“O jardim dos caminhos que se bifurcam de J.L.
Borges(1889-1986) O genial escritor argentino, muitas vezes intimida leitores
pela complexidade e profundidade de seus textos mas este conto pode ser lido com relativa facilidade. Na
superfície traz um engenhoso enredo de espionagem e mistério, mas nele Borges
ignora os padrões de conto de E. A. Poe – onde todos os elementos contribuem
para uma única historia – e leva o leitor a percorrer múltiplos níveis de
reflexão com seu conceito de um labirinto infinito construído a partir de múltiplas bifurcações.
A seguir o texto em português e se quiser ler o
original em espanhol: http://www.literatura.us/borges/jardin.html
O jardim de caminhos que se bifurcam
Jorge Luís Borges
a Victoria
Ocampo
Na pagina 22 da Historia da Guerra Européia, de Liddell Hart, lê-se que
uma ofensiva de treze divisões britânicas (apoiadas por mil e quatrocentas
peças de artilharia) contra a linha de Serre-Moutauban tinha sido planejada
para o dia vinte e quatro de julho de 1916 e teve que ser adiada até a manhã do
dia vinte e nove. As chuvas torrenciais (anota o Cap. Liddell Hart) provocaram
essa delonga – nada significativo, por certo. A seguinte declaração, ditada,
relida e assinada pelo Dr. Yu Tusun, antigo catedrático de inglês na Hochschule
de Tsingatao, projeta uma insuspeitada luz sobre o caso. Faltam as duas páginas
iniciais.
“... e pendurei o fone. Imediatamente após, reconheci a voz que havia
respondido em alemão. Era a do Cap. Richard Madden. Madden no apartamento de
Viktor Runeberg, significava o fim de nossos afãs e – mas isso parecia muito
secundário, ou devia parecer-me – também de nossas vidas. Queria dizer que
Runenberg tinha sido detido, ou assassinado?* Antes que o sol desse dia declinasse, eu
sofreria a mesma sorte. Madden era implacável . Ou melhor, estava obrigado a
ser implacável. Irlandês às ordens da Inglaterra, homem acusado de tibieza e
talvez de traição, como não abraçar e agradecer esse milagroso favor: a
descoberta, a captura, quem sabe a morte, de dois agentes do Império Alemão?
Subi ao meu quarto; absurdamente fechei a porta a chave e atirei-me de costas
na estreita cama de ferro. Na janela mostravam-se os telhados de sempre e o sol
nublado das seis. Pareceu-me incrível que esse dia sem premonições ou símbolos
fosse o de minha morte implacável. Apesar de meu pai haver morrido, apesar de
ter sido um menino num simétrico jardim de Hai Feng, eu, agora, ia morrer?
Depois refleti que todas as coisas nos acontecem precisamente, precisamente
agora. Século de século e apenas no presente ocorrem os fatos; inumeráveis
homens no ar, na terra e mar, e tudo o que realmente sucede; sucede a mim... A
quase intolerável lembrança do rosto acavalado de Madden aboliu essas
divagações. Em meio ao meu ódio e meu terror (no momento não me importa falar
de terror: agora que enganei Richard Madden, agora que minha garganta anseia
pela corda) pensei que esse guerreiro tumultuoso e sem dúvida feliz não
suspeitava que eu possuísse o Segredo. O
nome do exato lugar do novo parque
britânico e artilharia sobre o Ancre. Um pássaro riscou o céu cinza e cegamente
tomei-o por um aeroplano e a esse aeroplano por muitos (no céu francês)
aniquilando o parque de artilharia com bombas verticais. Se minha boca; antes
que a desfizesse um balanço, pudesse gritar esse nome de modo que o escutassem
na Alemanha... Minha voz era muito fraca. Como fazê-la chegar ao ouvido do
Chefe? Ao ouvido daquele homem doente e
odioso, que nada sabia de Runeberg e de mim a não ser que estávamos em
Staffordshire e inutilmente esperava noticias nossas em seu árido escritório de
Berlim, examinando infinitamente jornais... Disse em voz alta: Devo fugir.
