Adolfo Bioy Casares (1914-1999)
escritor argentino, colaborador e amigo de Juan Carlos Borges e autor de um dos
mais importantes romances do realismo fantástico latino americano: A invenção
de Morel. O vigor de sua criatividade esta presente neste Conto “Em Memoria de
Paulina” onde ele leva o leitor, suavemente e com refinada elegância, a navegar
pelos caminhos delirantes da imaginação do autor. Uma viagem fantástica!
Em memoria de Paulina
Adolfo Bioy Casares
Sempre amei Paulina. Em uma de
minhas primeiras recordações, Paulina e eu estamos escondidos em um sombrio caramanchão
de loureiros, em um jardim com dois leões de pedra. Paulina me disse: Gosto de
azul, gosto de uvas, gosto de gelo, gosto de rosas, gosto de cavalos brancos.
Eu entendi que a minha felicidade havia começado, porque nessas preferencias
podia me identificar com Paulina.
Éramos tão milagrosamente parecidos que, em um livro sobre a reunião final das almas na
alma do mundo, minha amiga escreveu na margem: As nossas já se reuniram.
“Nossas”, naquele tempo, significava a dela e a minha.
Para explicar tal semelhança
argumentei que eu era um rascunho remoto e apressado de Paulina. Lembro que
anotei no meu caderno: Todo poema é um rascunho da Poesia e em cada
coisa há uma prefiguração de Deus. Também pensei: Em tudo o que eu
me parecer com Paulina, estou a salvo. Via (e vejo ainda hoje) a identificação com
Paulina como a melhor possibilidade do meu ser, como o refúgio onde me livraria
dos meus defeitos naturais, da estupidez, da negligência, da vaidade.
A vida foi um doce costume que
nos levou a esperar, como algo natural e certo, nosso futuro casamento. Os pais
de Paulina, insensíveis ao prestigio literário prematuramente alcançado, e
perdido, por mim, prometeram dar o consentimento quando eu me formasse. Muitas
vezes imaginávamos um futuro bem arrumado, com tempo para trabalhar, para
viajar e para amar-nos. Imaginávamos essas coisas tão vividamente que afinal
nos persuadíamos de que já morávamos juntos.
Falar do nosso casamento não
nos induzia a tratar-nos como noivos. Passamos a infância juntos e continuava
havendo entre nós uma casta amizade de crianças. Não me atrevia a assumir o
papel de apaixonado e dizer a ela, em tom solene: Eu te amo. No entanto, como a
amava, com que amor atônito e escrupuloso eu olhava sua resplandecente perfeição.
Paulina gostava quando eu
recebia amigos. Preparava tudo, atendia os convidados e, secretamente, brincava
de ser dona de casa. Confesso que essas reuniões não me deixavam muito feliz. A
que organizamos para Julio Montero conhecer escritores não foi exceção.
Na véspera, Montero tinha me
visitado pela primeira vez. Empunhava, na ocasião, um copioso manuscrito e o despótico
direito que uma obra inédita confere sobre o tempo do próximo. Pouco depois da
visita eu já havia esquecido seu rosto hirsuto e quase negro. Quanto ao conto
que ele me leu – Montero me pediu que lhe dissesse com toda sinceridade se o
impacto da sua amargura era muito forte —, talvez fosse notável, porque
revelava um vago proposito de imitar escritores positivamente diversos. A ideia
central vinha do provável sofisma: se determinada melodia surge da relação
entre o violino e os movimentos do violinista, de determinada relação entre
movimento e matéria surgia a alma de cada pessoa. O herói do conto fabricava
uma maquina de produzir almas (uma espécie de bastidor, com madeiras e
barbantes). Depois o herói morria. Velavam e enterravam o cadáver; mas ele
continuava secretamente vivo no bastidor. No ultimo parágrafo o bastidor
aparecia, junto a um estereoscópio e um tripé com uma pedra de galena, no
quarto onde havia morrido uma senhorita.
Quando consegui desviá-lo dos
problemas do seu argumento, Montero revelou uma estranha ambição de conhecer
escritores.
