Jose Edilberto Coutinho
(1938-1995) escritor brasileiro nascido em Bananeiras, Paraíba que a partir de
1970 viveu no Rio de Janeiro e escreveu uma das maiores obras sobre o futebol Maracanã Adeus, que inclui o conto “Vadico.”
Vadico
Edilberto Coutinho
Uns poucos passos, apenas. Vejam só. Quando
corria para a bola, a torcida fazia um coro de ôôôôôô que terminava numa
explosão de gol. Este jogo foi em Paris. Cartazes nas ruas anunciavam:
VÁ AO PARC DES PRINCES VER PELÉ ET COMPAGNIE
Pelé e Companhia. Os companheiros. Bastavam
Pelé e Vadico para pagar o espetáculo. Depois dos aplausos habituais ao rei
Pelé, a multidão se
divertia com os chutes de Vadico. Os franceses adoraram e
consagraram
Vadico. Est-ce que cet homme a centpieds? O Cem Pés. Aí nasceu o
apelido.
O Cem Pés, no filme, após esse jogo na
França, exibe as canelas cheias de cicatrizes. Denunciadoras, diz o locutor, da
violência característica dos zagueiros que o enfrentavam.
O Cem Pés, um ídolo.
Um gênio do futebol. Vadico, sendo entrevistado, diz que não senhor, não
trocaria essa vida com a bola por nenhuma outra. As cicatrizes? Ele as olhava,
diz o locutor, como um prêmio amargo pelas tantas vezes em que foi atingido. Não havia de culpar a vida?
Mas eu nem tenho
jeito pra contar uma história de forma organizada.
Bola pra frente.
Na televisão, aquele moço:
Onde estão os
ídolos do passado? Muitos, esquecidos, sós, abandonados. Como vivem? O que
fazem? Fomos encontrar Vadico, o grande
artilheiro que brilhou ao lado de Pelé,
sentado num banco de parque, triste
e só, aparentando pelo menos mais 20 anos
além de sua idade real.
Enquanto a nova média esfria, estou vendo
tudo de novo pelo televisor
do bar. Repetem o filme sobre a carreira de Vadico.
Sentei aqui e pedi a primeira média com pão e manteiga. Molhei o pão no café
com leite e
consumi logo tudo. Então, pedi uma segunda xícara. Sorvendo
devagarinho. Agora já está meio fria. Mas não importa. Pedi mesmo para ter o
direito, sem
o portuga do garçom me aporrinhar, de permanecer no balcão mais
tempo. Todo o tempo do programa.
É preto e branco o Fantástico Show da Vida
(nome do programa a cores,
com a moça lindinha na abertura, levantando o braço
e mostrando o sovaquinho raspado).
Sou um velho perdido na bosta da vida, com
catarata numa das vistas. Parece que o mundo todo virou um quarto escuro.
Todas
as tardes estou num desses bancos do parque que o filme mostra. A vida de
Vadico, bem? Tanta glória e agora essa penúria dele, igualzinho a mim, vivendo
feito um molambo. Tem uma estátua, nesse parque, que só consigo enxergar bem na
claridade do dia. É o corpo de uma jovem (parece a moça ousada do programa de
televisão) e, quando a tardinha vem caindo, o corpo dela vai ficando
monstruoso, e vou embora para o meu quarto. Um
aposentado me aconselhou a não
andar por aí à noite, e estou ainda esperando tratamento do Instituto para o
meu olho direito.
Velho é um peso morto, eu disse para o homem
ao meu lado, aquele
dia no parque. Observei quando ele se aproximou e sentou
junto de mim.
A boina escura, a camiseta amarelecida sob a camisa estampada (e
rota?), a calça de casimira surrada e a botina de solado de pneu formando a
figura
dele. Assim fiquei conhecendo Vadico. Ele chegou a me contar algumas
daquelas histórias, em que eu nem podia acreditar. Contar histórias é
ocupação
de velho. Depois vi na televisão que era tudo verdade.
Numa tarde chuvosa de
São Paulo (é a voz do moço arrumado da
televisão), terminou seu futebol. Não
era jogador de se poupar. Teve mais
de 12 anos de carreira, artilheiro de
ataques famosos. Jogou com Garrincha, Pelé, Gérson. Vadico não fugia da luta.
Nesta sequência, observem, senhores telespectadores, atenção, viu a bola, vindo
pelo alto, pulou antes do zagueiro. Ganhou a bola (o filme mostra), mas caiu
sobre o joelho. Vejam, Vadico permanece imóvel, gemendo de dor.
