Alexandre Pushkin (1799-1837) é considerado o maior
dos poetas russos e o fundador da moderna literatura daquele país. Com quinze
anos publicou seu primeiro poema e com vinte foi perseguido por suas ideias
políticas. Aos vinte e seis foi perdoado, casou-se e aos trinta e sete morreu
em duelo ao tentar defender a honra de sua esposa. O conto “O Tiro” foi publicado
em 1831 como parte dos Contos de Belkin.
O Tiro
Alexandre Pushkin
Estacionávamos na cidadezinha de ***. Sabe-se
o que é a vida do oficial de linha: de manhã, instrução, manejo; almoço em casa
do comandante do regimento ou na taverna do judeu; à tarde, ponche e cartas. Em
*** não havia nenhuma hospedaria, nenhuma jovem casadoura; assim, nós nos
reuníamos uns em casa dos outros, onde, além dos nossos próprios uniformes, não
víamos nada.
Um único civil frequentava o nosso grupo.
Teria uns trinta e cinco anos, e por isso o considerávamos velho. Dava-lhe a
experiência, aos nossos olhos, grande prestígio. Além disto, sua habitual
carranca, seus modos ásperos e sua língua maldizente exerciam forte impressão
em nossos espíritos juvenis.
Algum mistério envolvia o seu destino. Parecia
russo, porém usava um nome estrangeiro. Servira na cavalaria, com brilho até;
mas, por motivo que ninguém sabia, de repente pediu baixa e veio estabelecer-se
naquele lugarejo miserável, onde vivia, a um tempo, pobremente e com
prodigalidade. Andava sempre a pé, trajando um velho casaco preto, mas, ao
mesmo passo, mantinha mesa franca para todos os oficiais do nosso regimento. É
verdade que o seu jantar consistia em dois ou três pratos, preparados por um
veterano; porém o champanha corria a jorros. Ninguém lhe conhecia a fortuna nem
as rendas, mas ninguém se atrevia a interrogá-lo a esse respeito. Tinha regular
número de livros, na maioria obras militares, mas também alguns romances, que
emprestava de boa vontade sem nunca os pedir de volta; tampouco devolvia os
livros que lhe emprestavam. Seu principal exercício era o tiro de pistola. As
paredes do seu quarto estavam crivadas de balas, todas fendilhadas, como favos
de mel. Preciosa coleção de pistolas era todo o luxo da pobre casinha de barro
onde vivia. Chegou a adquirir tão incrível habilidade que, se se propusesse
abater com uma bala o penacho de um capacete, nenhum de nós vacilaria em pôr a
cabeça debaixo deste.
Frequentemente se falava em duelos. Sílvio
(chamá-lo-ei assim) nunca tomava parte na palestra. Quando interrogado sobre se
já lhe acontecera bater-se em duelo, respondia secamente, sem entrar em
minúcias. Via-se que tais perguntas não lhe agradavam. Supúnhamos que talvez
lhe pesasse na consciência alguma infeliz vítima de sua terrível habilidade;
porém não nos passava pela cabeça que nele pudesse haver algo parecido com
timidez. Há pessoas cujo aspecto basta para afastar suspeitas dessa ordem. Um
acontecimento inesperado surpreendeu-nos a todos nós.
Certo dia, almoçávamos uns dez oficiais em
casa de Sílvio. Bebemos como de costume, isto é, muitíssimo. Após o almoço
começamos a persuadir o dono da casa a que bancasse. Sílvio, que não jogava
quase nunca, resistiu algum tempo. Afinal, mandou trazer um baralho, atirou à
mesa cinquenta ducados e sentou-se para distribuir as cartas. Rodeamo-lo, e
principiou o jogo. Tinha ele por hábito manter-se em completo silêncio durante
a partida, sem nada perguntar nem dar qualquer explicação. Se a um dos
parceiros acontecia errar nos cálculos, ele de pronto lhe restituía o que
recebera em excesso ou anotava o excesso recebido pelo outro. Já sabíamos
disso, e não o impedíamos de jogar conforme o seu sistema, como bem entendesse.