Incorporei-me sem barulho, numa oca perfeição de silencio, como se Madden já
estivesse espreitando. Algo – talvez a mera ostentação de provar que meus
recursos eram nulos – fez me revistar meus bolsos. Encontrei o que sabia que ia
encontrar. O relógio norte-americano, a corrente de níquel e a moeda
quadrangular, o chaveiro com as comprometedoras chaves inúteis do apartamento
de Runeberg, a caderneta, uma carta que resolvi destruir imediatamente (e que
não destruí), uma coroa, dois xelins e uns pennies, o lápis vermelho-azul, o
lenço, o revólver com uma bala. Absurdamente o empunhei e sopesei para dar-me
coragem. Pensei vagamente que um tiro de pistola pode ser ouvido bem longe. Em
dez minutos meu plano estava maduro. O guia telefônico forneceu-me o nome da
única pessoa capaz de transmitir a noticia: vivia num subúrbio de Fenton, a
menos de meia hora de trem.
Sou um homem covarde. Agora o digo, agora que levei a termo um plano que
ninguém deixará de qualificar de arriscado. Sei que foi terrível sua execução.
Não o fiz pela Alemanha, não. Pouco me importa um país bárbaro, que me obrigou
à abjeção de ser um espião. Ademais, eu
sei de um homem da Inglaterra – homem modesto – que para mim não representa
menos que Goethe. Não falei com ele mais de uma hora, mas durante uma hora foi
Goethe... Eu fiz isso, porque sentia que o Chefe temia um pouco aos de minha
raça – aos inumeráveis antepassados que em mim confluem. Eu queria provar-lhe
que um amarelo podia salvar exércitos. De resto, devia fugir do capitão. Suas
mãos e sua voz podiam bater-me à porta a qualquer momento. Vesti-me sem ruído,
disse-me adeus no espelho, desci, esquadrinhei a rua tranquila e sai. A estação não ficava longe de casa,
mas achei preferível tomar um carro. Argui que assim corria menos perigo de ser
reconhecido; o fato é que na rua deserta eu me sentia visível e vulnerável,
infinitamente. Lembro-me de ter dito ao chofer que se detivesse um pouco antes
da entrada central. Desci com lentidão voluntária e quase penosa; ia à aldeia
de Ashgrove, mas retirei uma passagem para uma estação mais longe. O trem saia
dentro de pouquíssimo minutos, às oito e cinqüenta. Apressei-me; o próximo
partia às nove e meia. Não havia quase ninguém na plataforma. Percorri os
vagões: recordo uns lavradores, uma mulher de luto, um jovem que lia fervoroso
os Anais de Tácito, um soldado ferido e feliz. Os vagões, por fim, arrancaram.
Um homem que reconheci correu em vão ate o limite da plataforma. Era o Cap
Richard Madden. Aniquiliado, trêmulo, , encolhi-me noutra ponta do assento,
longe da temida janela.
Dessa aniquilação passei a uma felicidade quase abjeta. Disse-me que já
estava empenhada minha luta e que ganhara o primeiro assalto, ao iludir, ainda
que por quarenta minutos, ainda que por favor da sorte, o ataque de meu
adversário. Argui que essa vitória mínima prefigurava a vitória total. Arqui
que não era mínima, já que sem essa diferença preciosa que o horário dos trens
me oferecia, eu estaria no cárcere ou morto.
Argui ( não menos sofisticadamente) que minha felicidade covarde provava
que eu era homem capaz de levar a bom termo a aventura. Dessa fraqueza tirei
forças que não me abandonaram. Prevejo que o homem se resignará diariamente a
empresas mais atrozes; breve só haverá guerreiros e bandoleiros, dou-lhes este
conselho: O executor de uma empresa atroz deve imaginar que já a cumpriu, deve
impor-se um futuro que seja irrevogável com o passado. Assim procedi, enquanto meus olhos de homem
já morto registravam o fluir daquele dia que era talvez o último, e a difusão
da noite. O trem corria como doçura, entre freixos. Deteve-se, quase ao meio do
campo. Ninguém gritou o nome da estação.
