segunda-feira, 4 de agosto de 2014

05 – As Neves do Kilimanjaro –E. Hemingway

"As Neves do Kilimanjaro" do escritor norte americano Ernest Hemingway (1889 – 1961) é um pouco mais longo que outros contos aqui destacados mas é extraordinariamente representativo da obra do autor. Foi escrito em 1934/35 depois que Hemingway passou dois meses na África e foi publicado em 1936. Inclui cenas inspiradas em momentos da primeira grande guerra – quando Hemingway foi ferido na perna como o personagem do conto – e Paris onde viveu nos anos 20, mas acima de tudo é uma reflexão sobre a vida e a morte, um tema sempre presente em sua obra, com a beleza de descrição de diálogos presente em tudo o que escreveu. A versão em português está reproduzida aqui e pode ser encontrado no original em inglês em http://xroads.virginia.edu/~DRBR/heming.html,
Hemingway abre “As neves do Kilimanjaro” comentando a carcaça de um leopardo encontrada a 6000 metros, no alto daquela montanha. “Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.” Será que existe uma forma gloriosa de morrer? Uma pergunta com mil respostas, mas talvez nenhuma que satisfaça. Hemingway tem a magia de escrever como quem conta uma historia na varanda – e melhor ainda – combina recordações e pensamentos, com um dialogo que a cada momento remete ao presente e a dura realidade cercada de hienas que prenunciam a morte. E tudo se passa frente a imagem, ostensivamente inevitável, do Kilimanjaro no horizonte.
The Snows of Kilimanjaro
Ernest Hemingway
(in The snows of Kilimanjaro and Other Stories Penguin Books, 1968
©Luís Varela Pinto)
Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6.000 metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África. O seu pico ocidental chama-se ‘Ngàge Ngài’, a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.
        
As Neves do Kilimanjaro
“O que é fantástico é que isto é indolor,” disse ele. “É assim que ficamos a saber quando ela começa.”
“É assim realmente?”
“Absolutamente. Mas, desculpa este cheiro. Deve incomodar-te.”
“Não! Por favor, não digas isso.”
“Olha para eles,” disse ele. “É o que vêem ou o que lhes cheira que os atrai desta maneira?”
A cama de lona em que o homem estava deitado estava na extensa sombra de uma mimosa, e quando ele olhou para além da sombra, no brilho intenso da planície viam-se três daquelas aves obscenamente agachadas, enquanto, no céu, mais uma dúzia voava, fazendo sombras velozes quando passavam.
“Eles andam ali desde o dia em que a camioneta avariou,” disse ele. “Hoje foi a primeira vez que alguns pousaram. Reparei na maneira como eles voam, ao princípio com muito cuidado, para o caso de eu alguma vez os querer utilizar numa história. É engraçado.”
“Espero que não,” disse ela.
“Estou só a falar,” disse ele. “As coisas ficam mais fáceis se eu falar. “Mas não quero incomodar-te.”
“Tu sabes bem que isso não me incomoda,” disse ela. “É que fiquei tão nervosa por não poder fazer qualquer coisa. Parece-me que devíamos facilitar as coisas o mais possível até que o avião chegue.”
“Ou até que o avião não chegue.”
“Diz-me, por favor, o que é que eu posso fazer. Há-de haver alguma coisa que eu possa fazer.”
“Podes arrancar-me a perna, e isso talvez resolvesse a questão, embora tenha as minhas dúvidas. Ou podes dar- me um tiro. Tu já tens uma boa pontaria. Eu ensinei-te a atirar, não foi?”
“Por favor, não fales assim. Eu podia ler-te qualquer coisa.”
“Ler o quê?”
“Um livro qualquer daqueles que estão no saco e que ainda não lemos.”
“Não estou capaz de ouvir,” disse ele. “Falar é mais fácil. Discutimos, e isso ajuda a passar o tempo.”
“Eu não discuto. Eu nunca quero discutir. Vamos acabar com as discussões. Por mais nervosos que estejamos. Talvez eles voltem hoje com outra camioneta. Talvez o avião chegue.”
“Eu não quero sair daqui,” disse o homem. “Não faz sentido sair daqui, a não ser para te facilitar as coisas.”
“Isso é cobardia.”
“Será que tu não és capaz de deixar uma pessoa morrer sem lhe chamar nomes? De que serve insultares-me?
“Tu não vais morrer.”