Havia entre nós, porém, um oficial transferido pouco antes para o nosso
regimento. Este, jogando distraído, anunciou um tresdobro errado. Sílvio pegou
do giz e acertou a conta, segundo o seu hábito. Pensando que o banqueiro se
enganara, o oficial entrou a explicar-se. Sílvio, sem responder, continuava a
distribuir as cartas. Perdendo a paciência, o oficial tomou da esponja e apagou
o que lhe parecia escrito a mais. Sílvio retomou o giz e reproduziu a mesma
anotação. Esquentado pelo vinho, pelo jogo e pelo riso dos colegas, o oficial
julgou-se gravemente ofendido, agarrou com raiva um castiçal de cobre posto
sobre a mesa e arremessou-o contra Sílvio, que mal teve tempo de evitar o
golpe, desviando-se com rapidez. Houve uma algazarra geral. Pálido de furor,
Sílvio levantou-se e disse com os olhos cintilantes:
— Tenha a bondade de sair, senhor, e agradeça
a Deus que isto haja acontecido em minha casa.
Não tínhamos a menor dúvida acerca das
consequências, e julgávamos o nosso camarada um homem morto. O oficial saiu,
dizendo que estava pronto a responder pela ofensa como o senhor banqueiro
julgasse conveniente. O jogo continuou ainda por alguns minutos; mas, sentindo
que o dono da casa já não tinha disposição para jogar, deixamo-lo, um após
outro, e dispersamo-nos em direção aos nossos alojamentos, a conversar sobre a
próxima vaga.
No dia seguinte, no manejo, já perguntávamos
uns aos outros se o pobre tenente ainda vivia, quando ele próprio surgiu em
nosso meio. Entramos sem demora a interrogá-lo. Respondeu que não tivera
notícia alguma de Sílvio, o que muito nos admirou. Fomos à casa deste, e o
encontramos no quintal atirando uma bala sobre outra num ás colado no portão.
Recebeu-nos como de costume, e evitou pronunciar uma palavra sequer sobre o
incidente da véspera. Três dias se passaram, e o tenente ainda vivia. Nós nos
perguntávamos admirados: “Será que o Sílvio não quererá bater-se?” Pois não se
bateu. Deu-se por satisfeito com uma explicação bem fútil, e reconciliou-se.
Essa atitude o prejudicou sobremodo na opinião
da mocidade. O que os moços menos perdoam é a falta de coragem, pois geralmente
veem na ousadia a principal das virtudes viris e a desculpa de todos os
defeitos. Tudo, no entanto, aos poucos foi sendo esquecido, e Sílvio tornou a
adquirir sua influência anterior.
Só eu não pude reaproximar-me dele. Dotado de
imaginação romântica, sentira-me atraído mais que os outros por aquele homem
cuja vida constituía um mistério, e que se me afigurava o herói de alguma
história misteriosa. Ele gostava de mim; pelo menos, eu era a única pessoa com
quem ele punha de lado o seu habitual tom áspero e sarcástico e palestrava sobre
assuntos vários, cordialmente e com uma graça incomum. Porém, após aquela noite
infeliz, a ideia de que a sua honra estava manchada, e por sua própria vontade
não fora lavada, essa ideia não me largava e impedia-me de tratá-lo como
dantes. Sílvio, que, muito inteligente e experimentado, não podia deixar de
notar o meu procedimento e adivinhar-lhe os motivos, parecia magoado com ele.
Ao menos duas vezes observei que desejava dar-me uma explicação, mas evitei as
ocasiões e ele desistiu de procurá-las. Daí por diante, víamo-nos apenas em
presença dos meus camaradas, e as nossas cordiais palestras de outrora nunca
mais voltaram.
Os habitantes da capital, viciados pelas
distrações, não fazem ideia de muitas impressões bem conhecidas dos habitantes
das aldeias e das pequenas cidades, como, por exemplo, a espera do dia do
correio. Às segundas e sextas-feiras o escritório do nosso regimento se enchia
de oficiais: um aguardava dinheiro, outro cartas, outro jornais. De ordinário
as encomendas eram abertas ali mesmo, as notícias comunicadas aos colegas, e o
escritório oferecia a imagem de uma extraordinária animação. Sílvio também
mandava dirigir a sua correspondência para o nosso regimento, e regularmente
vinha buscá-la. Certa vez foi-lhe entregue uma encomenda, cujo lacre ele
quebrou com visível impaciência. Percorrida a carta, seus olhos fuzilaram. Os
oficiais, cada qual preocupado com a própria correspondência, nada perceberam.
