gabriela
Rondando Gabriela... Nacib ficou a pensar. Sim, rondando, de súbito
dava-se conta. E não era só ele, muitos outros também... Por que se demoravam além
da hora do almoço, criando problemas em casa? Senão para vê-la, sorrir para
ela, dizer-lhe gracinhas, roçar-lhe a mão, fazer-lhe propostas, quem sabe? De
propostas Nacib sabia apenas de uma feita por Plínio Araçá. Mas aquela
dirigia-se à cozinheira. Fregueses do Pinga de Ouro haviam-se mudado para o Vesúvio,
Plínio mandara oferecer um ordenado maior a Gabriela. Apenas escolhera mal o
mediador, confiando a mensagem ao negrinho Tuísca, fiel do Bar Vesúvio, leal a
Nacib. Assim, fora o próprio árabe quem dera o recado a Gabriela. Ela sorrira:
– Quero não... Só se seu Nacib me botar pra fora...
Ele a tomara nos braços, era de noite, envolveu-se em seu calor. E
aumentou-lhe em dez mil-réis o ordenado:
– Tou pedindo não... – disse ela.
Por vezes comprava-lhe um brinco para as orelhas, um broche para o
peito, lembranças baratas, algumas nem lhe custavam nada, trazia da loja do
tio. Entregava-as à noite, ela enternecia-se, agradecia-lhe humilde,
beijando-lhe a palma da mão num gesto quase oriental:
– Moço bom, seu Nacib...Broches de dez tostões, brincos de mil e
quinhentos, com isso lhe agradecia as noites de amor, os suspiros, os desmaios,
o fogo a crepitar inextinguível. Cortes de fazenda vagabunda duas vezes lhe
dera, um par de chinelos, tão pouco para as atenções, as delicadezas de
Gabriela: os pratos de seu agrado, os sucos de frutas, as camisas tão alvas e
bem passadas, a rosa caída dos cabelos na espreguiçadeira. De cima, superior e
distante, ele a tratara como se estivesse a pagar-lhe regiamente o trabalho, a
fazer-lhe um favor deitando-se com ela.
Os outros no bar a rondá-la. A rondá-la talvez na ladeira de São Sebastião,
a mandar-lhe recados, a fazer-lhe propostas, por que não seria assim ? Nem
todos haviam de usar Tuísca de portador, como ele, Nacib, iria saber? Que
vinha fazer no bar o juiz de direito senão tentá-la? A rapariga do juiz, uma
jovem cabrocha da roça, aparecera alastrada de doenças feias, ele a largara.
Quando Gabriela começara a vir ao bar, ele – idiota! – alegrara-se
interessado apenas nos vinténs a mais das rodadas repetidas, sem pensar no
perigo dessa tentação diariamente renovada. Impedi-la de vir não devia
fazê-lo, deixaria de ganhar dinheiro. Mas era preciso trazê-la de olho,
dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de
novo aumento. Boa cozinheira era coisa rara em Ilhéus, ninguém o sabia melhor
do que ele. Muita família rica, donos de bares e de hotéis deviam estar cobiçando
sua empregada, dispostos a fazer-lhe escandalosos ordenados. E como iria
continuar o bar sem os doces e os salgados de Gabriela, sem o seu sorriso diário,
sua momentânea presença ao meio-dia? E como iria ele viver sem o almoço e o
jantar de Gabriela, os pratos perfumados, os molhos escuros de pimenta, o
cuscuz pela manhã?
E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua cor queimada de
canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe moço
bonito, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do seio, fogueira de
pernas, como? E sentiu então a significação de Gabriela. Meu Deus!, que se
passava, por que aquele súbito temor de perdê-la, por que a brisa do mar era
vento gelado estremecer-lhe as banhas? Não, nem pensar em perdê-la, como viver
sem ela?
Jamais poderia gostar de outra comida, feita por outras mãos, temperada
por outros dedos. Jamais, ah!, jamais poderia querer assim tanto desejar, tanto
necessitar sem falta, urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais
branca que fosse, mais bem vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada. Que
significavam esse medo, esse terror de perdê-la, a raiva repentina contra os
fregueses a fitá-la, a dizer-lhe coisas, a tocar-lhe a mão, contra o juiz ladrão
de flores, sem respeito ao cargo? Nacib perguntava-se ansioso: afinal que
sentia por Gabriela, não era uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de
canela, com quem deitava por desfastio? Ou não era tão simples assim? Não se
animava a procurar a resposta.
A voz de Tonico Bastos veio – felizmente!, respirou aliviado –
arrancá-lo desses pensamentos confusos e assustadores. Mas para outra vez
neles mergulhá-lo, neles afundá-lo violentamente.
Pois, apenas haviam-se encostado no balcão, servindo-se Tonico do
amargo, e já Nacib, para varrer suas
melancolias, lhe foi dizendo:
– Então o homem chegou finalmente... Mundinho lavrou um tento, essa é a
verdade. Tonico, sorumbático, botou-lhe uns olhos maus:
– Por que você não cuida de sua vida, seu turco? Quem avisa amigo é. Em
vez de ficar falando tolices, por que não toma conta do que é seu?
Queria Tonico apenas evitar o assunto do engenheiro, ou sabia de alguma
coisa?
– Que quer você dizer com isso?
– Cuide do seu tesouro. Tem gente querendo roubar.
– Tesouro?
– Gabriela, bestalhão. Até casa querem botar pra ela.
– O juiz?
– Ele também? Ouvi falar de Manuel das Onças.
Não seria intriga de Tonico? O velho coronel estava muito do lado de
Mundinho... Mas, também era verdade, agora aparecia em Ilhéus constantemente, não
arredava do bar. Nacib estremeceu, viria do mar aquele vento gelado? Apanhou no
escondido do balcão uma garrafa de conhaque sem mistura, serviu-se um trago respeitável.
Quis puxar mais por Tonico, porem o tabelião arrenegava de Ilhéus:
– Merda de terra atrasada que se alvoroça toda com a presença de um
engenheiro. Como se fosse coisa do outro mundo...
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