Num rápido
exame, o médico do clube garantiu que aquilo não era coisa grave. O craque precisava apenas de alguns dias de recuperação.
Mas esses dias se transformaram nos piores de sua vida. Um mês depois, estava
decidida a operação. O tratamento à base de infiltrações e exercícios havia
fracassado.
Um moleque parou na porta do bar, me olhou e
berrou que velho tem
cheiro de égua. Levantei o braço, num gesto ameaçador, mas
muito fraco e lento, o diabinho ainda repetiu de égua, de égua, e saiu
correndo. O portuga
sorriu, me parece que sorriu, o puto, mas que importa esse
safado? Forço
bem a vista para ver o que aconteceu a Vadico. Mas agora, na
televisão,
passam uma propaganda. Ao Sucesso, com Hollywood. E chegou para
perto
essa mulherzinha morena, animada, as pestanas muito lambuzadas de
uma
tintura azul - acendo o meu Continental, Preferência Nacional- mas
sem
nenhuma outra pintura no rosto tenso. O que a menina vai querer?,
pergunta
o portuga. Esse homem era o máximo, ela diz, olhando para o televisor.
Pede
um conhaque Dreher.
Dois meses depois da operação, continua o
narrador do filme, pouca
coisa havia mudado. O joelho do craque continuava
dolorido e a perna sem
movimentos, apesar dos exercícios todos. O tempo passava
para ele, que
tinha a sua única alegria na lembrança dos tempos gloriosos. Aí
aparece
Vadico, este de agora que conheci, um velhinho desprezado como
eu
(embora tenha muito menos idade):
– Eu vivia fazendo gols. Eram tantos que
perdi a conta. Sei apenas
que foram muitos. Pena que acabaram.
Em seguida não se vê mais a figura de
Vadico, mas se ouve a sua voz,
enquanto mostram ele em ação: chutando,
driblando, fazendo embaixadas.
Depois, uma série de gols. Verdadeira pintura,
coisa linda de se ver. Um quadro.
As vezes, diz o locutor, a valentia lhe
custava meses de atividade. A
torcida quer uma presença constante.
Ficaram me
dando esperanças, diz Vadico, até que um dia veio o
médico e, finalmente,
revelou: Você não pode mais jogar. Para o seu próprio
bem, o médico me disse, é
melhor encerrar a carreira. Sim, o médico
confirmou, a contusão pode se agravar
a ponto de aleijar o seu joelho. Aí eu
já estava mesmo com o joelho mutilado
por todas aquelas injeções e as
operações. Doía quando andava, a qualquer
flexão da perna. Compreendi
que era impossível resistir. Tinha que parar.
Tenho que ter coragem, pensei.
Outro
conhaque, a mulherzinha pediu, com a voz tremida, e vi que
devia ter chorado, o
rosto dela num estado deplorável.
Era mesmo uma coragem enorme, diz o narrador
da vida de Vadico, que
lhe permitia entrar na área sob os pontapés dos
zagueiros. Depois - com a
mutilação - a coragem, ainda, de abandonar tudo
aquilo que foi sua vida, e
que
lhe deu muitas glórias, até deixá-lo
inutilizado, com a perna sem mexer.
Primeiro, foi o pontapé violento por trás,
na panturrilha. Aquele beque
era um cara muito parrudo (é a voz de Vadico, no
filme), um cavalo forte.
Um grosso com a bola, é claro. Vi que era fácil passar
por ele, e não pude
resistir aos dribles. O público aplaudiu, gritou meu nome.
Cheguei a fazer
aquelas embaixadas - o filme mostra ele controlando a bola, sem
deixar
cair, várias vezes seguidas, com o peito do pé esquerdo, uma série
brilhante
de embaixadas - e a galera vibrou. Gritaram mais alto meu nome. O
filme
mostra, o Maracanã inteiro uma só voz: va-di-co, va-di-cooo. Faltou
humildade
naquele cara, Vadico prosseguiu. Eu sei, todo jogador tem mesmo horror
de ser feito de bobo. Porque, além dos dribles, das embaixadas, vai receber
também o riso de gozação dos colegas, do público.
Era um boa-pinta, hein?, diz a mulher
tomando um longo gole do seu conhaque, tremendo boa-pinta, um macho muito do
bem-apanhado.