“Não sejas parva. Eu já estou a morrer. Pergunta àqueles canalhas.” Olhou para o sítio onde estavam aquelas enormes aves imundas, agachadas, com as cabeças nuas enterradas nas penas arqueadas. Uma quarta desceu em vôo planado, para depois correr rapidamente, e finalmente, bamboleando-se, caminhou vagarosamente em direção às outras.
“Eles andam sempre por perto em todos os acampamentos. A gente nunca repara neles. Tu não morres se não desistires.”
“Onde é que leste isso? És uma idiota chapada.”
“Podias pensar em arranjar outra pessoa.”
“Por amor de Deus,” disse ele. “Não tenho feito outra coisa.”
Estendeu-se então na cama e ficou calado por momentos a olhar para a orla do bosque através da luz tremula do calor. Muito longe, viu uma manada de zebras brancas, contra o fundo verde do bosque. O acampamento era agradável, sob grandes árvores, junto a uma colina, com boa água, e, muito perto, um charco quase seco, onde, de manhã, voavam galinhas bravas.
“Não queres que te leia qualquer coisa?” perguntou ela. Estava sentada numa cadeira de lona ao lado da cama. “Está-se a levantar uma brisa.”
“Não, obrigado”.
“Talvez a camioneta venha.”
“A camioneta não me interessa nada.”
“A mim interessa.”
“A ti interessam-te tantas coisas que a mim não interessam nada.”
“Não são assim tantas, Harry.”
“E se eu bebesse qualquer coisa?”
“Deve fazer-te mal. Diz no Black que se deve evitar o álcool. Não devias beber.”
“Molo!” Chamou ele.
“Diga, Bwana.”
“Traz-me whisky-soda.”
“Sim, Bwana.”
“Não devias,” disse ela. “É isso que eu quero dizer com desistir. Faz-te mal. Eu sei que te faz mal.”
“Não,” disse ele. “Faz-me bem.”
Portanto, agora acabou-se, pensou ele. Já não teria oportunidade de o acabar. Portanto, o fim era assim, uma questiúncula acompanhada de uma bebida. Desde que a gangrena começara na perna direita ele não sentia dores, e com a dor fora-se também o horror, e tudo o que ele agora sentia era um grande cansaço e irritação por aquilo ser o fim. Em relação àquilo que estava para chegar, não tinha grande curiosidade. Durante anos, tinha-o obcecado; mas agora não significava nada em si mesmo. Estranho, como o cansaço facilitava as coisas.
Já não escreveria as coisas que tinha reservado só para escrever quando soubesse o bastante para escrever bem. Bom, também não teria de falhar na tentativa de as escrever. Talvez nunca viesses a ser capaz de as escrever, e essa era a razão por que as adiavas e atrasavas o seu começo. Bem, agora, nunca viria a saber.
“Estou arrependida de ter vindo,” disse a mulher. Estava a olhar para ele, com o copo na mão e a morder o lábio. “Tu nunca terias arranjado um problema como este em Paris. Sempre disseste que adoravas Paris. Podíamos ter ficado em Paris ou ido a outro sítio qualquer. Eu teria ido para outro sítio qualquer. Eu disse-te que ia para onde tu quisesses. Se querias caçar podíamos ter ido caçar confortavelmente na Hungria.”
“O teu maldito dinheiro,” disse ele.
“Isso não é justo,” disse ela. “Foi sempre tanto meu como teu. Deixei tudo e fui sempre para onde quer que tu quisesses ir, e fiz o que tu querias fazer. Mas nunca devíamos ter vindo.”
“Tu disseste que adoravas.”
“Sim, mas quando estavas bem. Agora detesto. Não percebo como é que isto te havia de acontecer à perna. O que é que nós fizemos para isto nos acontecer?”
“Parece-me que o que eu fiz foi esquecer-me de lhe pôr tintura de iodo quando a cocei a primeira vez. Depois não lhe dei importância porque nunca tinha tido uma infecção. Mais tarde, quando piorou, foi provavelmente o ter usado aquela solução de fénico, quando os outros anti-sépticos acabaram que paralisou os minúsculos vasos sanguíneos e provocou a gangrena.” Ele olhou para ela, “Que mais?”
“Eu não queria dizer isso.”
“Se tivéssemos arranjado um bom mecânico em vez de um motorista kukuyu sem experiência, ele teria verificado o óleo e aquele rolamento da camioneta não se teria queimado.
“Eu não queria dizer isso.”
“Se tu não tivesses deixado a tua maldita gente de Old Westbury, Saratoga, e Palm Beach...”
“Oh, eu amava-te. Isso não é justo. E ainda te amo. Sempre te amarei. E tu não me amas?”