Ashgrove? – perguntei a uns meninos na plataforma. Ashgrove, responderam.
Desci.
Uma lâmpada aclarava a plataforma, mas o rostos dos meninos ficavam na
zona da sombra. Um me perguntou: O senhor vai à casa do Dr. Stephen Albert? Sem
aguardar resposta, outro disse: A casa fica longe daqui, mas o senhor não se
perderá se tomar esse caminho à esquerda e se em cada encruzilhada do caminho
dobrar à esquerda. Atirei-lhes uma moeda
(a última), desci uns degraus de pedra e entrei no solitário caminho. Este,
lentamente, descia. Era de terra elementar, confundiam-se no alto os ramos, a
lua baixa e circular parecia acompanhar-me.
Por um instante, pensei
que Richard Madden havia de algum modo penetrado em minhas desesperadas intenções. Logo
compreendi que isso era impossível. O conselho de sempre dobrar à esquerda
lembrou-se que tal era o procedimento comum para descobrir o pátio central de
certos labirintos. Entendo alguma coisa de labirintos: não é em vão que sou
bisneto daquele Ts'ui Pen, que foi governador de Yunnan e que renunciou ao
poder temporal para escrever um romance que fosse ainda mais populoso que o
Hung Lu Meng e para edificar um labirinto em que todos os homens se perdessem.
Treze anos dedicou a esses heterogêneos
trabalhos, porém a mão de um forasteiro o assassinou e seu romance era
insensato e ninguém encontrou o labirinto. Sob árvores inglesas meditei nesse
labirinto perdido: imaginei-o inviolado e perfeito no cume secreto de uma
montanha, imaginei-o disfarçado por arrozais ou debaixo d'água, imaginei-o
infinito, não já de quiosques oitavados e de caminhos que voltam, mas sim de
rios e províncias e reinos... Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso
labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de
algum modo, os astros. Absorto nessas imagens ilusórias, esqueci meu destino de
perseguido. Senti-me, por um tempo indeterminado, conhecedor abstrato do mundo.
O vago e vivo campo, a lua, os restos da tarde, agiram sobre mim; também o
declive que eliminava qualquer possibilidade de cansaço. A tarde era íntima,
infinita. O caminho descia e se bifurcava, entre várzeas indistintas. Uma
música aguda e como que silábica aproximava-se e afastava-se no vaivém do
vento, turvada de folhas e de distância. Pensei que um homem pode ser inimigo
de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país: não
de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes. Cheguei, assim, a um
alto portão enferrujado. Entre as grades de ferro decifrei uma alameda e uma
espécie de pavilhão. Compreendi, logo. duas coisas, a primeira trivial, a
segunda quase incrível: a música vinda do pavilhão, a música era chinesa. Por
isso eu a aceitara com plenitude, sem prestar-lhe atenção. Não recordo se havia
uma sineta ou uma campainha ou se chamei batendo palmas. A contínua vibração da
música prosseguiu.
Mas do fundo da
aconchegante casa uma lanterna se aproximava: uma lanterna que os troncos
riscavam e por instantes anulavam, uma lanterna de papel, que tinha a forma dos tambores e a cor da lua. Um homem
alto a trazia. Não vi seu rosto, porque a luz me cegava. Abriu o portão e disse
lentamente no meu idioma:
_ Vejo que o piedoso
Hsi P'eng se empenha em corrigir minha solidão. O senhor sem dúvida desejará
ver o jardim?
Reconheci o nome de um
de nossos cônsules e repeti desconcertado:
_ O jardim?
_ O jardim de caminhos
que se bifurcam.
Alguma coisa se agitou
em minha lembrança e pronunciei com incompreensível segurança:
_ O jardim de meu
antepassado Ts'uui Pen.