É claro, continua Vadico, que o jogador que
parte para o bloqueio
direto a um adversário - seja atacante, homem de
meio-campo ou zagueiro-de-área
- corre sempre o risco de ser driblado, e até de
ser humilhado,
feito de bobo. Mas é um risco que significa uma prova de
dedicação ao time
e não humilhação pessoal. Mas foi humilhação pessoal o que
sentiu aquele
zagueiro. Adiei, o nome dele. Desapareceu. Não sei por onde
andará, hoje
um velho igual a mim, outro que deve estar perdido por aí (a voz
vai se
tornando muito baixa, quase que não se ouve ele falar), mais um expulso
da vida. Mas é isso (ouve-se melhor agora): na manobra do bloqueio, o
primeiro
jogador tem que se expor no drible. Se ele conseguir tomar a bola,
tudo bem.
Se for driblado, pode se irritar e até perder a cabeça. Como aquele
becão,
o
tal Adiei. Foi aí que veio a bola dividida, e minha perna ficou.
A mulherzinha
deposita com ruído o copo no
balcão:
Merda de vida.
Há três dias encontrei Vadico pela última vez. Vi você
na televisão, eu
disse, alegremente, quando ele se aproximou de mim no banco do
parque.
Estava tomando café e vi tudo pelo televisor do bar. Muita gente
viu.
Contar histórias é ocupação de velho, Vadico disse.
Eu não sei contar
direito, mas é isto que conto: estão repetindo agora
o filme e estou tomando
café de novo e assistindo de novo, e tem essa mulher
que já mandou uns quatro
conhaques, está de porre e não para de chorar.
E
repetem o filme por causa do que Vadico
fez ontem. (Se essa puta porrista
parasse com o faniquito dela, eu ia me sentir
melhor, mas ela tem razão:
merda de vida.)
O único patrimônio que ele guarda com
carinho, diz o mocinho bonito
da televisão (esse aí, é claro, não cheira a égua
velha), é esta bola (a bola
enche
toda a tela do televisor), e Vadico,
entrevistado no seu quartinho pequenino
e limpo, diz, foi um chute, que dei
nela, que deu o tricampeonato ao nosso
time. Me lembro muito bem. Mal o juiz
apitou o final da partida, me abracei
a essa boneca aí e disse, é minha, e está
comigo até hoje.
Acordo todos os dias muito cedo. Vadico diz logo depois, e
saio pra
rua, que está sempre meio deserta, tem só uns poucos trastes, que
vão
madrugar no trabalho, ou essa gente que vem da noite.
Não há muito o que
fazer, moço, a mesma
coisa todos os dias, a mesma coisa sempre. A gente
procura nas pessoas que
passam ou nas notícias dos jornais assunto para
conversa durante o dia no
parque (aí o filme mostra ele sentado no banco
do parque; Vadico sozinho visto
ao longe, e umas crianças que passam e
olham com desagrado para a figura dele,
meio recostado no banco). Mulher,
moço? Quando acabou o futebol, elas acabaram
também. Sim, houve
algumas delas, mas parece que eu não levava muito jeito com
elas não (um
riso meio forçado, que vira uma careta), é, pois é, com as zinhas
deu zebra.
E a mulher do bar, quase aos gritos: Mais
um, porra. O portuga veio com a
garrafa e ela: Manda. O garçom entortou a
garrafa, o líquido escorrendo em
conta-gotas, e a puta, impaciente: Capricha.
Pode caprichar. Pegou na mão
do homem, entortando mais: Assim. Aí tá bom. E
emborcou a nova dose
até a metade.
Hoje Vadico é notícia em todos os jornais e
tem essa bruaca que não
para de beber e de chorar. Tinha que dar zebra, né,
Vadico?, com umas tipas
como essa aí ao lado, o que você queria, meu amigo?
E agora é o final do filme, que repetiram
inteirinho porque ontem, como está dizendo agora esse moço aí na televisão, o
famoso Cem Pés se libertou com as próprias mãos. E foi a primeira coisa que vi,
hoje, nas manchetes dos jornais espetados nas bancas: a notícia de que Vadico,
o famoso ídolo do passado, o célebre Cem Pés - um Deus dos estádios - tinha se
matado, cortado o pescoço com uma
navalha.
Assim que o filme terminou, eu paguei e me
levantei para sair. Foi aí
que a mulher arriou a cabeça sobre o balcão do bar,
empurrando num gesto involuntário o copo de conhaque, ao mesmo tempo em que,
abrindo a mão, libertou um frasco pequenino, sem tampa, de onde rolou uma
pilulazinha verde. Só uma. As outras, o diabo da criatura tinha engolido com o
conhaque.
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