William Cuthbert Faulkner (1897-1962),
escritor norte americano nascido no Mississipi recebeu o Premio Nobel de
literatura em 1949. Sua obra, imortalizou a vida e as tradições do sul dos
Estados unidos na primeira metade do século XX. O conto “Uma Rosa para Emília”,
foi publicado em 1930 na revista The Forum e apesar de ser o primeiro conto de
Faulkner publicado em uma revista de alcance nacional, tornou-se um dos contos
clássicos da literatura norte americana.
Uma rosa
para Emília
William
Faulkner
Quando Miss Emily Grierson
morreu, toda a nossa cidade compareceu ao enterro: os homens em atenção a essa
espécie de carinho respeitoso que se tem por um monumento tombado; as mulheres
movidas pela curiosidade de ver o interior de sua casa, onde ninguém entrara
nos últimos dez anos, exceto um velho negro, ao mesmo tempo cozinheiro e
jardineiro.
Era um casarão quadrado, de
madeira, outrora branco, decorado de cúpulas, de flechas, de balcões, no estilo
pesadamente frívolo da época de 1870, situado na rua que já tinha sido a mais
distinta da cidade. Mas as garagens e as debulhadoras de algodão,
multiplicando-se em derredor, acabaram por fazer desaparecer até os nomes
augustos daquele bairro. A casa de Miss Emily era a única, levantando sua
decrepitude teimosa e faceira acima dos vagões de algodão e das bombas de
gasolina. Emily tinha ido juntar-se aos representantes daqueles nomes augustos,
no cemitério adormecido sob os cedros, onde jaziam entre os túmulos
enfileirados e anônimos, dos soldados da União e dos Confederados mortos no
campo de batalha de Jefferson.
Viva, Miss Emily fora uma tradição,
um dever e um aborrecimento: espécie de obrigação hereditária, pesando sobre a
cidade desde o dia em que, em 1894, o Coronel Sartóris (o prefeito que baixou o
decreto proibindo às negras saírem à rua sem avental) a isentara do pagamento
de impostos, isenção definitiva, que datava da morte de seu pai. Isto não quer
dizer que Miss Emily aceitasse a caridade. O Coronel Sartóris inventara a
complicada história de um empréstimo em dinheiro, feito pelo pai de Miss Emily
à cidade e que a cidade, por conveniência própria, preferia reembolsar dessa
maneira. Só um homem da geração e com as ideias do Coronel Sartóris poderia ter
imaginado semelhante coisa, e só uma mulher poderia ter acreditado.
Quando a geração seguinte, com
suas ideias modernas, deu, por sua vez, prefeitos e intendentes municipais,
essa concessão provocou alguns descontentamentos. No primeiro dia do ano,
dirigiram a Miss Emily uma notificação de impostos. Fevereiro chegou, sem
trazer resposta. Enviaram-lhe uma carta oficial, pedindo-lhe para passar,
quando pudesse, no gabinete do delegado. Na semana seguinte, o próprio prefeito
lhe escreveu, oferecendo-se para ir, em pessoa, à sua casa, ou para mandar
buscá-la no seu carro particular. Recebeu, como resposta, uma folha de papel de
feitio arcaico, escrita com tinta desbotada, numa letra miúda e fluente,
comunicando-lhe que não saía mais de casa. A notificação de pagamento de
imposto vinha inclusa, sem comentários.
O Conselho Municipal reuniu-se
em sessão extraordinária. Uma delegação dirigiu-se à sua casa e bateu naquela
porta que nenhum visitante transpusera desde que, oito ou dez anos antes, Miss
Emily deixara de dar lições de pintura em porcelana. Os membros da delegação foram
introduzidos num saguão escuro, de onde uma escada se projetava para as sombras
ainda mais que espessas do andar superior. Havia em tudo um cheiro de poeira,
de guardado, de coisas que nunca são usadas -um cheiro de mofo e umidade. O
negro conduziu-os ao salão, de mobiliário pesado, forrado de couro. Quando o
negro abriu as cortinas de uma das janelas, viram que o couro estava estalado,
descascando e, ao se sentarem, uma nuvem leve de pó subiu-lhe preguiçosamente
em volta das coxas e se espalhou em círculos vagarosos, desenrolando-se,
desagregada, na única réstia de sol. Num cavalete de moldura dourada, perto da
lareira, via-se o retrato a carvão do pai de Miss Emily.
