domingo, 15 de novembro de 2015

73 – O Tiro – A. Pushkin

Alexandre Pushkin (1799-1837) é considerado o maior dos poetas russos e o fundador da moderna literatura daquele país. Com quinze anos publicou seu primeiro poema e com vinte foi perseguido por suas ideias políticas. Aos vinte e seis foi perdoado, casou-se e aos trinta e sete morreu em duelo ao tentar defender a honra de sua esposa. O conto “O Tiro” foi publicado em 1831 como parte dos Contos de Belkin.
O Tiro
Alexandre Pushkin

Estacionávamos na cidadezinha de ***. Sabe-se o que é a vida do oficial de linha: de manhã, instrução, manejo; almoço em casa do comandante do regimento ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em *** não havia nenhuma hospedaria, nenhuma jovem casadoura; assim, nós nos reuníamos uns em casa dos outros, onde, além dos nossos próprios uniformes, não víamos nada.
Um único civil frequentava o nosso grupo. Teria uns trinta e cinco anos, e por isso o considerávamos velho. Dava-lhe a experiência, aos nossos olhos, grande prestígio. Além disto, sua habitual carranca, seus modos ásperos e sua língua maldizente exerciam forte impressão em nossos espíritos juvenis.
Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia russo, porém usava um nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até; mas, por motivo que ninguém sabia, de repente pediu baixa e veio estabelecer-se naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais do nosso regimento. É verdade que o seu jantar consistia em dois ou três pratos, preparados por um veterano; porém o champanha corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna nem as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a esse respeito. Tinha regular número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As paredes do seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casinha de barro onde vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, se se propusesse abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a cabeça debaixo deste.
Frequentemente se falava em duelos. Sílvio (chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia secamente, sem entrar em minúcias. Via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade; porém não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um acontecimento inesperado surpreendeu-nos a todos nós.
Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Sílvio, que não jogava quase nunca, resistiu algum tempo. Afinal, mandou trazer um baralho, atirou à mesa cinquenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo, e principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que recebera em excesso ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos disso, e não o impedíamos de jogar conforme o seu sistema, como bem entendesse. Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Sílvio pegou do giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou da esponja e apagou o que lhe parecia escrito a mais. Sílvio retomou o giz e reproduziu a mesma anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto sobre a mesa e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor, Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:
— Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça a Deus que isto haja acontecido em minha casa.
Não tínhamos a menor dúvida acerca das consequências, e julgávamos o nosso camarada um homem morto. O oficial saiu, dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo que o dono da casa já não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a próxima vaga.
No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera notícia alguma de Sílvio, o que muito nos admirou. Fomos à casa deste, e o encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra num ás colado no portão. Recebeu-nos como de costume, e evitou pronunciar uma palavra sequer sobre o incidente da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Nós nos perguntávamos admirados: “Será que o Sílvio não quererá bater-se?” Pois não se bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação bem fútil, e reconciliou-se.
Essa atitude o prejudicou sobremodo na opinião da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente veem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os defeitos. Tudo, no entanto, aos poucos foi sendo esquecido, e Sílvio tornou a adquirir sua influência anterior.
Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem cuja vida constituía um mistério, e que se me afigurava o herói de alguma história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos, eu era a única pessoa com quem ele punha de lado o seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre assuntos vários, cordialmente e com uma graça incomum. Porém, após aquela noite infeliz, a ideia de que a sua honra estava manchada, e por sua própria vontade não fora lavada, essa ideia não me largava e impedia-me de tratá-lo como dantes. Sílvio, que, muito inteligente e experimentado, não podia deixar de notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele. Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca mais voltaram.
Os habitantes da capital, viciados pelas distrações, não fazem ideia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes das aldeias e das pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório do nosso regimento se enchia de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o escritório oferecia a imagem de uma extraordinária animação. Sílvio também mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento, e regularmente vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.
— Senhores — disse-nos Sílvio —, há negócios que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também — acrescentou, dirigindo-se a mim. — Aguardo-o sem falta.
Com estas palavras saiu, apressado, enquanto nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez em casa dele, fomos cada um para seu lado.