“Não,” disse o homem. “Parece-me que não. Nunca te amei.”
“Harry, que estás a dizer? Perdeste a cabeça.”
“Não. Não tenho cabeça nenhuma para perder.”
“Não bebas isso,” disse ela. “Querido, por favor, não bebas isso. Temos de fazer tudo ao nosso alcance.”
“Faz tu,” disse ele. “Eu estou cansado.”
Agora ele recordava uma estação de caminho de ferro em Karagatch e ele estava lá com o seu saco e aquilo era o farol do Simplon-Orient a rasgar a escuridão e ele ia partir da Trácia depois da retirada. Era uma das coisas que ele tinha reservado para escrever, e também, de manhã ao pequeno almoço, a olhar pela janela e a ver a neve nas montanhas da Bulgária e a Secretária de Nansen a perguntar ao velho se aquilo era neve e o velho a olhar e a dizer, Não, aquilo não é neve. Ainda é cedo para a neve. E a Secretária a repetir para as outras raparigas, Não, estão a ver. Não é neve e elas todas a dizerem, Não é neve, estávamos enganadas. Mas era neve, sim senhor e ele mandou-as para lá quando elaborou a troca de populações. E foi neve que elas palmilharam até morrerem nesse inverno.
Foi neve também que caiu durante toda a semana do Natal nesse ano no Guaertal, naquele ano que viveram na casa do lenhador com o fogão de porcelana que enchia metade da sala, e dormiam em colchões cheios de folhas de faia, na altura em que chegou o desertor com os pés ensangüentados na neve. Ele disse que a polícia andava atrás dele e eles deram-lhe meias de lã e demoraram os polícias à conversa até as marcas terem desaparecido.
Em Schrunz, no dia de Natal, a neve brilhava tanto que fazia doer os olhos quando se olhava pela janela do weinstube e se via toda a gente a regressar da igreja. Foi aí que eles andaram pela estrada de piso macio,
dos trenós, e amarela de urina, ao longo do rio, com colinas escarpadas cobertas de pinheiros, skis pesados ao ombro, e onde eles fizeram aquela grande corrida pelo glaciar abaixo, acima da Madlener-haus, a neve tão macia de ver como a cobertura de um bolo e tão leve como o pó e lembrou-se do ímpeto silencioso que a velocidade causava quando se saltava como um pássaro.
Nessa altura ficaram bloqueados por uma tempestade de neve na Madlener-haus durante uma semana, a jogar as cartas no meio do fumo à luz da lanterna e as apostas eram cada vez mais altas enquanto Herr Lent perdia cada vez mais. Finalmente perdeu tudo. Tudo, o dinheiro da skischule e todos os lucros da época e depois o seu próprio capital. Ele via-o com o seu nariz comprido, a apanhar as cartas e depois a abrir ‘Sans Voir’. Havia sempre jogo nessa altura. Jogava-se quando não havia neve, e jogava-se quando havia neve demais. Pensou no tempo todo que passou a jogar.
Mas nunca escrevera uma linha sobre isso, nem sobre aquele dia de Natal frio e claro com as montanhas a verem-se do outro lado da planície que Johnson tinha sobrevoado para lá da linha para bombardear o comboio dos oficiais que partiam de licença, metralhando-os à medida que eles se espalhavam e corriam. Lembrava-se de Johnson depois vir à Messe e começar a contar o acontecimento. E o silêncio que se fez e depois alguém a dizer, ‘Canalha assassino!’
Aqueles austríacos que eles então mataram eram os mesmos com que ele esquiou depois. Não, os mesmos, não. Hans, com quem ele esquiou todo aquele ano, tinha estado no Kaiser-Jägers e quando eles foram à caça juntos no pequeno vale acima da serração tinham conversado sobre a luta em Pasubio e sobre o ataque a Pertica e Asalone e ele nunca escrevera uma palavra sobre isso. Nem sobre Monte Corno, nem sobre Siete Commun, nem sobre Arsiedo.
Quantos invernos é que ele tinha passado em Voralberg e em Arlberg? Quatro, e depois lembrou-se do homem que tinha a raposa para vender quando eles foram a Bludenz, dessa vez para comprar prendas, e do sabor a cereja do belo kirsch, a escorregadia investida à corrida da neve seca sobre o gelo, a cantar ‘Hi!Ho! disse Rolly!’ quando se corria o último troço até ao declive, indo a direito, depois a correr no pomar em três voltas, e para fora atravessando a vala e até à estrada com gelo por detrás da estalagem. A desapertar os cintos, a tirar os esquis e a encostá-los à parte de madeira da estalagem, a luz do candeeiro vinda da janela, onde, dentro, no calor fumarento a cheirar a vinho novo, eles tocavam acordeão.