– Volte amanhã à tarde — disse
a ele. — Vou lhe apresentar alguns.
Montero se descreveu como um
selvagem e aceitou o convite. Talvez movido pela satisfação de vê-lo ir embora,
desci com ele até a portaria. Quando saímos do elevador, Montero descobriu o
jardim que há no pátio. Às vezes, com a luz tênue da tarde, visto através da
porta de vidro que o separa do hall, esse jardim diminuto sugere a misteriosa
imagem de um bosque no fundo de um lago. De noite, uns refletores de luz roxa e
alaranjada o transformam em um horrível paraíso de caramelo. Montero o viu de
noite.
– Vou ser sincero — disse ele,
resignando-se a tirar os olhos do jardim. – De tudo o que vi na casa, isto é o
mais interessante.
No dia seguinte Paulina chegou
cedo; às cinco da tarde já tinha aprontado tudo para a recepção. Mostrei a ela
uma estatueta chinesa, de pedra verde, que havia comprado em um antiquário
naquela manha. Era um cavalo selvagem, as patas no ar e a crina levantada. O
vendedor garantiu que simbolizava a paixão.
Paulina pôs o cavalinho em uma
prateleira da estante e exclamou: É bonito como a primeira paixão de uma vida.
Quando lhe disse que era um presente, ela impulsivamente pôs os braços em volta
do meu pescoço e me beijou.
Tomamos um chá na copa. Eu lhe
contei que tinham me oferecido uma bolsa para estudar dois anos em Londres. De
repente acreditamos em um casamento imediato, na viagem, na nossa vida na
Inglaterra (que nos parecia tão imediata quanto o casamento). Consideramos pormenores de economia doméstica;
as privações, quase doces, a que nos submeteríamos; a distribuição das horas de
estudo, de passeio, de repouso e, talvez, de trabalho; o que Paulina faria
enquanto eu estivesse nas aulas; a roupa e os livros que levaríamos. Depois de algum
tempo fazendo planos, admitimos que eu teria de abrir mão da bolsa. Faltava uma
semana para os exames, mas já era evidente que os pais de Paulina queriam adiar
o nosso casamento.
Começaram a chegar os
convidados. Eu não me sentia feliz. Quando conversava com uma pessoa, só
pensava em algum pretexto para me afastar dali. Parecia impossível abordar
algum tema que interessasse ao interlocutor. Quando queria me lembrar de alguma
coisa, perdia a memória ou a achava longe demais. Ansioso, fútil, abatido, eu
pulava de um grupo a outro desejando que as pessoas fossem embora, que ficássemos
sozinhos, que chegasse o momento, ai, tão breve, de levar Paulina para sua
casa.
Perto da janela, minha noiva
conversava com Montero. Quando olhei para ela, levantou os olhos e inclinou seu
rosto perfeito em minha direção. Senti que havia um refúgio inviolável na
ternura de Paulina, um refugio onde nós dois estávamos sozinhos. Como desejei
dizer que a amava! Tomei a firme decisão de perder nessa mesma noite a minha
pueril e absurda vergonha de lhe falar de amor. Ah, se eu pudesse (suspirei)
lhe comunicar agora os meus pensamentos. Em seu olhar palpitou uma generosa,
alegre e surpresa gratidão.
Paulina me perguntou em que
poema um homem se distancia tanto de uma mulher que quando a encontra no céu não
a cumprimenta. Eu sabia que o poema era de Browning e me lembrava vagamente dos
versos. Passei o resto da tarde procurando-os na edição da Oxford. Se não me
deixavam com Paulina, procurar algo para ela era preferível a conversar com
outras pessoas, mas eu estava singularmente agitado e me perguntei se a
impossibilidade de encontrar o poema não era um pressagio. Olhei para a janela.
Luis Alberto Morgan, pianista, deve ter notado minha ansiedade, porque me
disse:
– Paulina está mostrando a
casa a Montero.
Dei de ombros, tentei
disfarçar minha contrariedade e simulei me interessar de novo, pelo livro de
Browning. Obliquamente vi Morgan entrando no meu quarto. Pensei: vai chamá-la.
