sexta-feira, 1 de maio de 2015

45 – O limpador de chaminés – I. B. Singer

 Isaac Bashevis Singer (1902–1991) nascido na Polônia foi agraciado em 1978 com o Premio Nobel de Literatura. O conto “O limpador de chaminés” foi publicado no Brasil pela L&PM como parte do livro “Um amigo de Kafka” e é um dos contos mais simples que ele escreveu e ao mesmo tempo um dos mais poéticos. Tem um pouco do realismo magico, tão admirado por nós latino-americanos. 

O limpador de chaminés
Isaac Bashevis Singer
Tradução Mirra Ginsburg

Há pancadas e pancadas. Uma pancada na cabeça não é brincadeira. O cérebro e um órgão delicado, se não fosse assim, por que a alma estaria localizada no cérebro? Por que não no fígado ou, se me perdoam, nas tripas? Pode-se ver a alma nos olhos. Os olhos são janelinhas pelas quais a alma espia.
Tínhamos um limpador de chaminés na cidade, cujo apelido era Yash Preto. Todos os limpadores de chaminé são pretos - que mais podem ser? mas Yash parecia ter nascido preto. Seu cabelo era eriçado e negro como o piche. Os olhos eram negros e a pele nunca estava limpa da fuligem. Só os dentes eram brancos. O pai tinha sido limpador de chaminés da cidade e Yash herdara o oficio. Já era um homem adulto, mas continuava solteiro e morava com a velha mãe, Maciechowa.
Vinha a nossa casa uma vez por mês, descalço, e a cada passo deixava uma marca negra no chão. Minha mãe, que ela descanse em paz, corria para recebe-lo e não deixa-lo ir além. Era pago pela cidade, mas as mulheres lhe davam um groschen ou uma fatia de pão quando acabava o serviço. Era o costume. As crianças tinham terror dele, embora nunca fizesse mal a ninguém. E enquanto foi limpador de chaminés, as chaminés nunca pegaram fogo. Aos domingos, como todos os cristãos, ele se lavava e ia a igreja com a mãe. Mas, lavado, parecia ainda mais negro do que antes; talvez por isso nunca encontrasse esposa.
Uma segunda-feira - lembro-me como se fosse ontem -, Feitel, o aguadeiro, entrou e nos contou que Yash caíra do telhado de Tevye Boruch. Tevye Boruch era dono de um sobrado na praça do mercado. Todos sentiram pena do limpador de chaminés. Yash sempre trepara pelos telhados com a agilidade de um gato, mas se um homem esta predestinado a sofrer um acidente, não há como evitá-lo. E tinha que ser no prédio mais alto da cidade. Feitel disse que Yash batera com a cabeça, mas não quebrara nenhum membro. Alguém o levara para casa. Ele morava nos arredores da cidade, próximo as matas, num casebre decrépito.
Durante algum tempo ninguém soube notícias de Yash. Mas que importava um limpador de chaminés? Se não podia mais trabalhar, a cidade contratava outro. Então um dia Feitel voltou, com dois baldes de agua no balancim e disse a minha mãe:
– Feige Braine, soube das notícias? Yash, o limpador de chaminés agora lê pensamentos.
Minha mãe riu e cuspiu.
– Que brincadeira é essa? - perguntou.
– Não é brincadeira, Feige Braine. Não é brincadeira mesmo. Ele está deitado no catre com a cabeça enfaixada adivinhando os segredos de todo mundo.
– Você ficou maluco? – ralhou minha mãe.
Não tardou e a cidade inteira estava comentando. A pancada na cabeça de Yash afrouxara algum parafuso em seu cérebro e ele se tornara vidente.
Tínhamos um professor na cidade, Nochem Mecheles, e ele chamava Yash de adivinho. Quem já ouvira falar numa coisa dessas? Se uma pancada na cabeça podia tornar um homem vidente, deveria haver centenas deles em cada cidade. Mas as pessoas tinham ido lá e presenciado com os próprios olhos. Um homem podia pegar um punhado de moedas no bolso e perguntar: “Yash, o que tenho na mão?”. E Yash respondia: “Tantas moedas de três groschen, tantas de quatro e de seis copeques”. Contavam as moedas e estava tudo certinho até o ultimo groschen. Outro homem perguntava: “Que foi que fiz na semana passada a essa hora em Lublin?”. E Yash dizia que fora a uma taverna com dois homens. E os descrevia como se estivessem diante dele.