Levantaram-se à sua entrada. Era
uma mulherzinha pequena e gorda, vestida de preto, com uma fina corrente de
ouro descendo-lhe do pescoço até a cintura, onde desaparecia no cós da saia.
Tinha a ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em outra pessoa
seria apenas gordura, parecia, nela, obesidade. Dava a impressão de estar inchada,
como um cadáver muito tempo submerso numa água estagnada; tinha, mesmo, de um
afogado, a carne lívida e balofa. Seus olhos, perdidos nas intumescências de
sua face, lembravam dois pedacinhos de carvão enfiados numa bola de massa e iam
de um rosto a outro, enquanto os visitantes expunham o caso.
Não mandou que sentassem.
Conservou-se, apenas, em pé no limiar da sala, e esperou tranquilamente que o
porta-voz se interrompesse, balbuciando. Então, puderam ouvir o tic-tac do
relógio invisível, preso na ponta de sua corrente de ouro.
Sua voz era seca e fria:
– Não tenho impostos a pagar em
Jefferson. O Coronel Sartóris me explicou isso. Talvez um dos senhores possa
consultar os arquivos da cidade e dar satisfações aos demais.
– Mas nós o fizemos. Nós somos
as autoridades no município, Miss Emily. A senhora não recebeu a notificação
assinada pelo delegado?
– Sim, recebi um papel – disse
Miss Emily. – Talvez ele se considere realmente o delegado… Não tenho impostos
a pagar em Jefferson.
– Mas não há, nos livros, nada
que o possa provar. Veja a senhora… É preciso que nós…
– Procurem o Coronel Sartóris.
Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
– Mas, Miss Emily –
– Procurem o Coronel Sartóris.
(Havia quase dez anos que o Coronel Sartóris estava morto) – Não tenho impostos
a pagar em Jefferson. Tobe! – O negro apareceu. – Acompanha estes cavalheiros.
Assim ela os venceu
irremediavelmente, como já lhes vencera os pais, trinta anos antes, a respeito
do cheiro. Isso aconteceu dois anos após a morte de seu pai, e quase em seguida
à ocasião em que o namorado – aquele mesmo que nós pensávamos iria se casar com
ela – a abandonou. Aquela morte e o abandono do namorado fizeram que ela depois
pouco saísse de casa. Algumas senhoras tiveram a temeridade de ir visitá-la,
mas não foram recebidas e, naquela casa, o único sinal de vida era o negro –
ainda moço, então – que entrava e saía com um cesto de compras.
– Como se um homem – seja quem
for! – pudesse conservar limpa uma cozinha! – diziam as senhoras. Assim,
ninguém se surpreendeu quando se começou a sentir o cheiro. Foi um novo laço
que se estendeu entre a gente grosseira e prolífica do bairro e os grandes e
poderosos Grierson.
Uma mulher, sua vizinha, foi
queixar-se ao prefeito, Juiz Stevens, que contava, então, oitenta anos.
– Mas que quer a senhora que eu
faça? – perguntou ele,
– Ora, que ela acabe com isso –
disse a mulher. Não existe lei?
– Estou certo de que não será
necessário – afirmou o Juiz Stevens. Provavelmente, é só uma cobra ou um rato
que o negro matou no quintal. Amanhã falarei com ele a esse respeito.
No dia seguinte, recebeu duas
novas queixas; uma partiu de um homem, que apresentou uma súplica tímida.
– Nós precisamos, realmente,
fazer alguma coisa nesse caso, sr. Juiz. Eu seria a última pessoa neste mundo
capaz de incomodar Miss Emily, mas precisamos fazer alguma coisa.
Nessa mesma noite, reuniu-se o
Conselho Municipal: três barbas grisalhas e um rapaz moço, membro da nova
geração.
– A coisa é muito simples –
disse o moço. – Mandem. lhe dizer para limpar a casa. Deem-lhe um certo prazo
para obedecer e, se ela não…
– Deus me livre, senhor! –
exclamou o Juiz Stevens. Quer então dizer a uma senhora, nas bochechas, que ela
cheira mal?