Logo em seguida reapareceu com Paulina e Montero.
Por fim alguém foi embora;
depois, com despreocupação e vagar, outros partiram. Chegou um momento em que
só ficamos Paulina, eu e Montero. Então, como eu temia, Paulina exclamou:
– Já é tarde. Vou embora.
Montero interveio rapidamente:
– Se me permitir, eu a
acompanho até sua casa.
– Eu também vou acompanhá-la —
respondi.
Falei com Paulina, mas olhei
para Montero. Pretendia que os olhos comunicassem meu desprezo e meu ódio.
Quando chegamos embaixo, notei
que Paulina não estava com o cavalinho chinês. Disse a ela:
– Você esqueceu o meu
presente.
Subi até o apartamento e
voltei com a estatueta. Os dois estavam encostados na porta de vidro, olhando
para o jardim. Peguei no braço de Paulina e não deixei que Montero se
aproximasse dela pelo outro lado. Na conversa prescindi ostensivamente de
Montero.
Ele não se ofendeu. Quando nos
despedimos de Paulina, insistiu em vir comigo até minha casa. No trajeto falou
de literatura, provavelmente sinceridade e ardor. Pensei: Ele é o literato; eu
sou um homem cansado, frivolamente preocupado com uma mulher. Considerei a incongruência
que havia entre seu vigor físico e sua fraqueza literária. Pensei: ele tem uma
carapaça que o protege; o que o interlocutor sente não o atinge. Observei com
ódio seus olhos despertos, seu bigode hirsuto, seu pescoço fornido.
Nessa semana quase não vi Paulina.
Estudei muito. Depois do último exame, telefonei para ela. Ela me parabenizou
com uma insistência que não parecia natural e disse que no final da tarde iria
a minha casa.
Fiz a sesta, tomei um banho
vagaroso e esperei Paulina folheando um livro sobre os Faustos de Muller
e de Lessing.
Quando a vi, exclamei:
– Você esta mudada.
– Sim — respondeu. — Como nós
nos conhecemos! Não preciso nem falar para você saber o que estou sentindo.
Então nos olhamos dentro dos
olhos, em um êxtase de beatitude.
– Obrigado — respondi.
Nada me comovia tanto como a
admissão, por parte de Paulina, da intima conformidade das nossas almas.
Confiante, eu me entreguei a essa lisonja. Não sei quando foi que me perguntei
(incredulamente) se as palavras de Paulina não escondiam outro sentido. Antes
que eu chegasse a considerar essa possibilidade, ela começou uma confusa
explicação. De repente ouvi:
– Nessa primeira tarde já
estávamos perdidamente apaixonados.
Eu me perguntei quem estava
apaixonado. Paulina continuou.
– É muito ciumento. Não se
opõe a nossa amizade, mas jurei que, por um tempo, não veria mais você.
Eu ainda esperava a impossível
explicação que me tranquilizaria. Não sabia
se Paulina estava falando sério ou era brincadeira. Não sabia que
expressão havia no
meu rosto. Não sabia como era dilacerante a minha angustia. Paulina acrescentou:
– Vou indo. Julio me espera.
Ele não subiu para não nos incomodar.
– Quem? — perguntei.
E logo em seguida temi — como
se nada tivesse acontecido — que Paulina descobrisse que eu era um impostor e
que nossas almas não estavam tão unidas.
Paulina respondeu com
naturalidade:
– Julio Montero.
A resposta não podia me
surpreender; no entanto, naquela tarde horrível, nada me abalou tanto como
essas duas palavras. Pela primeira vez me senti longe de Paulina. Quase com
desprezo, perguntei…
– Vocês vão se casar?
Não lembro o que ela
respondeu. Acho que me convidou para o casamento.
Depois fiquei sozinho. Tudo
era absurdo. Não havia pessoa mais incompatível com Paulina (e comigo) que
Montero. Ou eu estava enganado? Se Paulina amava esse homem, talvez ela nunca
tivesse se parecido comigo. Uma abjuração não me bastou; descobri que já havia
vislumbrado muitas vezes a horrenda verdade.