Quando o médico e as autoridades da cidade ouviram a história, foram correndo ver. O casebre de Maciechowa era tão minúsculo e tão baixo que os chapéus dos visitantes tocavam no teto. Começaram a interrogá-Io e ele respondia tudo certo. O padre se alarmou; os camponeses estavam dizendo que Yash era santo. Um pouquinho mais, e principiariam a sair com ele em peregrinação como se fosse um ícone. Mas o médico dizia que não deviam removê-lo. Além do mais, ninguém nunca vira Yash na igreja exceto aos domingos.
Bem, lá estava ele deitado na enxerga, falando como uma pessoa normal - comendo, bebendo, brincando com o cachorro que a mãe criava. Mas sabia tudo: o que as pessoas traziam nos bolsos do casaco e nos bolsos das calças; onde esse tinha escondido o dinheiro; quanto aquele gastara em bebidas anteontem.
Quando a mãe viu o afluxo de visitantes, começou a cobrar um copeque de entrada por pessoa. E elas pagavam. O médico escreveu uma carta para Lublin. O prefeito da cidade mandou - como chamam agora? - um relatório, e vieram personagens em altos postos de Zamosc e Lublin. Diziam que o próprio governador enviara um representante. O prefeito se assustou e mandou limpar todas as ruas. A praça do mercado ficou tão limpa que não se via nenhum graveto ou palha no chão. A prefeitura foi rapidamente caiada. E tudo por causa de quem? De Yash, o limpador de chaminés. A casa de Gitel, o estalajadeiro, estava num alvoroço - quem alguma vez sonhara com hospedes tão importantes?
A comitiva inteira partiu para ver Yash em seu casebre. Interrogaram-no, e as coisas que disse encheram de medo os corações dos funcionários. Quem sabe as culpas que pessoas assim carregam? Todas recebiam suborno, e ele lhes disse. Do que entende um limpador de chaminés? O visitante mais ilustre - esqueço seu nome - insistiu que Yash estava doido e devia ser mandado para um hospício. Mas o nosso médico argumentou que o paciente não podia viajar, isso o mataria.
Corria o boato de que o médico e o representante do governador tinham trocado palavras ásperas e quase chegaram as vias de fato. Mas o nosso médico também era funcionário publico; era o médico da municipalidade e fazia parte da junta de alistamento. Era um homem inflexível - ninguém conseguia compra-lo, por isso não temia a clarividência de Yash. Seja como for, o médico venceu. Mas depois o representante informou que Yash estava louco, e deve ter se queixado do médico, porque não tardou e ele foi transferido para outro distrito.
Nesse meio tempo, a cabeça de Yash sarou e ele voltou a limpar chaminés. Mas conservou os seus estranhos poderes. Entrava numa casa para receber o seu groschen e a mulher lhe perguntava: “Yash, o que esta guardado na gaveta do lado esquerdo?”, ou: “O que tenho na mão?”, ou: “O que ceei ontem a noite?”. E ele dizia tudo. Perguntavam:
“Yash, como e que você sabe disso?” Ele dava de ombros: “Sei. Foi a pancada na cabeça”. E apontava para a têmpora. Poderia ter sido levado para as grandes cidades e as pessoas comprariam entradas para vê-lo, mas quem se preocupava com essas coisas.
Havia diversos ladrões na cidade. Roubavam roupa dos sótãos e tudo o mais em que pudessem por as mãos. Agora já não podiam roubar. A vítima procurava Yash e ele dizia o nome do ladrão e o lugar onde o produto do roubo estava escondido. Os camponeses das aldeias próximas ouviram falar de Yash e sempre que um cavalo era roubado, o dono vinha vê-lo para descobrir onde se encontrava. Muitos ladrões já estavam na cadeia. Os ladrões ficaram de olho nele e diziam abertamente que era um homem marcado. Mas Yash sabia de seus pianos com antecedência. Foram espanca-lo certa noite, mas ele se escondera no celeiro do vizinho. Atiravam pedras, mas ele pulava de lado ou se abaixava bem antes da pedra passar voando.