— Senhores — disse-nos Sílvio —, há negócios
que exigem a minha partida imediata. Partirei esta noite. Espero que não
recusem meu convite para jantar comigo pela última vez. Aguardo-o também —
acrescentou, dirigindo-se a mim. — Aguardo-o sem falta.
Com estas palavras saiu, apressado, enquanto
nós, ajustado que nos reuniríamos outra vez em casa dele, fomos cada um para
seu lado.
Cheguei à casa de Sílvio na hora combinada, e
ali encontrei quase todo o regimento. Tudo que Sílvio tinha já estava
empacotado; restavam apenas as paredes nuas, ostentando os buracos feitos pelos
tiros de pistola. Sentamo-nos à mesa. O dono da casa estava de extraordinário
bom humor, que em pouco tempo se comunicou a todos. Espocavam rolhas a cada
minuto, copos espumavam, o champanha crepitava sem parar, e todos nós, com a
maior cordialidade, desejamos ao amigo boa viagem e todas as venturas.
Levantamo-nos da mesa já noite alta. Quando da procura dos quepes, Sílvio,
despedindo-se de todos, segurou-me pelo braço e reteve-me no momento exato em
que eu ia sair.
— Preciso falar com você — disse-me.
Fiquei.
Os outros foram-se embora, e nós dois
permanecemos a sós, sentados um em frente do outro a cachimbar em silêncio.
Sílvio parecia embaraçado. Da alegria convulsiva de pouco antes não havia o
menor vestígio. Sua sinistra palidez, seus olhos fuzilantes e a espessa fumaça
que lhe saía da boca davam-lhe um ar realmente diabólico. Passaram-se alguns
minutos, até que ele quebrou o silêncio.
— Talvez nunca mais nos tornemos a ver —
disse-me —, mas, antes de nos separarmos, queria dar-lhe uma explicação. Há de
ter notado que ligo pouca importância ao que os outros pensam de mim. Mas gosto
de você, e sinto que me seria penoso deixar subsistir em seu espírito uma
impressão injusta.
Interrompeu-se, a fim de reencher o cachimbo
apagado. Eu mantinha-me calado, de olhos baixos.
— Achou estranho — continuou — que eu não
houvesse pedido satisfação àquele bêbado estouvado do R***. Mas você há de
convir que, tendo eu o direito de escolher a arma, a vida dele estava nas
minhas mãos e a minha quase fora de perigo. Poderia dar-lhe como causa dessa
moderação unicamente a minha generosidade, porém não lhe quero mentir. Se
pudesse castigar R*** sem arriscar de modo nenhum a minha vida, não lhe teria
perdoado.
Olhei para Sílvio com surpresa. Semelhante
confissão acabou de perturbar-me. Ele voltou a falar:
— É isso mesmo. Não tenho o direito de me
expor à morte. Há seis anos recebi uma bofetada, e o meu inimigo ainda está
vivo.
Espicaçou-me a curiosidade.
— Então não se bateram? Algum obstáculo terá
impedido o encontro?
— Batemo-nos, e aqui está a lembrança de nosso
duelo.
Levantou-se e tirou de uma caixa de papelão um
gorro vermelho com a borla e os galões de ouro (o que os franceses chamam um
bonnet de police), e o pôs na cabeça. O gorro estava atravessado por uma bala
uma polegada acima da fronte.
— Você sabe que eu servi no regimento de
hussardos de *** — continuou ele. — O meu caráter lhe é conhecido. Tenho o
costume de ser o primeiro, e quando era moço isto chegava a uma verdadeira
mania. Naquele tempo a briga estava na moda, e eu era o primeiro brigão do
exército. Nós nos gloriávamos de grandes bebedeiras; cheguei a vencer nesse
terreno o famigerado B***, cantado por D***. Os duelos ocorriam em nosso
exército um por minuto, e eu era testemunha ou participante ativo de todos
eles. Os meus colegas me admiravam; quanto aos comandantes, substituídos a cada
momento, me consideravam um mal inevitável. Assim vivia, gozando tranquilamente
(ou antes, inquietamente) a minha glória, quando um jovem oficial de abastada e
conhecida família (não lhe direi o nome) foi transferido para o nosso
regimento. Nunca em minha vida vi tamanho felizardo. Imagine mocidade,
espírito, beleza, a alegria mais louca, a mais despreocupada coragem, um nome
conhecido, tanto dinheiro que ele nem chegava a contá-lo e que nunca lhe faltaria.