Fiquei muito triste, mas não
creio que estivesse com ciúmes. Deitei na cama, de bruços. Ao esticar a mão
encontrei o livro que estava lendo pouco antes. Joguei-o longe, com nojo.
Sai para caminhar. Em uma
esquina fiquei olhando um carrossel. Naquela tarde parecia impossível continuar
vivendo.
Durante anos me lembrei dela,
e como preferia os dolorosos momentos da ruptura (porque os tinha passado com
Paulina) à solidão posterior, eu os percorria e os examinava minuciosamente e
voltava a vivê-los. Nessa angustiada cavilação pensava descobrir novas
interpretações para os fatos. Por exemplo na voz de Paulina declarando o nome
de seu amado surpreendi uma ternura que, a principio, me emocionou. Pensei que
a moça sentia pena de mim e sua bondade me comoveu da mesma forma que antes o
seu amor me comovia. Depois, pensando melhor, deduzi que aquela ternura não era
para mim e sim para o nome pronunciado.
Aceitei a bolsa e,
silenciosamente, fui cuidar dos preparativos da viagem. No entanto, a notícia
correu. Na ultima tarde Paulina veio me visitar.
Eu já me sentia distante dela,
mas quando a vi me apaixonei de novo. Sem que Paulina dissesse, entendi que a
sua vinda era furtiva. Segurei suas mãos, trêmulo de gratidão. Paulina
exclamou:
– Sempre vou te amar. De algum
modo, sempre vou te amar mais do que a qualquer outra pessoa.
Talvez ela tivesse achado que
cometera uma traição. Sabia que eu não duvidava de sua lealdade a Montero, mas,
parecendo contrariada por ter pronunciado palavras que implicassem — não para mim,
para uma testemunha imaginária — uma intenção desleal, acrescentou rapidamente:
– Evidentemente, o que sinto
por você não conta. Estou apaixonada por Julio.
Todo o resto, disse, não tinha
importância. O passado era uma região deserta onde ela havia esperado por
Montero. Do nosso amor, ou amizade, não se lembrou.
Depois falamos pouco. Eu
estava muito ressentido e fingi ter pressa. Fui com ela até o elevador. Quando
abri a porta, retumbou, imediata, a chuva.
– Vou procurar um taxi —
disse.
Com uma súbita emoção na voz,
Paulina me gritou:
– Adeus, querido.
Atravessou, correndo, a rua e
desapareceu ao longe. Eu me virei, tristemente. Ao erguer os olhos vi um homem
escondido no jardim. O homem se ergueu e encostou as mãos e o rosto na porta de
vidro. Era Montero.
Raios de luz lilás e de luz
alaranjada se entrecruzavam sobre um fundo verde, com boscagens escuras. O
rosto de Montero, apertado contra o vidro molhado, parecia pálido e disforme.
Pensei em aquários, em peixes
em aquários. Depois, com uma amargura frívola, pensei que o rosto de Montero
sugeria outros monstros: os peixes deformados pela pressão da água que habitam
no fundo do mar.
No dia seguinte, de manha,
embarquei. Durante a viagem quase não sai do camarote. Escrevi e estudei muito.
Queria esquecer Paulina. Nos
dois anos que passei na Inglaterra, evitei tudo o que me fizesse pensar nela: dos
encontros com argentinos até os poucos telegramas de Buenos Aires que os
jornais publicavam. É verdade que ela me aparecia nos sonhos, com uma vividez tão
persuasiva e tão real que me perguntei se minha alma não compensava de noite as
privações que eu lhe impunha na vigília. Evitei obstinadamente a sua lembrança.
No final do primeiro ano, consegui excluí-la das minhas noites e, quase,
esquecê-la.
Na tarde em que cheguei da
Europa voltei a pensar em Paulina. Com apreensão, pensei que quando chegasse em
casa as lembranças talvez fossem vivas demais. Ao entrar em meu quarto senti
alguma emoção e me detive respeitosamente, comemorando o passado e os extremos
de alegria e de aflição que eu havia conhecido. Então tive uma revelação
vergonhosa. O que me comovia não eram os monumentos secretos do nosso amor, subitamente
manifestados no mais íntimo da minha memória, mas sim a luz enfática que
entrava pela janela, a luz de Buenos Aires.