“Onde é que nós ficamos em Paris?” perguntou ele à mulher que estava sentada junto dele numa cadeira de lona, agora em África.
“No Crillon. Sabes muito bem.”
“Sei muito bem porquê?”
“Era onde sempre ficávamos.”
“Não. Nem sempre.”
“Lá e no Pavillon Henri-Quatre, em St Germain. Disseste que adoravas aquilo lá.”
“A adoração é um esterqueiro,” disse Harry. “E eu sou o galo que vai para lá cantar.”
“Se realmente tens de embarcar,” disse ela, “será que tens mesmo de destruir tudo o que deixas para trás?” Quero dizer, tens mesmo de levar tudo contigo? Será que tens de matar o cavalo e a mulher e queimar a sela e a armadura?”
“Tenho,” disse ele. “O teu dinheiro era a minha armadura. O meu Swift and Armour.”
“Por favor.”
“Está bem. Vou parar com isto. Não quero magoar-te.”
“Já é um bocado tarde para isso.”
“Está bem, está bem. Vou continuar a magoar-te. É mais divertido. A única coisa que eu gostava de fazer contigo já não posso fazer.”
“Não, isso não é verdade. Tu gostavas de fazer muitas coisas comigo, e tudo o que tu querias fazer eu fazia.”
“Oh, por amor de Deus, pára com essa gabarolice, sim?”
Ele olhou para ela e viu-a a chorar.
“Ouve,” disse ele. “Achas que eu me estou a divertir muito com isto? Não sei por que estou a fazê-lo. Acho que, ao tentar matar, a pessoa está a procurar manter- se viva. Eu estava bem quando começamos a conversar. Eu não tinha a intenção de começar com isto, e agora estou completamente maluco e estou a ser cruel contigo o mais possível. Não ligues ao que eu digo, querida. Eu amo-te mesmo. Sabes bem que sim. Nunca amei ninguém como te amo a ti.”
Caiu nas mentiras habituais que o sustentavam.
“Tu és muito meigo para mim.”
“Ó minha cabra,” disse ele. “Minha cabra rica. Isso é poesia. Já estou cheio de poesia. De podridão e poesia. De poesia podre.”
“Cala-te. Harry, por que é que te hás-de agora transformar num demônio?”
“Não gosto de deixar ficar seja o que for,” disse o homem. Não gosto de deixar ficar as coisas para trás.”
Era já quase noite e ele tinha estado a dormir. O sol já se escondia por detrás da colina, e agora a sombra cobria toda a planície e os animais pequenos comiam perto do acampamento; ele via-os a baixarem rapidamente a cabeça e a abanar a cauda, mantendo-se agora afastados do bosque. As tais aves já não estavam à espera no solo. Estavam todas pesadamente empoleiradas numa árvore. Havia agora muitas mais. O seu boy pessoal estava sentado junto da cama.
“A Memsahib foi caçar,” disse o rapaz. “O Bwana quer alguma coisa?”
“Nada.”
Ela tinha ido caçar para arranjar um pouco de carne e, sabendo como ele gostava de observar os animais, tinha ido para longe de modo a não perturbar aquela pequena parte da planície que ele abarcava com a vista. Ela era sempre ponderada, pensava ele. Em tudo o que sabia, ou que tinha lido, ou de que alguma vez tinha ouvido falar.
Ela não tinha culpa de ele já estar acabado quando começaram a andar juntos. Como é que uma mulher podia saber que uma pessoa não queria dizer nada daquilo que disse; que uma pessoa falava apenas por falar e para se sentir bem? Depois que começou a fingir que falava verdade, as suas mentiras eram mais bem sucedidas com as mulheres do que quando ele lhes dizia a verdade.
Não era tanto o fato de ele mentir, mas antes o de não haver uma verdade para dizer. Ele tinha vivido a sua vida e acabara-se e depois continuou a vivê-la de novo com pessoas diferentes e mais dinheiro, com os melhores dos mesmos lugares, e alguns novos.