Assim, na noite seguinte, de
madrugada, quatro homens atravessaram o gramado do jardim de Miss Emily e, como
assaltantes, rondaram a casa, farejando os alicerces de tijolos e os
respiradouros do porão, enquanto um deles, com um saco nos ombros, fazia, com
regularidade, o gesto do semeador. Arrombaram a porta da adega, que salpicaram
de cal, assim como todas as dependências. Quando, de volta, atravessaram o
gramado, uma janela, até então sombria, iluminou-se de repente e viram Miss
Emily sentada à contraluz, ereta, rígida, imóvel como um ídolo. Atravessaram em
silêncio o gramado, metendo-se por entre as sombras das acácias que margeavam a
rua. Depois de uma ou duas semanas, o cheiro desapareceu.
Isso foi quando as pessoas
começaram realmente a ter pena dela. A gente de nossa cidade, que se lembrava
de Lady Wyatt, sua tia-avó, que acabara louca, achava que os Grierson se
julgavam muito mais importantes do que eram na realidade. Nenhum dos rapazes da
cidade fora jamais considerado à altura de Miss Emily. Nós os imaginávamos
muitas vezes como um quadro: ao fundo, Miss Emily, esguia figura vestida de
branco; no primeiro plano, a silhueta de seu pai, virando-lhe as costas, com as
pernas abertas, um chicote na mão; ambos, enquadrados pelos caixilhos da porta
escancarada. Assim, quando ela chegou aos trinta anos ainda solteira, não posso
dizer que isso tenha causado uma verdadeira alegria, mas nós, os rapazes, nos
sentimos vingados; mesmo com os casos de loucura na família, ela não teria
virado as costas a todas as oportunidades, se essas se tivessem verdadeiramente
materializado.
Morto o pai, correu o boato de
que só lhe tinha ficado a casa de herança, o que, de certo modo, alegrou todo
mundo. Até que enfim, podiam apiedar-se de Miss Emily. Sozinha e na pobreza,
iria humanizar-se. Agora, ela também conheceria a velha satisfação e o velho
desespero de um vintém a mais ou de um vintém a menos.
No dia seguinte ao da morte do
velho, as senhoras da cidade preparavam-me para ir à sua casa, apresentar-lhe
os pêsames, conforme o costume. Miss Emily recebeu-as no limiar da porta,
vestida como nos outros dias, e sem a menor marca de tristeza ou sofrimento na
expressão. Disse-lhes que o pai não tinha morrido. Repetiu essas palavras
durante três dias, quando os pastores e os médicos iam vê-la, tentando
persuadi-la a deixar dispor do cadáver. Mas, no momento em que estavam
resolvidos a recorrer à Lei e à força, ela cedeu, e enterraram-lhe o pai a toda
pressa.
Não se disse, então, que estava
louca. Pensamos que tinha agido como devia. Lembrávamo-nos de todos os moços
que seu pai afastara, e sabíamos que, achando-se sem nada, ela deveria
agarrar-se àquele que a despojara de tudo, como em geral acontece.
Esteve muito tempo doente.
Quando tornamos a vê-la, tinha os cabelos cortados, o que a fazia parecer uma
menina e lhe dava uma vaga semelhança com os anjos dos vitrais de igreja – uma
mistura de trágico e sereno.
A cidade acabava justamente de
firmar o contrato para pavimentação das calçadas e, no verão que seguiu a morte
de seu pai, começaram os trabalhos. A companhia construtora trouxe negros,
mulas e máquinas, e um contramestre chamado Homer Barron, um “yankee”, homem
grande, moreno e decidido, com um vozeirão enorme e olhos mais claros do que a
pele do rosto. Os garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo gritar com os
negros, e para ouvir os negros cantando em compasso, enquanto erguiam e
abaixavam a picareta. Em breve, o contramestre conhecia toda a gente da cidade.
Cada vez que se ouviam ruidosas gargalhadas na praça, podia-se jurar que Homer
Barron estava no centro do grupo. Não tardamos a avistá-lo, nos domingos à
tarde, passeando com Miss Emily na carriola de aluguel, que tinha rodas
amarelas e era puxada por uma parelha de cavalos baios.
