sábado, 9 de maio de 2015

46 – Crocodilo – F. Hernandez

Felisberto Hernández (1902-1964), pianista e escritor, uruguaio de Montevidéu. Junto com Horacio Quiroga e Juan Carlos Onetti ele compõem o grande trio de contistas uruguaios. Sua obra não foi extensa mas foi marcante, reconhecida e admirada por Cortázar e Gracia Marquez.

Crocodilo
Felisberto Hernandez
Numa noite de outono, fazia um calor úmido e eu fui a uma cidade que me era quase desconhecida; a pouca luz das ruas estava atenuada pela umidade e por algumas folhas das arvores. Entrei num café que ficava perto de uma igreja, sentei-me numa mesa do fundo e fiquei pensando na vida. Eu sabia isolar as horas de felicidade e encerrar-me nelas; primeiro roubava com os olhos qualquer coisa descuidada da rua ou do interior das casas e depois a levava para minha solidão. Tinha tanto prazer em olha-la que se as pessoas soubessem teriam me odiado. Talvez não me restasse muito tempo de felicidade. Antes eu havia passado por aquelas cidades dando concertos de piano; as horas de felicidade foram escassas, pois eu vivia na angustia de reunir pessoas que quisessem aprovar a realização de um concerto; tinha de coordena-las, influencia-las e tratar de encontrar algum homem que fosse ativo. Quase sempre isso era como lutar com bêbados lentos e distraídos: quando conseguia trazer um, o outro me escapava. Além disso, eu tinha de estudar e escrever artigos nos jornais.
Fazia algum tempo que eu já não tinha essa preocupação: consegui entrar numa grande firma de meias para mulheres. Havia pensado que as meias eram mais necessárias que os concertos, e que seria mais fácil coloca-las. Um amigo meu disse ao gerente que eu tinha muitas relações femininas, porque era concertista de piano e percorrera muitas cidades: logo, poderia aproveitar a influencia dos concertos para vender meias.
O gerente torceu o nariz; mas aceitou, não só pela influência do meu amigo, mas também porque eu havia tirado o segundo prêmio no texto de propaganda para essas meias. Sua marca era Ilusão. E minha frase tinha sido: “Quem não acaricia, hoje, uma meia Ilusão?”. Mas vender meias acabava se mostrando também muito difícil para mim, e eu esperava que de um momento a outro me chamassem da matriz e me suspendessem as diárias. A principio eu fiz um grande esforço. (A venda de meias não tinha nada a ver com meus concertos: e eu tinha de me entender com ninguém menos que os comerciantes.) Quando encontrava velhos conhecidos, dizia-lhes que a representação de uma grande casa comercial me permitia viajar com independência e não obrigava meus amigos a patrocinar concertos quando não fossem oportunos. Meus concertos jamais foram oportunos. Nessa mesma cidade me apresentaram pretextos pouco comuns: o presidente do Clube estava de mau humor porque eu o havia feito levantar-se da mesa de jogo, e me disse que uma pessoa que tinha muitos parentes morrera e que metade da cidade estava de luto. Então eu lhe dizia: ficarei uns dias para ver se surge naturalmente o desejo de um concerto; mas lhes provocava má impressão o fato de que um concertista vendesse meias. E quanto a colocar meias, toda manhã eu me animava e toda noite desanimava: era como me vestir e me despir. Custava- me renovar a cada instante certa força grosseira necessária para insistir junto a comerciantes sempre apressados. Mas agora já havia me resignado a esperar que me despedissem e tratava de aproveitar enquanto duravam as diárias.
De repente reparei que entrara no café um cego com uma harpa; eu o havia visto de tarde. Decidi ir embora antes de perder a vontade de aproveitar a vida; mas ao passar perto dele tornei a vê-lo com um chapéu de abas mal dobradas e os olhos rodopiando na direção do céu, enquanto fazia esforço para tocar; algumas cordas da harpa tinham sido remendadas, e a madeira clara do instrumento e todo o homem estavam cobertos por uma gordura que eu nunca tinha visto. Pensei em mim e fiquei deprimido.