Cheguei à casa de Sílvio na hora combinada, e ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Sílvio tinha já estava empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos tiros de pistola. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava de extraordinário bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada minuto, copos espumavam, o champanha crepitava sem parar, e todos nós, com a maior cordialidade, desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas. Levantamo-nos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Sílvio, despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato em que eu ia sair.
— Preciso falar com você — disse-me.
Fiquei.
Os outros foram-se embora, e nós dois permanecemos a sós, sentados um em frente do outro a cachimbar em silêncio. Sílvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça que lhe saía da boca davam-lhe um ar realmente diabólico. Passaram-se alguns minutos, até que ele quebrou o silêncio.
— Talvez nunca mais nos tornemos a ver — disse-me —, mas, antes de nos separarmos, queria dar-lhe uma explicação. Há de ter notado que ligo pouca importância ao que os outros pensam de mim. Mas gosto de você, e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma impressão injusta.
Interrompeu-se, a fim de reencher o cachimbo apagado. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.
— Achou estranho — continuou — que eu não houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado do R***. Mas você há de convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava nas minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-lhe como causa dessa moderação unicamente a minha generosidade, porém não lhe quero mentir. Se pudesse castigar R*** sem arriscar de modo nenhum a minha vida, não lhe teria perdoado.
Olhei para Sílvio com surpresa. Semelhante confissão acabou de perturbar-me. Ele voltou a falar:
— É isso mesmo. Não tenho o direito de me expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está vivo.
Espicaçou-me a curiosidade.
— Então não se bateram? Algum obstáculo terá impedido o encontro?
— Batemo-nos, e aqui está a lembrança de nosso duelo.
Levantou-se e tirou de uma caixa de papelão um gorro vermelho com a borla e os galões de ouro (o que os franceses chamam um bonnet de police), e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala uma polegada acima da fronte.
— Você sabe que eu servi no regimento de hussardos de *** — continuou ele. — O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o costume de ser o primeiro, e quando era moço isto chegava a uma verdadeira mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o primeiro brigão do exército. Nós nos gloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer nesse terreno o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso exército um por minuto, e eu era testemunha ou participante ativo de todos eles. Os meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia, gozando tranquilamente (ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial de abastada e conhecida família (não lhe direi o nome) foi transferido para o nosso regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade, espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria. Poderá então calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis fazer-se meu amigo, mas recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia aos meus epigramas com epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e eram pelo menos mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim, certo dia, no baile oferecido por um proprietário polaco, vendo-o ser objeto da atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa — a qual já tivera uma ligação comigo —, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência. Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada, várias damas desmaiaram, porém fomos separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos para o duelo.
Amanhecia já. Eu, no lugar combinado, em companhia de três testemunhas, aguardava o meu adversário com indizível impaciência. O sol de primavera já surgira e principiara a aquecer-nos, quando ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte, que não confiava na exatidão do meu tiro naquele instante; para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Foi resolvido então recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube ainda a ele, sempre favorito do destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois foi a minha vez. Enfim, eu tinha sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a sombra de uma inquietação. Ele estava diante da minha pistola, tirava do quepe as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença exasperava-me. “Que me importa — pensei — tirar-lhe a vida agora, que ele a aprecia tão pouco?” Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei a minha arma. “Parece-me — disse-lhe eu — que está pouco disposto a morrer agora, pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo”. - “Você não me incomoda absolutamente — respondeu ele. — Tenha a bondade de atirar. Ou então faça como entender, fique com seu tiro. Por mim, estarei sempre à sua disposição”. Dirigi-me às testemunhas e declarei-lhes que por enquanto não fazia questão de atirar. Assim terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na vingança. Afinal, chegou a minha hora.
Tirou do bolso a carta recebida naquela manhã, e passou-a às minhas mãos. Alguém (a quem provavelmente encarregara do assunto) informava-o de Moscou de que a “pessoa em apreço” ia casar com uma rapariga jovem e bonita.
— Você já suspeita — continuou — quem é a “pessoa em apreço”. Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.
Com estas palavras, levantou-se, atirou o gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto, como um tigre pela sua jaula. Eu, que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos contraditórios.
Entrou um criado e anunciou que os cavalos estavam prontos. Sílvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no carro, onde já se viam duas malas, uma com as suas pistolas e outra com a sua bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.