Por volta das quatro fui até a
esquina e comprei um quilo de café. Na padaria, o dono me reconheceu,
cumprimentou-me com estrondosa cordialidade e me informou que fazia muito tempo
— seis meses, pelo menos — que eu não o honrava com minhas compras. Depois
dessas gentilezas pedi, tímido e resignado, meio quilo de pão. Ele perguntou,
como sempre:
– Moreno ou claro?
Respondi, como sempre:
– Claro.
Voltei para casa. O dia estava
límpido como um cristal, e muito frio.
Enquanto preparava o café,
pensei em Paulina. Ali pelo fim da tarde nos acostumávamos tomar uma xicara de café
preto.
Como se estivesse em um sonho,
passei de uma afável e equânime indiferença a emoção, à loucura que o
aparecimento de Paulina me provocou. Cai de joelhos quando a vi, pus o rosto
entre as mãos dela e, pela primeira vez, chorei toda a dor de tê-la perdido.
Sua chegada foi assim:
ouviram-se três batidas na porta; eu me perguntei quem podia ser o intruso;
pensei que o café ia esfriar por sua culpa; abri, distraidamente.
Depois — não sei se o tempo
que transcorreu foi muito longo ou muito breve — Paulina mandou que a seguisse.
Entendi que assim estava corrigindo, com a persuasão dos fatos, nossos antigos
erros de comportamento. Tenho a sensação (mas além de incorrer nos mesmos
erros, sou infiel a essa tarde) de que os corrigiu com uma determinação
excessiva. Quando me pediu que segurasse sua mão (“A mão!”, disse. “Agora!”),
eu me entreguei à felicidade. Olhamos nos olhos um do outro e, como dois rios confluentes,
nossas almas também se uniram. Lá fora, sobre o telhado, contra os muros,
chovia. Interpretei essa chuva — que era o mundo inteiro surgindo novamente —
como uma pânica expansão do nosso amor.
A emoção não me impediu,
contudo, de descobrir que Montero havia contaminado a fala de Paulina. Às
vezes, quando ela falava, eu tinha a ingrata impressão de estar ouvindo o meu
rival. Reconheci o peso característico das frases; reconheci as ingênuas e
trabalhosas tentativas de encontrar o termo exato; reconheci, ainda despontando
vergonhosamente, a inconfundível vulgaridade.
Fazendo um esforço, consegui
me sobrepor. Fitei o rosto, o sorriso, os olhos. Ali estava Paulina, intrínseca
e perfeita. Ali não a haviam mudado.
Então, enquanto a contemplava
na penumbra mercurial do espelho, rodeada pela moldura de grinaldas, de coroas
e de anjos negros, achei-a diferente. Era como se descobrisse outra versão de
Paulina; como se a visse de um modo novo. Dei graças pela separação, que havia
interrompido meu hábito de vê-la, mas que a devolvia ainda mais bonita.
Paulina disse:
— Já vou. Julio está me
esperando.
Notei em sua voz uma estranha
mistura de menosprezo e de angústia, que me desconcertou. Pensei
melancolicamente: Paulina, em outros tempos, não trairia ninguém. Quando ergui
os olhos, tinha ido embora.
Apos um instante de vacilação,
chamei-a. Voltei a chamá-la, desci e fui até a entrada, corri pela rua. Não a
encontrei. Na volta, senti frio. Pensei: “Refrescou. Foi só uma pancada de
chuva”. A rua estava seca.
Quando voltei para casa vi que
eram nove horas. Não estava com vontade de sair para comer; a possibilidade de
encontrar algum conhecido me acovardava. Fiz um pouco de café. Tomei duas ou
três xícaras e mordi a ponta de um pão.