Quando acendi a luz no meu quarto do hotel, vi minha cama daqueles dias. Estava descoberta. e as varinhas niqueladas me faziam pensar numa jovem doida que se entregasse a qualquer um. Depois de deitado apaguei a luz, mas não conseguia dormir. Torne: a acende-la e a lâmpada surgiu debaixo da cúpula como o globo de um olho sob uma pálpebra escura. Apaguei-a em seguida e quis pensar no negocio das meias, mas por um momenta continuei vendo, no escuro, a cúpula. Tudo isso aconteceu no tempo que um mata-borrão levaria para absorver a tinta derramada.  
No outro dia de manha, depois de me vestir e me reanimar, fui ver se o trem da noite tinha me trazido más noticias. Não recebi carta nem telegrama. Decidi percorrer o comercio de uma das principais ruas. Na ponta dessa rua havia uma loja. Ao entrar, me vi num cômodo repleto de trapos e bagatelas até o teto. Só havia um manequim, nu, de tecido vermelho, que tinha uma maçaneta preta no lugar da cabeça. Bati palmas e todos os trapos logo absorveram o ruído. Atrás do manequim apareceu uma menina de uns dez anos que me disse, com maus modos:
– O que quer?
– O dono está?
– Não tem dono. Quem manda aqui e mamãe.
– Ela não está?
– Foi na dona Vicenta e volta logo.
Apareceu um menino de uns três anos. Agarrou-se na saia da irmã e por um momento ficaram em fila o manequim, a menina e o menino. Eu disse:
– Vou esperar.
A menina não respondeu nada. Sentei-me num caixote e comecei a brincar com o irmãozinho. Lembrei que tinha um chocolatinho dos que havia comprado no cinema e o tirei do bolso. O garotinho aproximou-se rapidamente e o tomou de mim. Então pus as mãos no rosto e fingi chorar aos soluços. Tinha tapado os olhos: abri pequenas frestas no escuro que havia no oco de minhas mãos e comecei a olhar para o menino. Ele me observava imóvel e eu chorava cada vez mais alto. Por fim ele se decidiu a por o chocolatinho no meu joelho. Então ri e o devolvi a ele. Mas ao mesmo tempo me dei conta de que eu estava com a cara molhada.
Saí de lá antes que a dona chegasse. Ao passar por uma joalheria me olhei num espelho; meus olhos estavam secos. Depois de almoçar estive no café; mas vi o cego da harpa com os olhos revirando para cima e sai em seguida. Então fui a uma praça solitária num lugar despovoado e me sentei num banco em frente a um muro com uma trepadeira. Ali pensei nas lágrimas da manha. Estava intrigado com o fato de que houvessem saído de mim; e quis estar só, como se me escondesse para fazer andar um brinquedo que, sem querer, tinha feito funcionar poucas horas antes. Tinha um pouco de vergonha, perante mim mesmo, de ter me posto a chorar sem pretexto, embora fosse de brincadeira, como havia feito de manha. Franzi o nariz e os olhos, com um pouco de timidez, para ver se me saiam as lágrimas: mas depois pensei que não deveria buscar o pranto como quem torce um pano de chão, teria de me entregar ao fato com mais sinceridade; então pus as mãos na cara. Aquela atitude teve algo de serio; me comovi inesperadamente, senti certa pena de mim mesmo e as lágrimas começaram a sair.
Fazia um tempo que eu estava chorando quando vi que de cima do muro vinham descendo duas pernas de mulher com meias Ilusão semi-brilhantes. E em seguida notei uma saia verde que se confundia com a trepadeira. Eu não tinha ouvido a escada ser colocada. A mulher estava no último degrau e eu enxuguei rapidamente as lágrimas, mas tornei a por a cabeça baixa, como se estivesse pensativo. A mulher aproximou-se com lentidão e sentou-se do meu lado. Ela tinha descido dando-me as costas e eu não sabia como era sua cara. Por fim me disse:
– O que você tem? Sou uma pessoa em quem você pode confiar...