A princípio, todos ficaram
satisfeitos de ver que Miss Emily tinha agora um interesse na vida. As senhoras
andavam dizendo: “Naturalmente, nunca uma Grierson tomará a sério um nortista,
um assalariado.”
Mas havia outras pessoas, as
mais velhas, que achavam que nem mesmo o desgosto deveria fazer que uma
verdadeira senhora se esquecesse de que “noblesse oblige”. (Sem no entanto, empregar
essa expressão: Noblesse oblige). Diziam, apenas: “Pobre Emily. Os parentes
deviam procurá-la.”
Tinha parentes em Alabama, mas,
alguns anos antes, o pai rompera com eles por causa da herança da velha Lady
Wyatt, a louca, e não havia mais relações entre as duas famílias. Nem sequer se
tinham feito representar no enterro.
E, mal a gente velha exclamou
“Pobre Emily”, os mexericos começaram: “Vocês imaginam que, realmente. . .”
diziam uns para os outros. – “Mas nem há dúvida. Porque, a não ser isso. . ” tudo
sussurrado atrás das mãos no amarrotado farfalhar de sedas e cetins por detrás
das janelas fechadas ao sol das tardes de domingo, enquanto a parelha de
cavalos baios passava num leve e apressado clop-clop-clop. – “Pobre Emily!”
Ela, porém, erguia a cabeça bem
alto, mesmo quando pensávamos que tinha decaído. Parecia, mais do que nunca,
exigir que se reconhecesse sua dignidade de última dos Grierson, como se fosse
necessário aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais
profundamente a sua impenetrabilidade. Tal como no dia em que comprou o veneno
para ratos, o arsênico. Isso aconteceu um ano depois de terem começado a dizer:
“Pobre Emily”, e quando as duas
primas estavam hospedadas em sua casa.
– Quero comprar veneno – disse
ao farmacêutico. Contava, então, mais de trinta anos; era ainda delgada, embora
estivesse mais magra do que de costume, com os olhos negros, altivos e frios
num rosto cuja pele se repuxava na altura das têmporas e em volta das
pálpebras, como se imaginava que deveria ser o rosto de um guardião de farol. –
Quero comprar veneno.
– Pois não, Miss Emily. Que
espécie de veneno? para ratos ou qualquer coisa assim? Recomen…
– Quero o que o senhor tiver de
melhor. Não importa qual seja.
O farmacêutico citou alguns:
– Matariam até mesmo um
elefante. Mas o que a senhora quer e…
– Arsênico – disse ela. – É bom?
– É… arsênico? Pois sim,
senhora. Mas o que a senhora quer ….
– Eu quero arsênico.
– Pois, naturalmente – disse
ele. – Se é isso que a senhora quer. Porém, a lei determina que a senhora
declare o fim que dará ao veneno.
Miss Emily limitou-se a fitá-lo,
com a cabeça pendida para melhor fixar os olhos nos olhos dele, até forçá-lo a
desviar o olhar e a ir buscar o arsênico, que embrulhou. O caixeiro negro que
fazia entregas trouxe-lhe o pacote, pois o farmacêutico não tornou a aparecer.
Ao chegar em casa, tirou o papel; na tampa da caixa, debaixo da caveira e os
dois ossos, estava escrito: “Para ratos”.
Assim, no dia seguinte, nós
dizíamos: “Ela vai suicidar-se”, e achávamos que era a melhor solução. Quando
começáramos a vê-la com Homer Barrou, tínhamos dito: “Vai casar-se com ele”.
Depois, dizíamos: “Ela ainda acabará por persuadi-lo”, porque o próprio Homer
observava – gostava da companhia dos homens e sabia-se que bebia com os rapazes
no Elk’s Club – que não era feito para casamento. Mais tarde, dissemos: “Pobre
Emily”, por detrás das venezianas, quando ambos passavam, nas tardes de
domingo, na carriola vistosa, Miss Emily de cabeça erguida e Homer Barrou com o
chapéu de lado e um charuto entre os dentes, segurando as rédeas e o chicote
nas luvas amarelas.
Então, algumas senhoras
começaram a declarar que aquilo era uma vergonha para a cidade e um mau exemplo
para a gente moça. Os homens não ousavam intervir, mas, finalmente, as mulheres
forçaram o pastor batista – a gente de Miss Emily era episcopal – a ir
procurá-la. O pastor negou-se sempre a contar o que acontecera durante a
entrevista e recusou-se a voltar à sua casa. No domingo seguinte, saíram juntos
novamente e, no outro dia, a mulher do ministro escreveu aos parentes de Miss
Emily, em Alabama.
