Fernando Pessoa (1888-1935),
poeta português (para mim o maior de todos em nossa língua) que também escreveu
alguns poucos contos. O mais conhecido é
provavelmente O Banqueiro Anarquista (talvez um pouco excessivamente didático)
mas este, Crônica Decorativa I é brilhante.
Crônica Decorativa I
Fernando Pessoa
A circunstancia humana de eu
ter amigos fez com que ontem me acontecesse vir a conhecer o Dr. Boro,
professor da Universidade de Tóquio. Surpreendeu-me a realidade quase evidente
da sua presença. Nunca supus que um professor da Universidade de Tóquio fosse
uma criatura, ou sequer coisa, real.
O Dr. Boro — sinto que me
custa doutora-lo — pareceu-me escandalosamente humano e parecido com gente.
Vibrou um golpe, que me esforço por desviar de decisivo, nas minhas ideias
sobre o que é o Japão. Trajava à europeia, e, como qualquer mero professor
existente na Universidade de Lisboa, tinha o casaco por escovar. Ainda assim,
por delicadeza, dei-me por ciente, durante duas horas, da sua presença próxima.
Preciso explicar que as minhas
ideias do Japão, da sua flora e da fauna, dos seus habitantes humanos e das
varias modalidades de vida que lhes são próprias, derivam de um estudo demorado
de vários bules e chávenas. Eu por isso sempre julguei que um japonês ou uma
japonesa tivesse apenas duas dimensões; e essa delicadeza para com o espaço
deu-me uma afeição doentia por aquele país econômico de realidade. O professor
Boro é sólido, tem sombra — varias vezes fiz com que o meu olhar o verificasse
— e além de falar e falar inglês, coloca ideias e noções compreensíveis dentro
das suas palavras. A circunstância de que as suas ideias não comportam nem
novidade nem relevo apenas o aproxima dos professores europeus, pavorosamente
europeus, que conheço.
Além disto, o professor Boro
tem movimento, desloca-se, não sei como, de um lado para o outro, o que, feito
perante quem sempre teve o Japão por uma nação de quadro, parada e apenas real
sobre transparência de louça, é requintadamente ordinário e desiludidor.
Falamos de politica
internacional, da guerra europeia, e fizemos várias incursões pelos vários fenômenos
literários característicos da nossa época. A ignorância que o professor Boro
tinha de futurismo foi a única benzina para a nódoa da sua realidade moderna.
Mas há algum professor de alguma Universidade da Europa que siga de perto os
movi- mentos da arte contemporânea?
Dado os fatos que venho
explicando, compreende-se que eu fosse avaro de o interrogar sobre o Japão.
Para que? Ele era capaz de atirar para dentro da minha ignorância uma
quantidade de coisas falsas. Quem sabe se ele se atreveria a insinuar pela
conversa fora, como coisa normalmente acreditável, que no Japão há problemas econômicos,
dificuldades de vida para várias pessoas, cidades com lojas reais, campos com
colheitas como as nossas, exércitos realmente parecidos com os da Europa e com execráveis
aperfeiçoamentos científicos para guerras em verdade contemporâneas? Daqui ele não
hesitaria talvez em me afirmar — com que cinismo nem eu meço — que no Japão os
homens tem relações sexuais com as mulheres, que nascem crianças, que a gente
de lá, em vez de estar sempre vestida como as figuras da louça japonesa,
despe-se e veste-se como se fosse europeia. Por isso não tratamos do Japão.
Perguntei ao professor se ele tinha tido uma boa viagem, e ele caiu em dizer-me
que não — como se um estudioso como eu da porcelana nipônica pudesse admitir
que há más viagens para os japoneses, que — delicioso povo! — nem sequer se dá
ao trabalho de existir. As chávenas partem-se, não comportam tormentas. A frase
«uma tempestade num copo de água» ou «numa chávena», como dizem outros, e
puramente europeia.
Uma frase houve (casual, quero
crer, no professor Boro) que me magoou mais do que outra.