_ Seu antepassado? Seu
ilustre antepassado? Avante.
O úmido caminho
ziguezagueava como os de minha infância. Chegamos a uma biblioteca de livros
orientais e ocidentais. Reconheci, encadernados em seda amarela, alguns volumes
manuscritos da Enciclopédia Perdida que o Terceiro Imperador da Dinastia
Luminosa orientou e que nunca foi publicada. O disco do gramofone girava junto
a um fênix de bronze. Lembro-me também de um jarrão rosa da família e outro, anterior
de muitos séculos, dessa cor azul que nossos artífices copiaram dos oleiros da
Pérsia...
Stephen Albert
observava-me, sorridente. Era (já o disse) muito alto, de feições afiladas, de
olhos cinzentos e barba cinzenta. algo de sacerdote havia nele e também de
marítimo; depois me referiu que fora missionário em Tientsin 'antes de aspirar
a sinólogo'.
Sentamo-nos; eu num
comprido e baixo divã; ele de costas à janela e a um alto relógio circular.
Calculei que meu perseguidor Richard Madden, antes de uma hora não chegaria.
minha determinação irrevogável podia esperar.
– Assombroso destino o
de Ts'ui Pen - disse Stephen Albert. - Governador de sua província natal, douto
em astronomia, em astrologia e na interpretação infatigável dos livros
canônicos, enxadrista, famoso poeta e calígrafo: abandonou tudo para compor um
livro e um labirinto. Renunciou aos prazeres da opressão, da justiça, do
numeroso leito, dos banquetes e ainda da erudição e enclausurou-se durante
treze anos no Pavilhão Límpida Solidão. Ao morrer, os herdeiros só encontraram
manuscritos caóticos. A família, como talvez o senhor não ignore, quis
adjudicá-los ao fogo; mas seu testamenteiro - um monge taoísta ou budista -
insistiu na publicação.
– Os do sangue de
Ts'sui Pen - respondi - continuamos execrando a esse monge. Essa publicação foi
insensata. O livro é um acervo indeciso de apontamentos contraditórios.
Examinei-o certa vez: no terceiro capítulo morre o herói, no quarto está vivo.
Quanto à outra empresa de Ts'ui Pen, ao seu Labirinto...
– Aqui está o Labirinto
- disse indicando-me uma alta escrivaninha laqueada.
– Um labirinto de
marfim! - exclamei. - Um labirinto mínimo...
– Um labirinto de
símbolos - corrigiu. - Um invisível labirinto de tempo. A mim, bárbaro inglês,
foi-me dado revelar esse diáfano mistério. Ao fim de mais de cem anos, os
pormenores são irrecuperáveis, mas não é
difícil conjeturar o que sucedeu.
Ts'sui Pen teria dito uma vez: Retiro-me para escrever um livro. E
outra: Retiro-me para construir um labirinto. Todos imaginaram duas obras;
ninguém pensou que livro e labirinto eram um só objeto. O Pavilhão da Límpida
Solidão erguia-se no centro de um jardim talvez intrincado; essa circunstância
pode ter sugerido aos homens um labirinto físico. Ts'sui Pen morreu; ninguém,
nas dilatadas terras que foram suas, achou o labirinto. Duas situações
trouxeram-se a exata solução do problema. Uma: a curiosa lenda de que Ts'suiu
Pen se propusera um labirinto que fosse estritamente infinito. Outra: um
fragmento de uma carta que descobri.
Albert levantou-se.