Dessa forma, ela teve pessoas de
seu sangue outra vez debaixo de seu teto e nós ficamos todos à espera dos
acontecimentos. A princípio, nada aconteceu. Depois, ficamos convencidos de que
iam se casar. Soubemos que Miss Emily fora à joalheria e encomendara um jogo de
toucador para homem, todo de prata, com as iniciais II. B. gravadas em cada
peça. Dois dias mais tarde, fomos informados de que comprara um enxoval
masculino completo, inclusive uma camisola de dormir, e dissemos: “Estão
casados”. E ficamos contentes, porque as duas primas eram mais Grierson ainda
do que Miss Emily jamais o fora.
Não tivemos grande surpresa
quando, terminado o calçamento das ruas, Homer Barron partiu. Sentimo-nos um
pouco decepcionados por não ter havido nenhuma manifestação pública de
regozijo, mas julgamos que se tivesse afastado para preparar a ida de Miss
Emily, ou para lhe dar a oportunidade de se livrar das primas. (Por essa época
formáramos uma verdadeira cabala, e éramos todos aliados de Miss Emily no
sentido de ajudá-la a alijar as primas). O que é certo é que elas partiram ao
fim de outra semana. E, como esperávamos, no terceiro dia após essa partida,
Homer Barron estava de volta à cidade. Os vizinhos viram o negro abrir-lhe a
porta da cozinha, uma tarde ao escurecer.
Foi essa a última vez que vimos
Homer Barron. E, durante algum tempo, não tornamos também a ver Miss Emily. O
negro ia e vinha com a cesta das compras, mas a porta da entrada continuava
fechada. Uma vez ou outra conseguimos avistá-la à janela por alguns instantes,
como naquela noite em que os homens foram à sua casa espalhar a cal; durante
mais de seis meses, porém, ela não apareceu nas ruas. Compreendemos que isso
também era de esperar; como se aquele aspecto do caráter de seu pai, que tantas
vezes constrangera sua vida de mulher, fosse virulento e furioso demais para
morrer assim.
Quando a vimos novamente, Miss
Emily tinha engordado muito e seus cabelos estavam ficando grisalhos. Nos anos
seguintes, foram ficando cada vez mais grisalhos, até o momento em que, tendo
adquirido um tom cinzento-de-aço, sua cabeleira não mudou mais de cor. Até o
dia de sua morte, aos setenta e quatro anos, aqueles cabelos conservavam ainda
esse vigoroso tom cinzento-de-aço, como os cabelos de um homem ativo.
Desde aquela época, sua porta
ficara fechada, exceto no decorrer de um período de seis ou sete anos, quando
ela, quarentona, dava aulas de pintura em porcelana. Instalara, num aposento do
andar térreo, o atelier onde as filhas e netas dos contemporâneos do Coronel
Sartóris lhe eram enviadas com a mesma regularidade e dentro do mesmo espírito
com que as mandavam à igreja, nos domingos, munidas de uma moedinha de vinte
centavos para a hora da coleta. Nesse ínterim, Miss Emily se vira dispensada do
pagamento de impostos.
A nova geração tornou-se, então,
a espinha dorsal e a alma da cidade, as alunas cresceram e dispersaram-se, e
não lhe mandaram as filhas com as caixinhas de tinta, os aborrecidos pincéis e
os modelos recortados das revistas ilustradas femininas. A porta fechou-se
sobre a última aluna e ficou fechada desde então. Quando a cidade adotou a
distribuição gratuita do correio, Miss Emily foi a única pessoa que se negou a
consentir que fixassem um número de metal acima de sua porta e uma caixa postal
ao lado. Não houve argumento que a convencesse.
Dias, meses e anos, vimos o
negro, cada vez mais grisalho e curvado, entrando e saindo com a cesta de
compras. Anualmente, em dezembro, mandavam-lhe a declaração de impostos, que o
correio devolvia na semana seguinte, com a nota de não haver sido reclamada.