Falávamos — eu, é claro, com o
desprendimento com que se tratam estes assuntos feéricos — da influencia dos
mecanismos sobre a psicologia do operário, quando se sabe — claro está — que o
operário não tem psicologia. E o professor referiu-se aos progressos
industriais do Japão e acrescentou umas palavras, que me esforcei com metade de
êxito para não ouvir, sobre (creio) movimentos operários no Japão e um
fuzilamento (suponho) de não sei que chefe socialista. Eu há tempos — numa
coluna sem duvida humorística de um diário — vira em um telegrama de Tóquio
constando qualquer coisa nesse tom; mas, além de não crer que de Tóquio se
mandassem telegramas — visto Tóquio não dever ter mais do que duas dimensões —,
ninguém que como eu tenha estudado a psicologia japonesa através das chávenas e
dos pires, admite progressos de qualquer espécie no Japão, industrias
japonesas, movimentos socialistas e chefes socialistas, ainda por cima fuzilados,
como quaisquer europeus que vivem. Quem como eu conhece bem o Japão — o
verdadeiro Japão, de porcelana e erros de desenho —, compreende bem a
incompatibilidade entre o progresso, indústria e socialismo, e a absoluta
não-existência daquele pais. Socialistas japoneses! Uma contradição flagrante!
Uma frase sem sentido, como «circulo quadrado»! Se nem o inexistente estivesse
livre do socialismo! Aquelas figuras deliciosas, eternamente sentadas ao pé de
casas do tamanho delas, a beira de lagos absurdos, de um azul impossível, aquém
de montanhas totalmente irreais — essas maravilhosas figuras, com uma perfeita
e patriótica individualidade japonesa, não pertencem decerto ao horroroso mundo
onde se progride, e onde sobre o artista desabam a morbidez do produtivo e a barbárie
do humanitário.
E vem querer tirar-me estas convicções
o professor Boro, da Universidade de Tóquio! Não mas tira. Não é para ser
enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu tenho gasto
minutos distensos na contemplação cientifica e estéril de bules e chávenas
japonesas. O mais provável, a respeito deste Boro, e que nascesse em Lisboa e
se chame José. Do Japão, ele? Nunca.
Se ao menos achei japonesa a
sua cara? Absolutamente nada. Basta dizer que era real e existiu ali diante de
mim, duas dolorosas horas, em plena ocupação inestética de todas as dimensões aproveitáveis
(felizmente só três) do espaço autentico. A sua cara parecia-se, e certo, com
certas fotografias de «japoneses» que as ilustrações trouxeram há anos, e de
vez em quando reincidindo trazem; mas toda a gente que sabe o que é o Japão por
nunca lá ter ido sabe de cor que aquilo não são japoneses. E, de mais a mais,
essas ilustrações eram principalmente de generais, almirantes, e operações
guerreiras. Ora é absolutamente impossível que no Japão haja generais,
almirantes e guerra. Como, de resto,
fotografar o Japão e os japoneses? A primeira coisa real que há no Japão e o fato
de ele estar sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá
ir, nem eles podem vir até nós. Concedo, se me forçarem a isso, que existam um Tóquio
e um Iocoama. Mas isso não e no Japão, e apenas no Extremo Oriente.
O resto da minha vida,
doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer o professor Boro e que ele
— impronunciável absurdo! — se sentou na cadeira que está agora, na realidade
de madeira, defronte de mim. Considero doentio esse fato, alucinatório talvez,
e entrego-me com assiduidade a não me lembrar dele mais. Um japonês verdadeiro
aqui, a falar comigo, a dizer-me coisas que nem mesmo eram falsas ou contraditórias!
Não. Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é claro. Porque ele
pode chamar-se Macwhisky e ser de Inverness. O que ele não era decerto era japonês,
real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca. Desse modo não havia ciência,
se o primeiro ocasional nos viesse negar o que os nossos estudos assíduos nos
fizeram ver.
Professor Boro, da
Universidade de Tóquio? De Tóquio? Universidade de Tóquio? Nada disso existe.
Isso é uma ilusão. Os inferiores e cábulas de nós construíram, para se não
desorientarem, um Japão a imagem e semelhança da Europa, desta triste Europa tão
excessivamente real. Sonhadores! Alucinados!
Basta-me olhar para aquela
bandeja, pegar cariciosamente com o olhar naquele serviço de chá. Depois venham
falar-me em Japão existente, em Japão comercial, em Japão guerreiro! Não é para
nada que, através de esforços consecutivos, a nossa época ganhou o duro nome de
científica. Japoneses com vida real, com três dimensões, com uma pátria com
paisagens de cores autenticas! Lérias para entretenimento do povo, mas que a
quem estudou não enganam...
O narrador não quer se desiludir, ironicamente; quer continuar a crer na imagem encantada que construiu para si. Conto maravilhoso, sintaxe castiça maravilhosa.
ResponderExcluirIncrível esse conto! Pena que F.P não tenha se exercitado mais no conto. Ele teria sido um contista fantástico...
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