sábado, 23 de maio de 2015

48 – Amor – C. Lispector

Clarice Lispector (1920-1977) escritora carioca que por um destes acasos nasceu na Ucrânia. Uma das maiores escritoras e contistas de todo o mundo que junto com Machado de Assis, Guimarães Rosa e Jorge Amado compõem o que é para mim o quarteto maior da literatura brasileira. A tarefa difícil foi a de destacar um conto em sua obra e meu coração optou por “Amor”.

Amor
Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô,
Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou
a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de
meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta.
Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez
mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando.
Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que
se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como
um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas
essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador
de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa
com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto
importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente,
sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores
que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara
um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente
artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e
belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara
a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de
aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida
podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a
cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe
estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para
descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma
legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com
persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar
estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas
vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim
compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde,
quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro
da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu
coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar
para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma
habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido.
Saía então para fazer
compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia
deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio
exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã
acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo
empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma,
fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento
mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora
instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto
um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo
de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De
pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma
coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles...
Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam
jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego
profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de
sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria
a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez
mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida
para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana
deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se
tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava
pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com
dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria
entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego
interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente
pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede
e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova
arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos
trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava
feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido;
não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música,
o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido
de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.
Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de
sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de
novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa
de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes,
que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por
um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao
banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem
ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso
com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais
abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários
da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos
estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o
mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de
piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam.
Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar,
depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade
extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.
Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras,
as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo
jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao
outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da
piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na
fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com
pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um
momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia
de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida
que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso
rodeava lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.
Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do
Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não
havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.
De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra
dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados
da
tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada
parecia se ter movido. Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelo eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar,
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho
secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos.
O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa
rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas
de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo.
E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram
percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a
repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo,
e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada.
A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia
nos
primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam
amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era
profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça
rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo.
A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu
cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou
na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era
fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara
culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o
Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões
fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado
de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.
Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que
sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo
lhe parecia seu, sujo, perecível, seu.
Abriu a porta de casa. A sala era grande,
quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a
lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia
que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver.
O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e
rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto.
Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante.
Ela amava o mundo,
amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre
fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase
a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.
O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De
que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade:
seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e
que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar
o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de
mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria
a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para
a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do
fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a
água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas
mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros
de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro
na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em
que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os
filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião
estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava
um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim,
a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças
cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas,
ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida
e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!
pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

– O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

– Não foi nada, disse, sou um desajeitado.
Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
– Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

– Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços.
Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste.
É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.



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