Volveu-me, por uns instantes, as costas; abriu a gaveta da áurea e enegrecida
escrivaninha. Voltou com um papel antes carmesim; agora rosado e tênue e
quadriculado. Era justo o renome caligráfico de Ts'sui Pen. Li com incompreensão
e fervor estas palavras que com minucioso pincel redigira um homem de meu
sangue: Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de caminhos que se
bifurcam. Devolvi em silêncio a folha. Albert continuou:
– Antes de exumar esta
carta, eu tinha me perguntado de que maneira um livro pode ser infinito. Não
conjeturei outro processo que o de um volume cíclico, circular. Um volume cuja
última página fosse idêntica à primeira, com possibilidade de continuar
indefinidamente. Recordei também aquela noite que está no centro das Mil e Uma
Noites, quando a Rainha Scheherazade (por uma mágica distração do copista)
põe-se a referi textualmente a história das '1001 Noites', com risco de chegar
outra vez à noite na qual está fazendo o relato, e assim até o infinito.
Imaginei também uma obra platônica, hereditária, transmitida de pai para filho,
na qual cada novo indivíduo aditasse um capítulo ou corrigisse com piedoso
cuidado a página dos antepassados. Essas
conjeturas distraíram-me; mas nenhuma parecia corresponder, ainda que de um
modo distante, aos contraditórios capítulos de Ts'sui Pen. Nessa perplexidade,
remeteram-me de Oxford o manuscrito que o senhor examinou. Detive-me, como é
natural, na frase: Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de
caminhos que se bifurcam. Quase de imediato compreendi: o jardim de caminhos
que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (não a todos)
sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço. A releitura geral da
obra confirmou essa teoria. Em todas as ficções, cada vez que um homem se
defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do
quase inextricável Ts'sui Pen, opta - simultaneamente - por todas. Cria, assim,
diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam. Daí as
contradições do romance, Fang, digamos, tem um segredo; um desconhecido chama à
sua porta; Fang pode matar o intruso, o intruso pode matar Fang, ambos podem
salvar-se, ambos podem morrer, etc. Na obra de Ts'sui Pen, todos os desfechos ocorrem;
cada um é o ponto de partida de outras bifurcações. Às vezes, os caminhos desse
labirinto convergem: por exemplo, o senhor chega a esta casa, mas num dos
passados possíveis o senhor é meu inimigo, em outro meu amigo. Se o senhor se
resignar à minha pronúncia incurável, leremos algumas páginas.
Seu rosto, no vívido
círculo da lâmpada, era sem dúvida o de um ancião, mas com algo inquebrável e
ainda imortal. Leu com lenta precisão duas versões de um mesmo capítulo épico.
Na primeira, um exército marcha para uma batalha através de uma montanha
deserta; o horror das pedras e da sombra leva-o a menosprezar a vida e consegue
facilmente a vitória; na segunda, o mesmo exército atravessa um palácio onde há
uma festa; resplandecente batalha se lhe afigura uma continuação da festa e
obtém a vitória. Eu escutava com
apropriada veneração essas velhas ficções, talvez menos admiráveis que o fato
de terem sido ideadas pelo meu sangue e que um homem de um império remoto as
restituísse a mim, no curso de uma desesperada aventura, numa ilha ocidental.
Lembro-me das palavras finais, repetidas em cada versão como um mandamento
secreto: Assim como combateram os heróis, tranqüilo o admirável coração,
violenta a espada, resignados a matar e morrer.
A partir desse
instante, senti ao meu redor e no meu pobre corpo uma invisível, intangível
pululação. Não a pululação dos divergentes, paralelos e finalmente coalescentes
exércitos, porém uma agitação mais inacessível, mais íntima e que eles de certo
modo prefiguravam. Stephen Albert continuou:
– Não acredito que seu
ilustre antepassado brincasse ociosamente com as variações. Não julgo
verossímil que sacrificasse treze anos à infinita execução de um experimento
retórico. Em seu país, o romance é um gênero subalterno; naquele tempo era um
gênero desprezível. Ts´sui Pen foi um romancista genial, mas também foi um
homem de letras que sem dúvida não se considerou um simples romancista. O
testemunho de seus contemporâneos proclama – e fartamente o confirma sua vida –
suas inclinações metafísicas, místicas. A controvérsia filosófica usurpa boa
parte do romance. Sei que de todos os problemas, nenhum o inquietou e ocupou
como o abismal problema do tempo. Pois bem, esse é o único problema que não
figura nas páginas do jardim. Nem sequer emprega a palavra que significa tempo.