Não sabia sequer quando nos
veríamos de novo. Eu queria falar com Paulina. Queria pedir que me
explicasse... De repente, minha ingratidão me assustou. O destino me
proporcionava a felicidade, e eu não estava contente. Aquela tarde era a culminação
de nossas vidas. Paulina tinha entendido assim. Eu mesmo entendi assim. Por
isso quase não nos falamos. (Falar, fazer perguntas, teria sido, de certo modo,
diferenciar-nos.)
Parecia impossível ter de
esperar até o dia seguinte para ver Paulina. Com um alívio incomodo, determinei
que nessa mesma noite iria à casa de Montero. Desisti rapidamente; sem falar
antes com Paulina, eu não podia ir visitá-los. Resolvi procurar um amigo —
achei que Luis Alberto Morgan era o mais indicado — e pedir que ele me contasse
tudo o que sabia da vida de Paulina durante minha ausência.
Depois pensei que era melhor
ir dormir. Descansado, no dia seguinte veria tudo com mais clareza. Por outro
lado, não estava disposto a ouvir falar frivolamente de Paulina. Quando me
deitei tive a impressão de ter caído em uma armadilha (lembrei-me, talvez, de
noites de insônia, dessas em que ficamos na cama para não admitir que estamos
acordados). Apaguei a luz.
Eu não ia mais especular sobre
o comportamento de Paulina. Sabia muito pouco para querer entender a situação.
Como não podia esvaziar a mente e parar de pensar, eu me refugiaria na lembrança
daquela tarde.
Continuaria gostando do rosto
de Paulina, mesmo encontrando em seus atos algo de estranho e hostil que me
afastava dela. O rosto era o de sempre, o rosto puro e maravilhoso que me amara
antes do abominável aparecimento de Montero. Pensei: há uma fidelidade nos
rostos que as almas talvez não compartilham.
Ou seria tudo um engano? Eu não
estaria apaixonado por uma cega projeção de minhas preferencias e ojerizas? Será
que nunca tinha conhecido Paulina?
Escolhi uma imagem daquela
tarde — Paulina em frente a escura e tersa profundidade do espelho — e tentei
evocá-la. Quando a divisei, tive uma revelação instantânea: eu hesitava porque
estava esquecendo Paulina. Quis me concentrar na contemplação da sua imagem. A
fantasia e a memoria são faculdades caprichosas: eu me lembrava do cabelo
despenteado, de uma prega do vestido, da vaga penumbra circundante, mas minha
amada se desvanecia.
Muitas imagens, animadas por
uma inevitável energia, passavam diante dos meus olhos fechados. De repente fiz
uma descoberta. Como que na beira escura de um abismo, em um angulo do espelho,
à direita de Paulina, apareceu o cavalinho de pedra verde.
Essa visão, quando se
produziu, não me surpreendeu; só após alguns minutos lembrei que a estatueta
não estava em casa. Eu a tinha dado a Paulina dois anos antes.
Pensei se tratar de uma
superposição de lembranças anacrônicas (a mais antiga, do cavalinho; a mais
recente, de Paulina). A questão estava elucidada, eu já podia ficar tranquilo,
e precisava dormir. Formulei então uma reflexão envergonhada e, a luz do que
iria descobrir mais tarde, patética. “Se eu não dormir logo’’, pensei, “amanhã
estarei pálido e não vou agradar Paulina ”.
Pouco depois percebi que minha
lembrança da estatueta no espelho do quarto não era justificável. Nunca a
deixei no quarto. Em casa, só a vi no outro aposento (na prateleira, nas mãos
de Paulina ou nas minhas).
Apavorado, quis ver essas
recordações mais uma vez. O espelho reapareceu, rodeado de anjos e de grinaldas
de madeira, com Paulina no centra e o cavalinho a direita. Eu não tinha certeza
de que refletisse o quarto. Talvez sim, mas de um modo vago e sumario. Em
contrapartida, o cavalinho se empinava nitidamente na prateleira da estante. A
estante ocupava toda a parede do fundo, e na escuridão lateral rondava um novo
personagem, que não reconheci no primeiro momento. Depois, com pouco interesse,
percebi que esse personagem era eu.