Transcorreram alguns instantes. Franzi o cenho como que para me esconder e continuar esperando. Nunca havia feito esse gesto e minhas sobrancelhas tremiam. Depois fiz um movimento com a mão como que para começar a falar e ainda não me ocorrera nada que pudesse lhe dizer. Ela tomou de novo a palavra:
– Fale, simplesmente fale. Eu tive filhos e sei o que e penar.
Eu já havia imaginado um rosto para aquela mulher e aquela saia verde. Mas quando disse isso dos filhos e dos sofrimentos, imaginei-a outra. E ao mesmo tempo eu disse:
– A senhora precisa pensar um pouco.
Ela respondeu:
– Nesses assuntos, quanto mais se pensa, pior.
Imediatamente senti cair perto de mim um pano molhado.
Mas na verdade era uma grande folha de plátano carregada de umidade. Em pouco tempo ela voltou a perguntar:
– Diga-me a verdade, como ela é?
A principio achei graça. Depois me veio a lembrança uma namorada que eu tive. Quando eu não queria acompanha-la para caminhar pela beira de um riacho - onde ela havia passeado com o pai quando ele era vivo –, essa minha namorada chorava silenciosamente. Então, embora eu me chateasse em ter que ir sempre para o mesmo lado, condescendia. E pensando nisso me ocorreu dizer à mulher, que agora estava do meu lado:
– Ela era uma mulher que costumava chorar.
A mulher pôs as mãos grandes e meio avermelhadas sobre a saia verde e riu, enquanto me dizia:
– Vocês sempre acreditam nas lágrimas das mulheres.
Pensei nas minhas; senti-me um pouco desconcertado, levantei-me do banco e disse:
– Acho que a senhora está enganada. Mas da mesma forma agradeço seu consolo.
E fui embora sem olhar para ela.
No outro dia, quando a manhã já ia bastante adiantada, entrei numa das lojas mais importantes. O dono estendeu minhas meias no balcão e ficou acariciando-as com seus dedos quadrados um bom tempo. Parecia não ouvir as minhas palavras. Tinha as suíças encanecidas como se tivesse esquecido nelas o creme de barbear. Nesse instante entraram varias mulheres; e ele, antes de ir, fez que não compraria, com um dos dedos que tinham acariciado as meias. Eu fiquei quieto e pensei em insistir; talvez pudesse me entender com ele, mais tarde, quando não houvesse gente: então lhe falaria de uma erva que, dissolvida n’água lhe tingiria as suíças. As pessoas não iam embora e eu tinha uma impaciência que não era costumeira: queria sair daquela loja, daquela cidade e daquela vida. Pensei em meu pais e em muitas coisas mais. E de repente, quando já estava me tranquilizando, tive uma ideia: “O que aconteceria se eu começasse a chorar aqui, diante dessa gente toda?”. Aquilo me pareceu muito violento; mas eu sentia o desejo, desde algum tempo, de tatear o mundo com algum fato não costumeiro; além disso, eu devia demonstrar para mim mesmo que era capaz de uma grande violência. E antes de me arrepender, sentei-me numa cadeira que estava recostada no balcão; e, rodeado de gente, pus as mãos na cara, e comecei a fazer barulho de soluços. Quase simultaneamente uma mulher deu um grito e disse: “Um homem esta chorando”. E depois ouvi o alvoroço e pedaços de conversa: “Não se aproxime, menina”... “Pode ter recebido alguma má noticia”... “O trem acabou de chegar e ele perdeu a baldeação”... “Pode ter recebido a noticia por telegrama”... Por entre os dedos vi uma gorda que dizia: “E preciso ver como esta o mundo. Se meus filhos não viessem me ver, eu também estaria chorando”. No começo fiquei desesperado porque as lágrimas não me vinham, e até pensei que tomariam como uma trapaça e me levariam preso. Mas a angustia e a força tremenda que fiz me congestionaram e as primeiras lágrimas foram possíveis. Senti uma mão pesada pousar em meu ombro e ao ouvir a voz do dono reconheci os dedos que haviam acariciado as meias. Ele dizia:
- Mas, companheiro, um homem tem de ter mais animo...