As pessoas esqueciam onde punham as coisas - dinheiro, joias - e Yash sempre lhes dizia onde acha-las. Nem parava para pensar. Se uma criança se perdia, a mãe corria para Yash, e ele a levava até a criança. Os ladroes começaram a dizer que ele próprio sequestrara a criança, mas ninguém lhes dava credito. Ele nem mesmo recebia pela consulta. A mãe exigia dinheiro, mas ele era um bobalhão. Nunca aprendera muito bem o valor de uma moeda.
Tínhamos um rabino na cidade, Reb Arele. Viera de uma cidade grande. No Grande Sabá antes da Pascoa ele pregou na sinagoga. E qual foi o tema? Yash, o limpador de chaminés. Os céticos, disse, negam que Moises seja profeta. Dizem que tudo deve ser explicado pela razão. No entanto, como e que Yash, o limpador de chaminés, sabe que Itte Chaye, a padeira, deixou cair a aliança no poço? E se Yash, o limpador de chaminés, sabe das coisas ocultas, como alguém pode duvidar dos poderes dos santos? Havia alguns hereges na cidade, mas nem eles tinham resposta.
Nesse interim, as noticias sobre Yash tinham chegado a Varsóvia, e outras cidades. Os jornais escreveram sobre ele, e de Varsóvia enviaram uma comissão. Mais uma vez o prefeito despachou o pregoeiro da cidade para avisar que as casas e quintais deviam ser limpos. A praça do mercado foi novamente varrida ate ficar tinindo. Depois do Sukkoth[1] vieram as chuvas. Só tínhamos uma rua calcada - a da igreja. Tábuas e toras foram estendidas por toda a parte para que as pessoas importantes de Varsóvia não precisassem andar na lama. Gitel, o estalajadeiro, preparou camas e acomodações. A cidade inteira se alvoroçou. Yash era o único que não ligava. Continuava a correr as casas e a limpar chaminés, como de costume. Nem tinha o bom senso de recear os funcionários de Varsóvia.
Mas escutem só: um dia antes da comissão chegar, houve uma nevada e uma súbita geada. Na noite anterior, viram faíscas e até línguas de fogo voando da chaminé de Chaim, o padeiro. Chaim, preocupado que irrompesse um incêndio, mandou buscar Yash, o limpador de chaminés. Yash veio com a vassoura e limpou a chaminé. O forno de um padeiro permanece aceso muitas horas e uma grande quantidade de fuligem se prende a chaminé. Quando Yash estava descendo, escorregou e tornou a cair. Bateu mais uma vez com a cabeça, mas não com tanta força quanto da primeira vez. Nem saiu sangue. Ele se levantou e foi para casa.
Meus queridos amigos, no dia seguinte, quando a comissão chegou e começou a interrogar Yash, ele não sabia nada. A primeira pancada abrira alguma coisa, e a segunda a fechara. Os figurões perguntaram quanto dinheiro traziam, o que fizeram no dia anterior, o que comeram uma semana atrás aquela hora, mas Yash apenas sorria como um tolo e respondia: “Não sei”.
Os funcionários se enfureceram. Repreenderam o chefe de polícia e o novo médico. Exigiram saber por que tinham vindo de tão longe para ver aquele parvo, aquele campônio que não passava de um limpador de chaminés comum.
O chefe de polícia e os outros juraram que Yash sabia de tudo ha um ou dois dias atrás, mas os visitantes não quiseram escutar. Alguém lhes disse que Yash caíra de um telhado e tornara a bater com a cabeça, vocês sabem como as pessoas são: só acreditam no que veem. O chefe de polícia se aproximou de Yash e começou a bater com os punhos na cabeça dele. Talvez o parafuso se soltasse outra vez. Mas, uma vez que a portinhola no cérebro se fecha, permanece fechada.
A comissão regressou a Varsóvia e negou a historia do princípio ao fim. Yash continuou a limpar chaminés mais um ou dois anos. Então irrompeu uma epidemia na cidade e ele morreu.
O cérebro é cheio de todo tipo de portinholas e câmaras. As vezes uma pancada na cabeça desarruma tudo. Ainda assim, tudo isso tem relação com a alma. Sem a alma, a cabeça seria tão sabia quanto o pé.





[1] Festa religiosa judaica que comemora a colheita de outono, também chamada Festa dos Tabernáculos. (N. do T.)

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