Poderá então calcular a impressão que ele produziu em nós. A minha hegemonia
foi abalada. Seduzido pela minha fama, o jovem quis fazer-se meu amigo, mas
recebi-o friamente e ele se afastou de mim sem o menor pesar. Comecei a
odiá-lo. Seu êxito no regimento e na sociedade feminina levou-me a completo
desespero. Entrei a provocá-lo, mas o moço respondia aos meus epigramas com
epigramas que sempre me pareciam mais picantes e agudos que os meus, e eram
pelo menos mais alegres, pois ele brincava e eu estourava de raiva. Enfim,
certo dia, no baile oferecido por um proprietário polaco, vendo-o ser objeto da
atenção de todas as damas, principalmente da dona da casa — a qual já tivera
uma ligação comigo —, cheguei-me a ele e disse-lhe ao ouvido alguma vulgar insolência.
Enfureceu-se e deu-me uma bofetada. Pegamos da espada, várias damas desmaiaram,
porém fomos separados. Na mesma noite devíamos encontrar-nos para o duelo.
Amanhecia já. Eu, no lugar combinado, em
companhia de três testemunhas, aguardava o meu adversário com indizível
impaciência. O sol de primavera já surgira e principiara a aquecer-nos, quando
ele apareceu. Vi-o de longe. Vinha a pé, o capote sobre a espada, acompanhado
de uma testemunha. Fomos ao seu encontro. Ele se aproximava segurando na mão o
quepe cheio de cerejas. As testemunhas mediram os doze passos. Eu devia atirar
primeiro, mas a emoção da raiva me era tão forte, que não confiava na exatidão
do meu tiro naquele instante; para ter tempo de me acalmar, cedi-lhe o direito
de atirar primeiro. Meu adversário não concordou. Foi resolvido então
recorrermos à sorte. O primeiro tiro coube ainda a ele, sempre favorito do
destino. Apontou, e furou-me o gorro. Depois foi a minha vez. Enfim, eu tinha
sua vida em minhas mãos. Fitava-o com avidez, procurando descobrir pelo menos a
sombra de uma inquietação. Ele estava diante da minha pistola, tirava do quepe
as cerejas maduras e cuspia os caroços, que voavam até mim. Essa indiferença
exasperava-me. “Que me importa — pensei — tirar-lhe a vida agora, que ele a
aprecia tão pouco?” Um pensamento perverso atravessou-me o cérebro. Baixei a
minha arma. “Parece-me — disse-lhe eu — que está pouco disposto a morrer agora,
pois resolveu tomar a merenda; não quero incomodá-lo”. - “Você não me incomoda
absolutamente — respondeu ele. — Tenha a bondade de atirar. Ou então faça como
entender, fique com seu tiro. Por mim, estarei sempre à sua disposição”.
Dirigi-me às testemunhas e declarei-lhes que por enquanto não fazia questão de
atirar. Assim terminou o duelo. Renunciei à minha patente e exilei-me neste
lugarejo. Desde então, porém, não decorreu um dia sem que eu pensasse na
vingança. Afinal, chegou a minha hora.
Tirou do bolso a carta recebida naquela manhã,
e passou-a às minhas mãos. Alguém (a quem provavelmente encarregara do assunto)
informava-o de Moscou de que a “pessoa em apreço” ia casar com uma rapariga
jovem e bonita.
— Você já suspeita — continuou — quem é a
“pessoa em apreço”. Vou partir para Moscou. Veremos se ele receberá a morte
agora, na véspera de suas núpcias, como quando ia acolhê-la com cerejas na mão.
Com estas palavras, levantou-se, atirou o
gorro ao chão e pôs-se a andar pelo quarto, como um tigre pela sua jaula. Eu,
que o tinha ouvido sem me mexer, sentia-me agitado por estranhos sentimentos
contraditórios.
Entrou um criado e anunciou que os cavalos
estavam prontos. Sílvio me apertou a mão com força. Abraçamo-nos. Sentou-se no
carro, onde já se viam duas malas, uma com as suas pistolas e outra com a sua
bagagem. Despedimo-nos mais uma vez, e os cavalos partiram a galope.