Vi o rosto de Paulina, vi-o
inteiro (não em partes), como que projetado em minha direção pela extrema
intensidade de sua formosura e de sua tristeza. Acordei chorando.
Não sei desde quando eu estava
dormindo. Mas sei que o sonho não foi criativo. Ele deu continuidade,
insensivelmente, às minhas imaginações e reproduziu com fidelidade as cenas da
tarde.
Olhei o relógio. Eram cinco
horas. Eu me levantaria cedo e, mesmo correndo o risco de irritar Paulina, iria
até sua casa. Essa resolução não mitigou minha angústia.
Levantei às sete e meia, tomei
um banho demorado e me vesti devagar.
Não sabia onde Paulina morava.
O porteiro me emprestou as listas telefônicas, a de assinantes e a comercial.
Nenhuma das duas tinha o endereço de Montero. Procurei o nome de Paulina; tampouco
constava. Verifiquei, também que na antiga casa de Montero morava outra pessoa.
Pensei em perguntar o endereço aos pais de Paulina.
Fazia muito tempo que não os
via (quando soube do amor de Paulina por Montero, interrompi o contato com
eles). Agora, para me desculpar, teria de historiar meus pesares. Não tive ânimo.
Decidi falar com Luis Alberto
Morgan. Antes das onze não podia aparecer em sua casa. Perambulei pelas ruas, sem
ver nada, ou observando com uma fugaz aplicação a forma de uma moldura em uma
parede ou o sentido de uma palavra ouvida por acaso. Lembro que na praça Independência
havia uma mulher, com os sapatos em uma das mãos e um livro na outra, passeando
descalça pela grama molhada.
Morgan me recebeu na cama, às
voltas com uma enorme tigela que segurava com as duas mãos. Divisei um líquido esbranquiçado
e, flutuando, um pedaço de pão.
– Onde Montero mora? —
perguntei.
Ele já tinha bebido todo o
leite. Agora pegava os pedaço de pão do fundo da tigela.
– Montero esta preso —
respondeu.
Não pude esconder meu
assombro. Morgan continuou:
– Como? Você não sabe?
Imaginou, sem duvida, que eu só
ignorava esse detalhe, mas, pelo gosto de falar, contou tudo o que acontecera.
Pensei que eu fosse perder os sentidos; cair em um súbito precipício; lá também
chegava a voz cerimoniosa, implacável e nítida, que relatava fatos incompreensíveis
com a monstruosa e persuasiva convicção de que eram familiares.
Morgan me contou o seguinte:
suspeitando que Paulina ia me visitar, Montero se escondeu no jardim do meu prédio.
Viu-a sair e a seguiu; interpelou-a na rua. Quando se aglomeraram curiosos, ele
a obrigou a entrar em um taxi. Rodaram a noite toda pela Costanera e pelos
lagos e, de madrugada, em um hotel do Tigre, matou-a com um tiro. Isso não tinha
acontecido na noite anterior àquela manha; tinha acontecido na véspera da minha
viagem a Europa; tinha acontecido havia dois anos.
Nos momentos mais terríveis da
vida muitas vezes caímos em uma espécie de irresponsabilidade protetora e, em vez
de pensar no que esta acontecendo, dirigimos nossa atenção a trivialidades.
Nesse momento perguntei a Morgan:
– Está lembrado do nosso ultimo
encontro, lá em casa, antes da minha viagem?
Morgan se lembrava. Continuei:
– Quando você viu que eu estava
preocupado e foi procurar Paulina no meu quarto, o que Montero estava fazendo?
– Nada — respondeu Morgan, com
certa vivacidade. — Nada. Pensando melhor, agora me lembro: estava se olhando
no espelho.
Voltei para casa. Cruzei, na
entrada, com o porteiro. Demonstrando indiferença, perguntei-lhe:
– Sabe que a senhorita Paulina
morreu?
– Como não iria saber? —
respondeu. — Todos os jornais falaram do assassinato e eu acabei prestando
depoimento à policia.
O homem me olhou
inquisitivamente.
