Italo Calvino (1923-1985)
escritor italiano autor de Cidades Invisíveis e outros extraordinários romances.
A escolha do conto “Um general na biblioteca” é muito oportuno nestes tempos em
que alguns que sem a precisa memória, celebram com nostalgia os tempos dos
generais.
Um general na biblioteca
Italo Calvino
Na Panduria, nação ilustre, uma suspeita
insinuou-se um dia nas mentes dos oficiais superiores: a de que os livros
contivessem opiniões contrárias ao prestígio militar. De fato, a partir de
processos e investigações, percebeu-se que esse hábito, agora tão difundido, de
considerar os generais como gente que também pode se enganar e organizar
desastres, e as guerras como algo às vezes diferente das radiosas cavalgadas
para destinos gloriosos, era partilhado por grande quantidade de livros,
modernos e antigos, pandurianos e estrangeiros.
O Estado-maior da Panduria se reuniu para
fazer um balanço da situação. Mas não se sabia por onde começar, porque em
matéria bibliográfica ninguém era muito versado. Foi nomeada uma comissão de
inquérito, comandada pelo general Fedina, oficial severo e escrupuloso. A
comissão iria examinar todos os livros da maior biblioteca da Panduria.
Ficava essa biblioteca num antigo palácio
cheio de escadas e colunas, descascado e desabando aqui e ali. Suas salas frias
estavam repletas de livros, abarrotadas, em locais impraticáveis; só os ratos
podiam explorar todos os cantinhos. O orçamento do Estado panduriano, onerado
por ingentes gastos militares, não podia fornecer nenhuma ajuda.
Os militares tomaram posse da biblioteca
numa chuvosa manhã de novembro. O general desceu do cavalo, baixo e gorducho,
empertigado, com a larga nuca raspada, o cenho franzido em cima do pincenê; de
um automóvel desceram quatro tenentes, uns varapaus, de queixo levantado e
pálpebras abaixadas, cada um com sua pasta na mão. Depois chegou um batalhão de
soldados que acampou no antigo prédio, com mulas, bolas de feno, barracas,
cozinhas, rádio de campanha e faixas coloridas de sinalização.
Puseram sentinelas nas portas, e um cartaz
proibindo a entrada, "por causa das grandes manobras, até que as mesmas se
concluam". Era um expediente, para que a investigação pudesse ser feita em
absoluto sigilo. Os estudiosos que costumavam ir à biblioteca toda manhã, encapotados,
com cachecóis e bonés para não congelarem, tiveram de voltar para casa.
Perplexos, perguntavam-se: - Mas como, grandes manobras na biblioteca? Será que
não vão desarrumar tudo? E a cavalaria? E será que também darão tiros?
Do pessoal da biblioteca ficou apenas um
velhinho, o senhor Crispiano, recrutado para explicar aos oficiais o lugar dos
livros. Era um sujeito baixotinho, com a cabeça careca parecendo um ovo, e
olhos como cabeças de alfinete atrás de óculos de hastes.
O general Fedina se preocupou acima de tudo
com a organização logística, pois as ordens eram para que a comissão não saísse
da biblioteca antes de ter concluído a investigação; era um trabalho que exigia
concentração, e não deviam se distrair. Assim, providenciaram o fornecimento de
víveres, umas estufas de quartel, uma provisão de lenha à qual foram se juntar
algumas coleções de revistas velhas, reputadas pouco interessantes. Nunca fez
tanto calor na biblioteca, naquele inverno. Em lugares seguros, cercadas de
ratoeiras, foram postas as camas de campanha onde o general e seus oficiais
dormiriam.
Depois procedeu-se à divisão de tarefas. A
cada tenente foram designados determinados ramos do saber, determinados séculos
de história. O general controlaria a classificação dos volumes e aplicaria carimbos
diversos, dependendo se o livro fosse declarado adequado para ser lido por
oficiais e suboficiais da tropa, ou fosse denunciado ao Tribunal Militar.
E a comissão começou seu trabalho. Toda
noite o rádio de campanha transmitia o relatório do general Fedina ao comando
supremo. "Examinados um total de tantos volumes. Retidos como suspeitos
tantos. Declarados adequados para oficiais e tropa tantos." De vez em
quando, aqueles números frios eram acompanhados de alguma comunicação
extraordinária: a solicitação de óculos para ler de perto, pois um tenente
quebrara os seus, a notícia de que uma mula tinha comido um códice raro de
Cícero que não estava em lugar seguro.
Mas fatos de alcance bem maior iam
amadurecendo, dos quais o rádio de campanha não transmitia notícias. A floresta
dos livros, em vez de ser desbastada, parecia ficar cada vez mais emaranhada e
insidiosa. Os oficiais teriam se perdido se não fosse a ajuda do senhor
Crispino. Por exemplo, o tenente Abrogati se levantava dando um pulo e jogava
em cima da mesa o volume que estava lendo: - Mas é inacreditável! Um livro
sobre as guerras púnicas que fala bem dos cartagineses e critica os romanos!
Precisamos denunciá-lo imediatamente! - (Diga-se de passagem que os
pandurianos, com ou sem razão, consideravam-se descendentes dos romanos.) com
seu passo silencioso dentro das pantufas felpudas, o velho bibliotecário vinha
se aproximando dele. - E isso não é nada - dizia - leia aqui, ainda sobre os
romanos, o que está escrito, também se poderá pôr isso no relatório, e isso, e
mais isso - e lhe submetia uma pulha de volumes. O tenente começava a folhear
os livros, nervoso, depois ia lendo mais interessado, tomava notas. E coçava a
testa, resmungando: - Santo Deus! Mas quanta coisa a gente aprende! Quem diria!