II
Correram alguns anos. Negócios de família me
obrigaram a estabelecer-me numa pobre aldeia do distrito de N***. Ocupado com
os meus bens, não parava de suspirar em silêncio pela minha antiga existência,
ruidosa e despreocupada. O mais penoso para mim foi acostumar-me a passar as
noites de primavera e de inverno na solidão mais completa. Até o jantar,
conseguia matar o tempo desta ou daquela maneira, conversando com o estaroste1,
fiscalizando os trabalhadores, visitando as obras; mas, apenas começava a
baixar a noite, positivamente não sabia que fazer. Os poucos livros que achei
debaixo dos armários e na despensa, já os sabia de cor; as fábulas que
Kirilovna, a despenseira as conhecia, e eu a fizera contá-las várias vezes; as
canções das camponesas só me despertavam saudades. Reconheço que havia ali um
licor excelente, porém ele me dava dor de cabeça; aliás, confesso que receava
tornar-me um beberrão, um desses ébrios inveterados de que tantos espécimes vi
no meu distrito. Vizinhos próximos, não os tinha, a não ser dois ou três
daqueles ébrios, cuja conversação se constituía principalmente de soluços e
suspiros. Era preferível a solidão.
A quatro verstas de mim havia uma rica
propriedade, pertencente à Condessa B***, porém só o administrador vivia ali. A
Condessa visitara a sua propriedade apenas uma vez, no primeiro ano de seu
casamento, e mesmo então não passara lá mais de um mês. Mas durante a segunda
primavera do meu isolamento correu a notícia de que ela viria com o marido veranear
na sua aldeia. Chegaram os dois, com efeito, no começo de junho.
A chegada de um vizinho rico é um
acontecimento na vida dos aldeãos. Os fazendeiros e a sua criadagem comentam-na
dois meses antes e três anos depois. De mim, confesso que a notícia da chegada
de uma vizinha jovem e bonita me provocou forte impressão. Ardia de impaciência
por vê-la, e logo no primeiro domingo seguinte à sua vinda, após o almoço,
pus-me a caminho da aldeia para me apresentar a ela como seu vizinho mais
próximo e seu mais humilde criado.
Um lacaio me introduziu no gabinete do conde e
saiu para me anunciar. O gabinete era ornado com o maior luxo possível. Ao
longo das paredes viam-se estantes com livros, um busto de bronze sobre cada
uma delas; sobre a lareira de mármore havia um grande espelho; o chão estava
coberto de estofo verde e de tapetes. Havendo perdido, no meu cantinho pobre, o
hábito do luxo, e não tendo contemplado desde muito a riqueza alheia, fiquei
acanhado e aguardei o conde com a timidez dum solicitante provinciano à espera
do ministro. Abriram-se as portas. Entrou um rapaz dos seus trinta e dois anos,
de bela aparência. Aproximou-se de mim com fisionomia aberta e amiga. Peguei a
retomar coragem e ia dar os cumprimentos de praxe, porém ele me precedeu.
Sentamo-nos. A sua palestra, fluente e cortês, logo me dissipou a reserva de
solitário, e já voltava a adotar minhas maneiras normais, quando de repente
entrou a condessa, tornando-me ainda mais enleado. Era realmente de uma grande
beleza. O conde fez a apresentação. Eu queria mostrar-me à vontade, mas, quanto
mais procurava assumir um ar desembaraçado, tanto mais crescia em mim o
sentimento da minha bronquice. Meus hospedeiros, para me darem o tempo de
reassumir uma atitude e de me acostumar aos novos conhecidos, puseram-se a
falar entre si, tratando-me sem constrangimento como a um bom vizinho. Nesse
ínterim, pus-me a passear pela sala, observando os livros e os quadros. Não sou
conhecedor de pintura, mas um destes atraiu-me a atenção. Representava alguma
paisagem da Suíça, porém o que me surpreendeu não foi a arte do pintor, e sim o
fato de estar o quadro furado por duas balas, alojadas quase no mesmo ponto.
— Um belo tiro — disse eu, dirigindo-me ao
Conde.
— Sim, um tiro notável. O senhor atira bem?
— Regularmente — repliquei, contente de ver
enfim a conversa tomar um rumo que me era mais familiar. — A trinta passos de
distância, não erro a dama de uma carta; bem entendido, quando atiro com
pistola que já conheço.