Então me levantei como que por efeito de uma mola; tirei as duas mãos do rosto e a terceira que tinha no ombro, e disse, com a cara ainda molhada:
– Mas se me faz bem! E tenho muito animo! O que acontece e que as vezes me da isso; e como uma lembrança...
Apesar da expectativa e do silencio que fizeram para minhas palavras, ouvi que uma mulher dizia:
– Ai! Esta chorando por uma lembrança...
Depois o dono anunciou:
– Senhoras, já passou.
Eu sorria e limpava o rosto. Em seguida o amontoado de gente se desfez e apareceu uma mulher pequenina, com olhos de louca, que me disse:
– Eu conheço o senhor. Me parece que o vi em outro lugar, e que o senhor estava agitado.
Pensei que ela teria me visto num concerto, sacudindo- me num final de programa, mas calei a boca. A conversa de todas as mulheres disparou e algumas começaram a ir embora. Ficou comigo a que me conhecia. E se aproximou outra, que me disse:
– Já sei que o senhor vende meias. Por acaso, eu e algumas amigas minhas...
O dono interveio:
– Nao se preocupe. senhora. (E, dirigindo-se a mim:) Venha hoje a tarde.
– Vou embora depois do almoço. Quer duas dúzias?
– Não, fico com meia dúzia...
– A firma não vende menos de uma...
Puxei a caderneta de vendas e comecei a preencher a folha do pedido, escrevendo contra o vidro de uma porta e sem me aproximar do dono. Estava rodeado de mulheres conversando alto. Eu tinha medo que o dono se arrependesse. Por fim assinou o pedido e eu sal junto aos demais.
Rapidamente se soube que me acontecia “aquilo” que a principio era como uma lembrança. Eu chorei noutras lojas e vendi mais meias que de costume. Quando já havia chorado em varias cidades, minhas vendas eram como as de qualquer outro vendedor.
Uma vez me mandaram chamar da matriz - eu já tinha chorado por todo o norte do pais eu esperava minha vez para falar com o gerente e ouvi do cômodo contiguo o que dizia outro vendedor:
– Eu faço o que posso, mas não vou começar a chorar para comprarem!
E a voz doentia do gerente lhe respondeu:
– E preciso fazer qualquer coisa, e também chorar para eles...
O vendedor interrompeu:
– Mas de mim não saem lágrimas!
E depois de um silencio, o gerente:
– Como e quem lhe disse?
– Isso mesmo! Tem um que chora aos jorros...
A voz doentia começou a rir com esforço e fazendo intervalos de tosse. Depois ouvi murmúrios e passos se afastando.
Passado um tempo, me chamaram e me fizeram chorar diante do gerente, dos chefes de seção e de outros empregados. No começo, quando o gerente me mandou entrar e as coisas ficaram mais claras, ele ria dolorosamente e lhe brotavam lágrimas. Pediu-me, com muito bons modos, uma demonstração e assim que concordei, entraram uns empregados que estavam atrás da porta. Fez-se muito alvoroço, e me pediram que ainda não chorasse. Atrás de um biombo, ouvi dizer:
– Rápido, que um dos vendedores vai chorar.
– E por que?
– E eu vou saber?!
Eu estava sentado ao lado do gerente, no seu grande escritório; tinham chamado um dos donos, mas ele não podia ir. Os rapazes não se calavam e um havia gritado: “Pensa na mamãezinha, assim você chora mais depressa”. Então eu disse ao gerente:
– Quando eles fizerem silencio, eu choro.