Como explica o senhor essa voluntária omissão?
Propus várias soluções:
todas, insuficientes. Discutimo-las; por fim, Stephen Albert disse-me:
– Numa charada cujo
tema é o xadrez, qual seria a única palavra proibida? – Pensei um momento e
repliquei:
– A palavra xadrez.
– Exatamente – falou
Albert. _ O jardim de caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou
parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção desse
nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases
evidentes, é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que
preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts´sui
Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi erros que a negligência dos
copistas introduziu, conjeturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei
restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa
uma só vez a palavra tempo. A explicação é óbvia: O jardim de caminhos que se
bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o
concebia Ts´sui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu
antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em
infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos
divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam,
se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as
possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor
e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso
favorável me surpreende, o senhor chegou a minha casa; noutro, o senhor ao
atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas mesmas palavras,
mas sou um erro, um fantasma.
– Em todos – articulei
com um certo temor – agradeço e venero sua recriação do jardim de Ts´ui Pen.
– Não em todos _
murmurou com um sorriso. _ O tempo se bifurca perpetuamente para inumeráveis
futuros. Num deles sou seu inimigo.
Voltei a sentir aquela
pululação de que falei. Pareceu-me que o úmido jardim que rodeava a casa estava
saturado até o infinito de pessoas invisíveis. Essas pessoas eram Albert e eu,
secretos, atarefados e multiformes em outras dimensões de tempo. Alcei os olhos
e o tênue pesadelo se dissipou. No amarelo e negro jardim havia um só homem;
mas esse homem era forte como uma estátua, mas esse homem avançava pelo caminho
e era o Cap. Richard Madden.
– O futuro já existe –
respondi _ mas eu sou seu amigo. Posso examinar de novo a carta?
Albert levantou-se.
Alto, abriu a gávea da alta escrivaninha; deu-me por um momento as costas. Eu
havia preparado o revólver. Disparei com o maior cuidado: Albert se desaprumou,
sem uma queixa, imediatamente. Juro que sua morte foi instantânea: uma fulminação.
O resto é irreal,
insignificante. Madden irrompeu, prendeu-me. Fui condenado à forca.
Abominavelmente venci: comuniquei a Berlim o nome secreto da cidade que deviam
atacar. Ontem a bombardearam; li a notícia nos mesmos jornais em que
apresentaram à Inglaterra o enigma do sábio sinólogo Stephen Albert, que
morrera assassinado por um desconhecido, Yu Tsun. O chefe decifrou esse enigma.
Sabe que meu problema era indicar (através dos estrépito da guerra) a cidade
que se chama Albert e que não achei outro meio a não ser matar uma pessoa com
esse nome. Não sabe (ninguém pode saber) minha imensa contrição e cansaço.
* Hipótese odiosa e ridícula. O espião prussiano Hans Rabener, alias
Viktor Runeberg, agrediu com uma pistola
automática o portador da ordem de preisão, Cap. Richard Madden. Este, em defesa
própria, causou-lhe ferimentos que determinaram sua morte (Nota do Editor).
Perfeito e célera.
ResponderExcluirentendi nada
ResponderExcluirTambém não entendi tudo, mas vou lhe contar minha interpretação, caso possa ajudar:
ExcluirO conto inicia dizendo que os aliados Inglaterra-França estão planejando um ataque à Alemanha, mas que a ofensiva foi adiada pelo clima. O autor insinua, na sequência, que um documento emitido por um oriental (que atua como espião alemão) pode ajudar a esclarecer alguns fatos ocorridos num período pré-batalha (obs.: Borges joga com um evento real da 1ª Guerra Mundial: a batalha de Albert).