— É verdade? — perguntou a condessa com
visível atenção. — E tu, meu amigo, acertarás também uma carta a trinta passos
de distância?
— Temos de experimentá-lo uma vez — respondeu
o Conde. — Tempos atrás eu não era mau atirador, mas agora já faz quatro anos
que não pego numa pistola.
— Assim sendo — observei —, aposto que V. Exa.
já não acerta na carta nem sequer a vinte passos de distância. A pistola exige
um exercício quotidiano. Eu o sei por experiência própria. No regimento,
passava por um dos melhores atiradores. Aconteceu-me certa vez não pegar na pistola
durante um mês inteiro, pois as minhas estavam em conserto. Quando voltei a
atirar, pela primeira vez errei quatro vezes sucessivas uma garrafa a vinte e
cinco passos de distância. Havia entre nós um capitão de cavalaria, homem
espirituoso, gracejador, que estava presente nessa ocasião e me disse: “Até
parece, amigo, que a tua mão é incapaz de fazer mal a uma garrafa”. Não,
Excelência, não devemos descuidar do exercício; sem ele a gente perde
totalmente o hábito. O melhor atirador que tive oportunidade de encontrar
atirava todos os dias, pelo menos três vezes, antes do almoço. Para ele, isto
se tornara um hábito como o copo de vodca.
O conde e a condessa pareciam contentes de me
ouvir.
— Como é que ele atirava? — perguntou o conde.
— Quando ele via, por exemplo, uma mosca
pousada na parede... está rindo, Sra. Condessa? Palavra de honra, estou dizendo
a verdade. Bem, ele via uma mosca pousada na parede e gritava: “Kuzka, uma
pistola!” Kuzka trazia a pistola carregada. Pum! — e lá estava a mosca achatada
contra a parede!
— É incrível! — disse o conde. — Como se
chamava ele?
— Sílvio, Excelência.
— Sílvio! — exclamou o conde, levantando-se de
um pulo. — O senhor conheceu Sílvio?
— Como não o teria conhecido, Excelência?
Éramos amigos. Ele era recebido em nosso regimento como um camarada. Há cinco
anos, porém, que não tenho nenhuma notícia a respeito dele. Então V. Exa.
também o conhecia?
— Conheci-o bastante. Ele não lhe terá falado
de certo incidente estranho?
— V. Exa. alude à bofetada que ele levou num
baile, de certo doidivanas?
— Ele disse-lhe o nome desse doidivanas?
— Não, Excelência, não me disse... Ah,
Excelência — continuei, começando a suspeitar a verdade —, perdoe... eu não
sabia... será que foi V. Exa.?
— Fui eu mesmo — respondeu o conde, com ar muito
perturbado. — O quadro atravessado de balas é a lembrança do nosso último
encontro.
— Meu querido — interrompeu-o a Condessa — não
o conte, pelo amor de Deus. Tenho medo de ouvi-lo.
— Não — objetou o Conde —, vou contar tudo.
Ele sabe como eu ofendi o seu amigo, deve saber também como Sílvio se vingou de
mim.
Nisto, puxou para mim uma poltrona e fez-me o
seguinte relato, que eu escutei com a mais viva curiosidade:
— Casei-me há cinco anos. Viemos passar nesta
aldeia o primeiro mês, a lua-de-mel. Devo a esta casa os minutos mais belos da
minha vida, mas também uma das minhas recordações mais penosas. Uma tarde,
fomos dar um passeio a cavalo. Não sei por quê, a montaria de minha mulher
empacou; ela assustou-se, entregou-me o cabresto e voltou para casa a pé. Fui
na frente dela. No quintal, vi uma caleça de viagem, e o criado anunciou-me que
havia no meu gabinete um rapaz que não queria dizer o nome, mas insistia para falar
comigo. Entrei aqui, nesta sala, e vi na escuridão um homem coberto de poeira,
com a barba crescida. Estava aqui, perto da lareira. Aproximei-me dele,
procurando lembrar-me dos seus traços. “Não me reconheces, Conde?” — disse-me
com voz trêmula. “Sílvio!” — exclamei, e confesso que senti os cabelos
arrepiarem-se. “Exatamente — replicou —, vim para descarregar a minha pistola.