Ele, com sua voz de doente, os ameaçou e, depois de alguns instantes de relativo silencio, olhei a copa de uma arvore por uma janela - estávamos no primeiro andar -, pus as mãos no rosto e tratei de chorar. Tinha certo desgosto. Sempre que eu havia chorado, os demais ignoravam meus sentimentos, mas aquelas pessoas sabiam que eu choraria e isso me inibia. Quando por fim me vieram as lágrimas, tirei uma mão do rosto para pegar o lenço e para que vissem minha cara molhada. Uns riam e outros ficavam sérios; então sacudi o rosto violentamente e todos riram. Mas em seguida fizeram silencio e começaram a rir. Eu enxugava as lágrimas enquanto a voz de doente repetia: "Muito bem, muito bem". Talvez todos estivessem decepcionados. E eu me sentia como uma garrafa vazia e suja; queria reagir, estava de mau humor e com vontade de ser mau. Então cheguei ate o gerente e disse a ele:
– Não gostaria que nenhum deles utilizasse o mesmo procedimento para a venda de meias, e desejaria que a casa reconhecesse a minha... iniciativa, e que me desse exclusividade por algum tempo.
– Volte amanha e falaremos disso.
No outro dia o secretario já havia preparado o documento e lia: “A casa se compromete a não utilizar e a fazer respeitar o sistema de propaganda que consiste em chorar...”. Aqui os dois começaram a rir e o gerente disse que aquilo não estava bem. Enquanto redigiam o documento, fui passeando ate o balcão. Atrás dele havia uma moça que falou comigo olhando para mim, e os olhos pareciam pintados por dentro.
– Então, quer dizer que o senhor chora por gosto?
– É verdade.
– Então eu sei mais do que o senhor. O senhor mesmo não sabe que sofre por alguma coisa.
A principio eu fiquei pensativo e depois disse a ela:
– Olhe: não e que eu tenha descoberto a felicidade, mas sei me entender com minha desgraça e sou quase feliz.
Enquanto ia embora - o gerente estava me chamando - ainda pude ver o olhar dela: tinha-o posto em cima de mim como se tivesse deixado uma mão no meu ombro.
Quando voltei as vendas, estava numa cidade pequena. Era um dia triste e eu não tinha vontade de chorar. Queria ficar só, no meu quarto, ouvindo a chuva e pensando que a agua me separava de todo o mundo. Eu viajava escondido atrás de uma careta de lágrimas; mas o rosto não estava cansado.
De repente senti que alguém se aproximara perguntando- me:
- O que esta acontecendo?
Então eu, como um empregado que e surpreendido sem trabalhar, quis retomar minha tarefa e, pondo as mãos no rosto, comecei a soluçar.
Naquele ano, chorei até dezembro, deixei de chorar em janeiro e parte de fevereiro, comecei a chorar de novo depois do carnaval. Esse descanso me fez bem e tornei a chorar com vontade. Nesse meio tempo, eu havia estranhado o êxito das minhas lágrimas e nascera em mim um certo orgulho de chorar. Os vendedores eram muitos mais; mas um ator que representasse algo sem aviso prévio e convencesse o publico com prantos...
Naquele novo ano eu comecei a chorar pelo oeste e cheguei a uma cidade onde meus concertos fizeram sucesso; na segunda vez que lá estive. o publico havia me recebido com uma ovação carinhosa e prolongada: eu agradecia parado junto ao piano e não me deixavam me sentar para iniciar o concerto. Com certeza agora daria, pelo menos, uma audição. Chorei ali, pela primeira vez, no hotel mais luxuoso; foi na hora do almoço e num dia radiante. Já havia comido e tomado café quando. os cotovelos na mesa, cobri o rosto com as mãos. Em poucos instantes, aproximaram-se alguns amigos que eu tinha cumprimentado; deixei-os parados algum tempo e enquanto isso, uma pobre velha - que não sei de onde havia saído - sentou-se a minha mesa, e eu a olhava através dos dedos já molhados. Ela baixava a cabeça e não dizia nada; mas tinha uma cara tão triste que dava vontade de começar a chorar...
No dia em que dei meu primeiro concerto sentia certo nervosismo que me vinha do cansaço; estava na ultima obra da primeira parte do programa e toquei um dos movimentos com demasiada velocidade; já havia tentado me deter; mas fiquei mais desajeitado e não tinha equilíbrio suficiente nem força; não me restou outro recurso senão continuar; mas minhas mãos iam ficando cansadas, eu perdia nitidez, e me dei conta de que não chegaria ao final. Então, antes de pensa-lo, já havia tirado as mãos do teclado e as tinha na cara; era a primeira vez que chorava em cena.