A suposta citação do documento revela, de início, que o espião está atuando em conjunto com outro, mas foram descobertos pelo cap. Richard Madden. O espião oriental percebe que ele e seu parceiro foram revelados quando telefona ao comparsa e reconhece a voz do captor no outro lado da linha. A partir de então, sabe que o capitão virá em seu encalço e começa a bolar um plano para comunicar Berlin sobre o local onde as forças britânicas (mencionadas no início do conto) estão se preparando para o ataque. Em outras palavras, o oriental é um espião a serviço da Alemanha que descobriu o local onde o exército britânico prepara um ataque, e precisa comunicar essa informação a Berlin. Ao tentar iniciar contato com sua rede através de um comparsa, percebe que fora descoberto (O momento da captura do comparsa gera uma suspeita no espião, que é esclarecida no fim, por uma nota de rodapé).
Então, ele procura na lista telefônica um homem com o mesmo sobrenome da cidade em que o exército britânico se encontra: Albert. Vai atá a casa do homem, perseguido pelo cap. Madden. Ao chegar, o homem inesperadamente o recebe desde logo, achando que ele havia sido enviado por um cônsul. Então, uma estranha ligação no passado se revela: o espião é descendente de uma importante figura em seu país natal, o qual abandonou tudo para escrever um documento que agora estava em posse de Albert. Eles discutem sobre o conteúdo do documento enquanto o espião aguarda a inevitável chegada do cap. Madden. No momento certo, prestes a ser capturado, o espião mata Albert, e o esdrúxulo da situação vira notícia no jornal. Ao ver o nome de seu espião envolvido num curioso caso de homicídio de um homem chamado Albert, os alemães compreenderam que ele tentava mandar uma mensagem e prepararam uma ofensiva contra a cidade. No fim, como dito, uma nota de rodapé esclarece que o comparsa fora morto.
Este, basicamente, é o enredo.
Permeando este enredo, Borges constrói uma análise sobre as inúmeras possibilidades da vida (ou do tempo), mas que, contraditoriamente, parece sustentada em uma inevitabilidade. Explicando melhor: tudo pode acontecer, mas, uma vez que algo acontece, parece ser inevitável que não acontecesse. Assim, Borges joga com presente, passado e futuro: o espião, uma vez descoberto, já se considera morto; o texto do ascendente do espião fica sob a guarda de Albert, numa coincidência tão incrível que parece um plano do tempo; Albert age amistosamente com o espião, mas frequentemente alude a um universo possível em que eles fossem inimigos, o que, na sequência, se revela verdade, pois um mata o outro; e outras inúmeras ponderações dos personagens vão traçando essa dicotomia sobre as várias possibilidades do tempo (abrindo tantos caminhos como um labirinto), no fim, trilharem apenas um único caminho e, após esta definição, parecer ser inevitável que fosse o único caminho possível.
Foi o que eu entendi. Espero que isso o ajude em uma nova leitura e, quem sabe, você consiga perceber algo diferente.
Se você sacar algo diferente que eu acabei não compreendendo, comenta aí e vamos nos ajudando.
Muito bom!É um conto possível de mil interpretações diferentes,sem perder a sua singularidade.
ResponderExcluirMuito bons o conto do Borges e o blog. Só senti falta da referência do livro no qual o conto foi publicado. Um grande abraço.
ResponderExcluirFicções
ExcluirShow
ResponderExcluirNo fundo, se a gente espremer bem, trata-se de uma grande bobagem, um conto que se pretende profundo, mas saber que tudo pode acontecer, que o futuro é múltiplo, todos nós já sabemos (ou deveríamos). Muito contorcionismo de linguagem, muita obliquidade, para nada. Desculpem a sinceridade.
ResponderExcluirA literatura é, no fundo, justamente isso. Dizer aquilo que já sabemos com outra linguagem, a fim de ampliar nossas percepções, aumentar nosso escopo de entendimento, revolver o terreno sob o qual guardamos nossas memórias e identidade.
ExcluirImagine quão rapidamente se degeneraria um mundo no qual a linguagem fosse apenas objetiva e direta...