— Esta tudo bem? — perguntou,
aproximando-se muito de mim. — Quer que o acompanhe?
Agradeci e fugi para cima.
Tenho uma vaga lembrança de ter pelejado com uma chave; de ter apanhado umas
cartas, do outro lado da porta; de estar de olhos fechados, deitado de bruços,
na cama.
Depois me surpreendi em frente
ao espelho, pensando: “O fato é que Paulina me visitou esta noite. Morreu
sabendo que o casamento com Montero tinha sido um equívoco — um equívoco atroz
— e que nós éramos a verdade. Voltou da morte para completar o seu destino, o
nosso destino”. Lembrei de uma frase que Paulina havia escrito, anos antes, em
um livro: Nossas almas já se reuniram. Continuei pensando: “Esta noite,
finalmente. No momento em que segurei sua mão”. Depois, pensei: “Sou indigno
dela: duvidei, senti ciúmes. Ela veio da morte para me amar”.
Paulina tinha me perdoado.
Nunca havíamos nos amado tanto. Nunca estivemos tão perto.
Eu estava me debatendo nessa
embriaguez de amor, vitoriosa e triste, quando me perguntei — ou melhor, quando
meu cérebro, movido pelo simples hábito de propor alternativas, perguntou — se não
haveria outra explicação para a visita daquela noite. Então, fulminante, a
verdade me atingiu.
Eu gostaria de descobrir agora
que estou enganado de novo. Infelizmente, como sempre acontece quando surge a
verdade, minha horrível explicação esclarece os fatos que pareciam misteriosos.
Estes, por seu lado, a confirmam.
Nosso pobre amor não tirou
Paulina do túmulo. Não houve fantasma de Paulina. Eu abracei um monstruoso
fantasma dos ciúmes do meu rival.
A chave do que aconteceu esta
na visita que Paulina me fez na véspera da minha viagem. Montero a seguiu e a
esperou no jardim. Brigaram a noite toda e, como não acreditou em suas
explicações — como esse homem podia entender a pureza de Paulina? —, matou-a de
madrugada.
Eu o imaginei na prisão,
cismando naquela visita, representando-a com a cruel obstinação do ciúme.
A imagem que entrou em casa, o
que depois aconteceu lá, foi uma projeção da horrenda fantasia de Montero. Na
época não descobri isso, porque estava tão comovido e tão feliz que a minha
única vontade era obedecer a Paulina. No entanto, não faltaram indícios. Por exemplo,
a chuva. Durante a visita da verdadeira Paulina — na véspera da minha viagem —,
eu não ouvi a chuva. Montero, que estava no jardim, sentiu-a diretamente no
corpo. Ao imaginar-nos, ele achou que a tínhamos ouvido. Por isso ouvi chover
ontem a noite. Depois vi que a rua estava seca.
Outro indício é a estatueta.
Só esteve em minha casa por um único dia o dia da recepção. Para Montero, ela
se tornou um símbolo do lugar. Por isso apareceu esta noite.
Não me reconheci no espelho
porque Montero não me imaginou claramente. Também não imaginou o quarto com
muita precisão. Nem sequer conheceu Paulina. A imagem projetada por Montero se
comportava de uma maneira que não é própria de Paulina. Além do mais, falava
como ele.
Urdir esta fantasia é a
tortura de Montero. A minha é mais real. É a convicção de que Paulina voltou
não porque estivesse desenganada de seu amor. E a convicção de que eu nunca fui
seu amor. E a convicção de que Montero não ignorava aspectos de sua vida que eu
só vim a conhecer indiretamente. É a convicção de que, ao segurar sua mão — no
suposto momento da união das nossas almas —, obedeci a um pedido de Paulina que
ela nunca me dirigiu e que meu rival escutou muitas vezes.
Caro blogueiro, parabéns pelo esforço e iniciativa. Acompanho toda semana. Os contos de Pushkin e Casares foram os melhores do semestre. O de Raduan Nassar me parece incompleto - mas digo de memória. Abraço.
ResponderExcluirLeo Neves
Quem é Juan Carlos Borges?
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