A principio houve murmúrios de surpresa, e não sei por que alguém tentou aplaudir; mas outros vaiaram e eu me levantei. Tapava os olhos com uma mão e com a outra tateava o piano e tratava de sair de cena. Algumas mulheres gritaram pois julgaram que eu cairia na plateia; e eu já ia passar por uma porta do cenário quando alguém me gritou la do galinheiro:
– Crocodilooooo!
Ouvi risadas; mas fui para o camarim, lavei o rosto e apareci em seguida. e com as mãos frescas terminei a primeira parte. Ao final muitas pessoas vieram me cumprimentar e comentou-se essa coisa do “crocodilo”. Eu lhes dizia:
– Acho que quem me gritou isso tem razão: na verdade eu não sei por que choro; o choro vem e não tem remédio; talvez seja tão natural para mim quanto para o crocodilo. Enfim, também não sei por que chora o crocodilo.
Uma das pessoas que haviam me apresentado tinha a cabeça alongada; e como se penteava deixando o cabelo espetado, a cabeça fazia pensar numa escova. Outro da roda o apontou e me disse:
– O amigo aqui é medico. O que diz, doutor?
Fiquei pálido. Ele me olhou com olhos de investigador policial e me perguntou:
– Diga-me uma coisa: quando e que o senhor chora mais, de dia ou de noite?
Lembrei que nunca chorava de noite porque a essa hora não vendia, e respondi:
– Choro unicamente de dia.
Não me lembro das outras perguntas. Mas por fim me aconselhou:
– Não coma came. O senhor tem uma velha intoxicação.
Dali a poucos dias deram uma festa para mim no clube principal. Aluguei um fraque com colete branco impecável e enquanto me olhava no espelho, pensava: “Não dirão que este crocodilo não tem barriga branca. Caramba! Acho que esse bicho tem uma papada como a minha. E é voraz...”.
Ao chegar a Clube encontrei pouca gente. Então percebi que havia chegado cedo demais. Vi um senhor da comissão e disse-lhe que desejava trabalhar um pouco no piano. Desse modo dissimularia o fato de ter me adiantado. Passamos por uma cortina verde e me vi numa grande sala vazia e preparada para o baile. Diante da cortina e no outro extremo da sala estava o piano. Acompanharam-me ate lá o senhor da comissão e o porteiro; enquanto abriam o piano, o senhor - que tinha sobrancelhas pretas e cabelo branco - me dizia que a festa teria muito sucesso, que o diretor do ginásio - amigo meu - faria um discurso muito bonito e que ele já o tinha escutado; procurou lembrar-se de algumas frases, mas depois decidiu que seria melhor não me dizer nada. Pus as mãos no piano e eles se foram. Enquanto tocava, pensei: “Esta noite não vou chorar... ficaria muito feio... o diretor do ginásio e capaz de desejar que eu chore para demonstrar o sucesso do discurso dele. Mas eu não vou chorar por nada deste mundo”.
Fazia tempo que via a cortina verde se mexer; e de repente saiu do meio de suas pregas uma moça alta e de cabelos soltos; fechou os olhos como que para enxergar de longe; olhava para mim e vinha em minha direção, trazendo algo na mão; atrás dela apareceu uma criada que a alcançou e começou a lhe falar de perto. Aproveitei para olhar suas pernas e notei que ela havia posto uma meia só; a cada instante, fazia movimentos que indicavam o fim da conversa; mas a criada continuava falando com ela e as duas voltavam ao assunto como a uma guloseima. Eu continuei tocando o piano e enquanto elas conversavam tive tempo de pensar: “O que será que ela quer com a meia assim?... Vai ver que não ficou boa, e sabendo que sou vendedor...? E logo agora, nesta festa!”.
Veio, por fim, e me disse:
– Com licença, senhor, gostaria que assinasse uma meia para mim.