Estás pronto?” A arma lhe emergia de um dos bolsos. Medi a distância de doze
passos e parei lá no canto, pedindo-lhe que atirasse logo, antes de minha
esposa voltar. Mas ele demorou-se, pediu luz. Mandei trazer velas, fechei as
portas, ordenei que não entrasse ninguém, e pedi outra vez a Sílvio que
atirasse. Ele ergueu a pistola e apontou... Eu contava os segundos... pensava
nela... Passou-se um minuto horrível. Sílvio baixou o braço. “Sinto muito —
disse — que a minha pistola não esteja carregada de caroços de cereja... a bala
é pesada. Parece-me que o que estamos praticando não é um duelo, mas um
assassinato. Não estou acostumado a atirar contra pessoas desarmadas.
Principiemos outra vez, vamos decidir pela sorte quem deverá atirar primeiro”.
A cabeça rodava-me... parece que não quis consentir. Por fim, carregamos outra
pistola, ele enrolou dois bilhetes e colocou-os no gorro atravessado outrora
pelo meu tiro; outra vez o primeiro lugar coube a mim. “Tens uma sorte dos
diabos, Conde” — disse-me, com um sorriso de escárnio que jamais esquecerei.
Não compreendo o que me aconteceu, como ele pôde obrigar-me a isso... o fato é
que atirei, e a minha bala furou aquele quadro (o conde apontou-me com um dedo
o quadro furado. Tinha o rosto em brasa; a condessa estava mais pálida que o
seu lenço; por mim, não pude conter uma exclamação). Atirei, e, graças a Deus,
errei o alvo. Então Sílvio, que naquele momento foi deveras terrível, pôs-se a
mirar-me outra vez. De súbito abriu-se a porta, Macha entrou correndo, e com um
grito lançou-se-me ao pescoço. A presença dela restituiu-me toda a coragem. —
“Querida — disse —, não vês que estamos brincando? Como te espantaste! Vai,
bebe um pouco de água e volta aqui; vou apresentar-te um velho amigo e
camarada”. Macha, porém, continuava intranquila. “Diga-me, senhor: meu marido
está falando a verdade? — perguntou, voltando-se para o terrível Sílvio. - É
verdade que os dois estão brincando?”. “Ele brinca sempre, Condessa — respondeu
Sílvio. — Certa vez, por brincadeira, deu-me uma bofetada; outra vez, por
brincadeira, furou-me este gorro com uma bala. Agora mesmo, brincando, por um
triz não acertou em mim. Mas agora sou eu que tenho vontade de brincar...” A
esta palavra, fez menção de alvejar-me na presença dela. Macha atirou-se-lhe
aos pés. “Levanta-te, Macha! — gritei, furioso. — Tem vergonha! E o senhor, não
vai deixar de atormentar essa pobre mulher? Quer atirar ou não?”. “Não quero —
respondeu Sílvio. — Estou satisfeito. Vi a tua confusão, o teu medo. Forcei-te
a atirar em mim, estou satisfeito. Lembrar-te-ás de mim. Entrego-te à tua
consciência”. Nisto ia sair, mas deteve-se à porta, olhou para o quadro furado
pelo meu tiro, atirou contra ele quase sem apontar, e desapareceu. Minha mulher
tinha desmaiado. Os criados não se atreviam a detê-lo, e miravam-no
estupefatos. Ele saiu pela escadaria, chamou o cocheiro e desapareceu, antes
mesmo que eu tivesse tempo de tornar a mim.
O Conde calou-se. Destarte, vim a saber o fim
de uma história cujo começo me enchera outrora de espanto. Quanto ao herói
dela, nunca mais o encontrei. Contam que Sílvio, no momento da expedição de
Alexandre Ypsilanti, comandava um destacamento de heteristas e morreu na
Batalha de Skuliani.2
NOTAS:
1 - Estaroste: chefe eletivo de uma aldeia, na
Rússia.
2 - O Príncipe Alexandre Ypsilanti,
descendente de ilustre família de gregos fanariotas, general do exército russo,
tornou-se chefe dos heteristas — membros da heteria —, que conspiravam pela
independência grega contra os turcos, e organizou uma incursão no território
ocupado por estes. Desautorizado pelo czar, o empreendimento malogrou-se, e
Ypsilanti foi derrotado em Skuliani (ou Skullem), em março de 1821, numa
batalha em que pereceu a flor da mocidade grega.
(Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira, vol. 3, p.
90)
Nenhum comentário:
Postar um comentário