II

Correram alguns anos. Negócios de família me obrigaram a estabelecer-me numa pobre aldeia do distrito de N***. Ocupado com os meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência, ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi acostumar-me a passar as noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar, conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estaroste1, fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a baixar a noite, positivamente não sabia que fazer. Os poucos livros que achei debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que Kirilovna, a despenseira as conhecia, e eu a fizera contá-las várias vezes; as canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos espécimes vi no meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e suspiros. Era preferível a solidão.
A quatro verstas de mim havia uma rica propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A Condessa visitara a sua propriedade apenas uma vez, no primeiro ano de seu casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda primavera do meu isolamento correu a notícia de que ela viria com o marido veranear na sua aldeia. Chegaram os dois, com efeito, no começo de junho.
A chegada de um vizinho rico é um acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e a sua criadagem comentam-na dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço, pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais próximo e seu mais humilde criado.
Um lacaio me introduziu no gabinete do conde e saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada uma delas; sobre a lareira de mármore havia um grande espelho; o chão estava coberto de estofo verde e de tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o hábito do luxo, e não tendo contemplado desde muito a riqueza alheia, fiquei acanhado e aguardei o conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos, de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a retomar coragem e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu. Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente entrou a condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande beleza. O conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas, quanto mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o sentimento da minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem o tempo de reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse ínterim, pus-me a passear pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou conhecedor de pintura, mas um destes atraiu-me a atenção. Representava alguma paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.
— Um belo tiro — disse eu, dirigindo-me ao Conde.
— Sim, um tiro notável. O senhor atira bem?
— Regularmente — repliquei, contente de ver enfim a conversa tomar um rumo que me era mais familiar. — A trinta passos de distância, não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com pistola que já conheço.
— É verdade? — perguntou a condessa com visível atenção. — E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos de distância?
— Temos de experimentá-lo uma vez — respondeu o Conde. — Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos que não pego numa pistola.
— Assim sendo — observei —, aposto que V. Exa. já não acerta na carta nem sequer a vinte passos de distância. A pistola exige um exercício quotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento, passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola durante um mês inteiro, pois as minhas estavam em conserto. Quando voltei a atirar, pela primeira vez errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão de cavalaria, homem espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e me disse: “Até parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa”. Não, Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele a gente perde totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar atirava todos os dias, pelo menos três vezes, antes do almoço. Para ele, isto se tornara um hábito como o copo de vodca.
O conde e a condessa pareciam contentes de me ouvir.
— Como é que ele atirava? — perguntou o conde.
— Quando ele via, por exemplo, uma mosca pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo a verdade. Bem, ele via uma mosca pousada na parede e gritava: “Kuzka, uma pistola!” Kuzka trazia a pistola carregada. Pum! — e lá estava a mosca achatada contra a parede!
— É incrível! — disse o conde. — Como se chamava ele?
— Sílvio, Excelência.
— Sílvio! — exclamou o conde, levantando-se de um pulo. — O senhor conheceu Sílvio?
— Como não o teria conhecido, Excelência? Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Exa. também o conhecia?
— Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado de certo incidente estranho?
— V. Exa. alude à bofetada que ele levou num baile, de certo doidivanas?
— Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?
— Não, Excelência, não me disse... Ah, Excelência — continuei, começando a suspeitar a verdade —, perdoe... eu não sabia... será que foi V. Exa.?
— Fui eu mesmo — respondeu o conde, com ar muito perturbado. — O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último encontro.
— Meu querido — interrompeu-o a Condessa — não o conte, pelo amor de Deus. Tenho medo de ouvi-lo.
— Não — objetou o Conde —, vou contar tudo. Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Sílvio se vingou de mim.
Nisto, puxou para mim uma poltrona e fez-me o seguinte relato, que eu escutei com a mais viva curiosidade:
— Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde, fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui na frente dela. No quintal, vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia para falar comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira, com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele, procurando lembrar-me dos seus traços. “Não me reconheces, Conde?” — disse-me com voz trêmula. “Sílvio!” — exclamei, e confesso que senti os cabelos arrepiarem-se. “Exatamente — replicou —, vim para descarregar a minha pistola. Estás pronto?” A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha esposa voltar. Mas ele demorou-se, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as portas, ordenei que não entrasse ninguém, e pedi outra vez a Sílvio que atirasse. Ele ergueu a pistola e apontou... Eu contava os segundos... pensava nela... Passou-se um minuto horrível. Sílvio baixou o braço. “Sinto muito — disse — que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas. Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro”. A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. “Tens uma sorte dos diabos, Conde” — disse-me, com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei. Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é que atirei, e a minha bala furou aquele quadro (o conde apontou-me com um dedo o quadro furado. Tinha o rosto em brasa; a condessa estava mais pálida que o seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação). Atirei, e, graças a Deus, errei o alvo. Então Sílvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo, e com um grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me toda a coragem. — “Querida — disse —, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai, bebe um pouco de água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e camarada”. Macha, porém, continuava intranquila. “Diga-me, senhor: meu marido está falando a verdade? — perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É verdade que os dois estão brincando?”. “Ele brinca sempre, Condessa — respondeu Sílvio. — Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar...” A esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela. Macha atirou-se-lhe aos pés. “Levanta-te, Macha! — gritei, furioso. — Tem vergonha! E o senhor, não vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?”. “Não quero — respondeu Sílvio. — Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entrego-te à tua consciência”. Nisto ia sair, mas deteve-se à porta, olhou para o quadro furado pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher tinha desmaiado. Os criados não se atreviam a detê-lo, e miravam-no estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu, antes mesmo que eu tivesse tempo de tornar a mim.
O Conde calou-se. Destarte, vim a saber o fim de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de Alexandre Ypsilanti, comandava um destacamento de heteristas e morreu na Batalha de Skuliani.2

NOTAS:
1 - Estaroste: chefe eletivo de uma aldeia, na Rússia.
2 - O Príncipe Alexandre Ypsilanti, descendente de ilustre família de gregos fanariotas, general do exército russo, tornou-se chefe dos heteristas — membros da heteria —, que conspiravam pela independência grega contra os turcos, e organizou uma incursão no território ocupado por estes. Desautorizado pelo czar, o empreendimento malogrou-se, e Ypsilanti foi derrotado em Skuliani (ou Skullem), em março de 1821, numa batalha em que pereceu a flor da mocidade grega.

(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 3, p. 90)

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