Primeiro eu ri; e em seguida, tratei de falar com ela como se já tivessem me feito esse pedido outra vezes. Comecei a explicar que a meia e que não resistia a caneta; eu já havia solucionado isso assinando uma etiqueta que depois a interessada colava na meia. Mas enquanto dava essas explicações, demonstrava a experiência de um antigo comerciante que depois se teria feito pianista. A angustia já começava a me invadir quando ela se sentou no banco do piano e, ao vestir a meia, me dizia:
– E uma pena que o senhor tenha me saído tão mentiroso... devia ter me agradecido pela ideia.
Eu havia posto os olhos nas suas pernas; depois os tirei e minhas ideias travaram. Fez-se um silencio de mal-estar. Ela, com a cabeça inclinada, deixava escorrer o cabelo; e debaixo daquela cortina loira as mãos se moviam como se fugissem. Eu continuava calado e ela não terminava nunca. Por fim, a perna fez um movimento de dança, e no pé, em ponta, calçou o sapato na hora de se levantar, as mãos recolheram o cabelo, ela me fez um cumprimento silencioso e foi embora.
Quando começou a entrar gente, fui para o bar. Pensei em pedir uísque. 0 garçom m enumerou muitas marcas, e como eu não conhecia nenhuma, disse a ele:
– Dê-me dessa ultima.
Subi num banco do balcão e procurei não enrugar a cauda do fraque. Em vez de crocodilo, devia estar parecendo um papagaio negro. Estava calado, pensava na moça da meia, e a lembrança de suas mãos apressadas me deixava transtornado.
Senti-me levado para o salão pelo diretor do ginásio. Suspendeu-se o baile por um momento e ele fez seu discurso. Pronunciou varias vezes as palavras “avatares” e “mister”. Quando aplaudiram, levantei os bravos como um regente de orquestra antes de “atacar” e, assim que fizeram silencio, eu disse:
– Agora que devia chorar, não consigo. Também não consigo falar e não quero deixar separados por mais tempo os que hão de se juntar para dançar. - E terminei fazendo um salamaleque.
Depois de minha volta, abracei o diretor do ginásio; por cima de seu ombro via a moça da meia. Ela sorriu para mim, levantou a saia do lado esquerdo e me mostrou o lugar da meia onde havia colado um pequeno retrato meu recortado de um programa. Sorri, cheio de alegria, mas disse uma idiotice que todo mundo repetiu:
– Muito bem, muito bem, a perna do coração.
No entanto, me senti feliz e fui ao bar. Subi de novo num banco e o garçom me perguntou:
– Uísque Cavalo Branco?
E eu, com um gesto de mosqueteiro puxando a espada:
– Cavalo Branco ou Papagaio Negro.
Em pouco tempo veio um rapaz com uma mão escondida nas costas:
– Pocho me disse que o senhor não se importa que o chamem de “Crocodilo”.
– E verdade, eu gosto.
Então ele tirou a mão das costas e me mostrou uma caricatura. Era um grande crocodilo, muito parecido comigo; tinha uma pequena mão na boca, em que os dentes eram o teclado; e na outra mão trazia uma meia dependurada; com ela enxugava as lágrimas.
Quando os amigos me levaram para o hotel, eu pensava em tudo o que havia chorado naquele pais e sentia um prazer maligno em te-los enganado; considerava-me um burguês da angustia. Mas quando fiquei só no meu quarto, me ocorreu algo inesperado: primeiro me olhei no espelho; tinha a caricatura na mão e olhava alternadamente para o crocodilo e para o meu rosto. De repente, e sem ter me proposto imitar o crocodilo, minha cara, por conta própria, se pôs a chorar. Eu a olhava como a uma irmã de quem ignorava a desgraça. Tinha rugas novas e por entre elas corriam as lágrimas. Apaguei a luz e me deitei. Minha cara continuava chorando; as lágrimas resvalavam pelo nariz e caiam pelo travesseiro. E assim adormeci. Quando despertei. senti a ardência das lágrimas que haviam secado. Quis me levantar e lavar os olhos: mas tive medo de que a cara começasse a chorar de novo. Fiquei quieto e girava os olhos na escuridão, como aquele cego que tocava harpa.


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