- O senhor Crispino andava até o tenente Lucchetti, que fechava um tomo com
raiva e dizia: - Essa não! Aqui eles têm a coragem de expressar dúvidas sobre a
pureza dos ideais das Cruzadas! Sim, senhor, das Cruzadas! - E o senhor
Crispino, sorridente: - Ah, deve se fazer um relatório sobre esse tema, e posso
lhe sugerir outros livros, nos quais é possível encontrar mais detalhes - e
jogava meia prateleira em cima dele. O tenente Lucchetti se metia a lê-los, de
cabeça baixa, e por uma semana o ouviam virar as páginas dos livros e murmurar:
- Mas essas Cruzadas, quem diria!
No comunicado vespertino da comissão, o
número dos livros examinados era cada vez maior, mas já não se relatava nenhum
dado sobre veredictos positivos ou negativos. Os carimbos do general Fedina iam
ficando ociosos. Se ele, tentando controlar o trabalho dos tenentes, perguntava
a um deles: - Mas como é que você deixou passar este romance? Aqui a tropa se
sai melhor do que os oficiais! É um autor que não respeita a ordem hierárquica!
- , o tenente lhe respondia citando outros autores, e embrenhando-se em
raciocínios históricos, filosóficos e econômicos. Daí nasciam discussões
genéricas, que prosseguiam horas a fio. O senhor Crispino, silencioso dentro de
suas pantufas, quase invisível dentro de seu jaleco cinza, sempre intervinha na
hora certa, com um livro que a seu ver continha detalhes interessantes sobre o
tema em questão, e cujo efeito era sempre de pôr à prova as convicções do
general Fedina.
Enquanto isso, os soldados tinham pouco o
que fazer e se entediavam. Um deles, Barabasso, o mais instruído, pediu aos
oficiais um livro para ler. Na hora quiseram dar-lhe um daqueles poucos que já
tinham sido declarados adequados para a tropa: mas, pensando nos milhares de
volumes que ainda restava examinar, o general não gostou que as horas de
leitura do soldado Barabasso fossem horas perdidas para o serviço; e deu-lhe um
livro ainda a ser examinado, um romance que parecia fácil, recomendado pelo
senhor Crispino. Lido o livro, Barabasso devia fazer o relato ao general.
Outros soldados também pediram para fazer o mesmo, e conseguiram. O soldado
Tommasone lia em voz alta para um companheiro seu, analfabeto, e este dava a
sua opinião. Das discussões gerais começaram a participar também os soldados.
Sobre o prosseguimento dos trabalhos da
comissão não se conhecem muitos detalhes: o que aconteceu na biblioteca nas
longas semanas invernais não foi relatado. Mas o fato é que os boletins
radiofônicos do general Fedina passaram a chegar cada vez mais raramente ao Estado-maior
da Panduria, até que pararam de vez. O comando supremo começou a se alarmar;
transmitiu a ordem de concluírem a investigação o quanto antes e de
apresentarem um exaustivo relatório.
A ordem chegou à biblioteca quando o
espírito de Fedina e de seus homens se debatia entre sentimentos opostos: por
um lado, estavam descobrindo a todo instante novas curiosidades a serem
satisfeitas, estavam tomando gosto por aquelas leituras e aqueles estudos como
nunca antes teriam imaginado; por outro, não viam a hora de voltar para junto
das pessoas, de retomar contato com a vida, que agora lhes parecia muito mais
complexa, quase renovada aos olhos deles; e, além disso, a aproximação do dia
em que deveriam deixar a biblioteca enchia-os de apreensão, pois teriam de prestar
contas de sua missão, e, com todas as ideias que andavam brotando em suas
cabeças, não sabiam mais como sair dessa enrascada.
De noite olhavam pelas vidraças os primeiros
brotos nos galhos iluminados pelo crepúsculo, e as luzes da cidade acenderem-se,
enquanto um deles lia em voz alta os versos de um poeta. Fedina não estava com
eles: dera ordens para ser deixado sozinho em sua sala, pois devia redigir o
relatório final. Mas de vez em quando se ouvia a campainha tocar e sua voz
chamar: "Crispino! Crispino!". Não podia ir adiante sem a ajuda do
velho bibliotecário, e acabaram se sentando à mesa e redigiram juntos o
relatório.
Finalmente, numa bela manhã a comissão saiu
da biblioteca e foi entregar o relatório ao comando supremo; e, diante do
Estado-maior reunido, Fedina expôs os resultados da investigação. Seu discurso
era uma espécie de compêndio da história da humanidade, das origens aos nossos
dias, no qual todas as ideias mais indiscutíveis para os bem-pensantes da
Panduria eram criticadas, as classes dirigentes denunciadas como responsáveis
pelas desventuras da pátria, o povo exaltado como vítima heroica de guerras e
políticas equivocadas. Era uma exposição um pouco confusa, com afirmações
muitas vezes simplistas e contraditórias, como costuma acontecer com quem
abraçou há pouco novas ideias. Mas sobre o significado geral não podia haver
dúvidas. A assembleia dos generais da Panduria empalideceu, arregalou os olhos,
reencontrou a voz, gritou. O general nem pode terminar. Falou-se de degradação,
de processo. Depois, temendo-se escândalos mais graves, o general e os quatro
tenentes foram mandados para a reserva por motivos de saúde, por causa de
"um grave esgotamento nervoso contraído no serviço". Vestidos à
paisana, encapotados dentro de sobretudos acolchoados para não congelarem, frequentemente
eram vistos entrando na velha biblioteca, onde esperava por eles o senhor
Crispino com seus livros.
(Fonte: CALVINO, Italo. Um general na
biblioteca. In: CALVINO, Italo. Um general na biblioteca. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001. p. 74-79. )
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