Uma vez ou outra, nós a avistávamos diante da janela do andar térreo – tinha,
evidentemente, fechado todo o andar superior da casa – semelhante ao busto
esculpido de um ídolo no seu nicho, e nunca chegamos a saber se estava olhando
para nós, ou se nem sequer nos via. E assim passou ela de geração para geração
– querida, inevitável, impenetrável, tranquila e perversa.
E, então, ela morreu. Caiu
doente no seu casarão cheio de sombras e de pó, tendo como único auxílio o
negro caduco. Nem ao menos soubéramos que estava doente, pois havia já muito
tempo que desistíramos de arrancar qualquer informação ao negro. Não falava com
pessoa alguma, talvez nem mesmo com ela; sua voz se tornara áspera e rouquenha
como uma voz que não serve nunca.
Morreu num dos quartos do andar
térreo, numa cama de nogueira maciça com cortinados, a cabeça grisalha erguida
por um travesseiro amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol.
O negro encontrou a primeira das
senhoras na porta da frente; deixou-as entrar, com suas vozes sussurradas e
sibilantes, com seus olhares rápidos, furtivos e curiosos, e depois
desapareceu. Meteu-se pela casa a dentro, atravessou-a toda, saiu pelos fundos
e sumiu para sempre.
A duas primas não tardaram a
chegar. Fizeram o enterro no segundo dia. A cidade em peso compareceu para ver
Miss Emily coberta por um montão de flores compradas, o retrato, a carvão, de
seu pai profundamente pensativo, acima do caixão, cercado pelas senhoras
sibilantes e macabras. No saguão e no gramado, homens, muito velhos – alguns
nos uniformes de confederados muito bem escovadinhos – falavam de Miss Emily
como se fosse uma de suas contemporâneas, imaginando que tinham dançado com
ela, e até mesmo, talvez, que a tinham namorado, confundindo o tempo e a
progressão matemática, como fazem os velhos, para os quais o passado não é uma
estrada que se vai encurtando, porém uma vasta planície nunca atingida pelo
inverno, dividida para eles, agora, pelo estreito gargalo da ampulheta dos
últimos dez anos.
Nós todos já sabíamos da
existência, naquela região, do andar superior, onde ninguém pisara há quarenta
anos, de um quarto fechado que seria preciso arrombar. Esperamos que Miss Emily
estivesse docemente enterrada, antes de forçá-lo.
A violência com que pusemos a
porta abaixo pareceu encher o quarto de uma poeira penetrante. Era como se uma
mortalha, tênue e acre, se estendesse sobre todas as coisas daquele quarto,
mobiliado e enfeitado para urna noite de núpcias: sobre as desbotadas cortinas
de pesada seda cor-de-rosa, sobre os quebra. Luzes rosados das lâmpadas, sobre
a penteadeira, sobre os delicados objetos de cristal, sobre as peças do
aparelho de toucador para homem, com seus dorsos de prata embaciados, tão
embaciados que nem se distinguiam os monogramas escurecidos.
Entre os pertences do toucador,
estavam jogados um colarinho e uma gravata, como se tivessem acabado de
tirá-los naquele momento; quando os levantamos, deixaram na superfície uma
pálida meia lua traçada na poeira. O terno de roupa estava dobrado
cuidadosamente numa cadeira, debaixo da qual se viam os dois sapatos mudos e as
meias largadas no chão.
E o homem estava deitado na
cama.
Durante muito tempo, ali
ficamos, imóveis, olhando para o seu ricto profundo e descarnado, O corpo devia
ter, a principio, repousado na atitude de carícia, abraçado a outro corpo, mas
agora o grande sono que sobrevive ao amor, o grande sono que vence até mesmo as
carícias do amor, dominara-o afinal. O que restava dele, em decomposição dentro
do que restava de sua camisola de dormir, tornara-se inseparável do leito em
que jazia; e sobre ele, assim como sobre o travesseiro vazio ao seu lado,
estendera-se aquela camada espessa de paciente e obstinada poeira.
Notamos, então, que no segundo
travesseiro havia a marca funda de uma cabeça. Um de nós encontrou qualquer
coisa caída sobre esse travesseiro e, debruçando-se, enquanto a leve,
impalpável poeira acre e seca, nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de
cabelo de um tom cinzento-de-aço.
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