Evitavas pensar e era tudo fantástico. Armavas-te com um bom íntimo para assim não ficar despedaçado, como a maioria deles, e tomavas uma pose que mostrasse que o trabalho que antes fazias não te interessava nada, agora que já não podias fazê-lo. Mas, para ti próprio dizias que havias de escrever sobre aquelas pessoas; sobre os muito ricos; que não eras um deles mas antes um espião no seu campo; que havia de deixar aquilo e escrever sobre aquilo e por uma vez aquilo seria escrito por alguém que sabia do que estava a escrever. Mas ele nunca o faria, porque cada dia sem escrita, sem conforto, cada dia em que ele era precisamente aquilo que desprezava, entorpecia a sua capacidade e amolecia a sua vontade de trabalhar, de tal maneira que, por fim, não fazia mesmo nada. As pessoas que ele agora conhecia sentiam-se muito melhor quando ele não trabalhava. A África era o lugar onde ele fora mais feliz nos bons tempos da sua vida, e portanto tinha lá voltado para começar de novo. Tinham feito este safári com um mínimo de conforto. Sem privações; mas também sem luxo, e ele pensara que assim poderia voltar ao treino daquela maneira. Que de certa maneira poderia desfazer-se da gordura do espírito tal como um lutador ia para a montanha trabalhar e treinar para assim queimar a do corpo.
Ela gostara. Disse que adorava aquilo. Ela adorava qualquer coisa que fosse excitante, que envolvesse uma mudança de cenário, onde houvesse boas pessoas e onde as coisas fossem agradáveis. E ele tinha sentido a ilusão de recuperar a força de vontade para trabalhar. Ora, se era assim que as coisas iam acabar, e ele sabia que era, ele não devia começar a fazer como a serpente que se morde a si própria por ter quebrado a espinha. A culpa não era desta mulher. Se não fosse ela, tinha sido outra qualquer. Se ele vivia numa mentira, devia morrer nela. Ouviu um tiro para lá da colina.
Ela atirava bem, aquele cabra boa, aquela cabra rica, aquela simpática zeladora e destruidora do seu talento. Disparate. Ele é que tinha destruído o seu próprio talento. Por que é que ele havia de culpar aquela mulher por ela o tratar bem? Ele tinha destruído o seu talento não o utilizando, com traições a si próprio e àquilo em que acreditava, bebendo tanto que embotava o gume das suas percepções, com a preguiça, a indolência, e o snobismo, com o orgulho e o preconceito, com o bem e com o mal. O que era aquilo? Um catálogo de livros antigos? De qualquer maneira, o que era o seu talento? Era mesmo talento mas, em vez de o usar, ele tinha feito negócio com ele. A questão não era nunca o que ele tinha feito, mas sempre o que podia fazer. E ele escolhera ganhar a vida com qualquer coisa que não a caneta ou o lápis. Também era estranho, não era? que quando se apaixonava por mais outra mulher, essa mulher havia de ter sempre mais dinheiro do que a anterior. Mas quando já não estava apaixonado, quando já só andava a mentir, como no caso desta, agora, que era, de todas, a mais rica, que tinha o dinheiro todo, que tivera marido e filhos, que tinha arranjado amantes e se tinha fartado deles, que o amava profundamente como escritor, como homem, como companheiro, como uma posse de que se orgulhava; era estranho que, quando ele já não a amava de todo e andava a mentir, que ele fosse capaz de lhe dar mais pelo seu dinheiro do que quando realmente amara.
Nós devemos ser feitos para aquilo que fazemos, pensou ele. O nosso talento reside na maneira como ganhamos a vida, seja ela qual for. Ele vendera a vitalidade, de uma forma ou de outra, toda a sua vida, e quando os nossos afetos não estão demasiado envolvidos damos muito mais valor ao dinheiro. Ele descobrira isto, mas também já nunca o iria escrever. Não, não o iria escrever, embora valesse bem a pena.
Nesta altura ela apareceu à vista, a atravessar a planície em direção ao acampamento. Vestia calças de montar e trazia a espingarda. Os dois rapazes traziam uma arma à tiracolo e seguiam atrás dela. Ainda era uma bela mulher, pensou ele, e tinha um corpo agradável. Tinha grande talento para a cama e gostava, não era bonita, mas ele gostava do seu rosto, lia muitíssimo, gostava de montar e caçar e, claro, bebia demais. O marido morrera quando ela era ainda relativamente nova e durante um tempo dedicara-se aos seus dois filhos adolescentes, que não precisavam dela e ficavam embaraçados com a sua presença, ao seu estábulo, aos livros, às garrafas. Gostava de ler à noite, antes do jantar e bebia whisky e soda enquanto lia. Pela hora de jantar, estava já um pouco bebida, e depois de uma garrafa de vinho ao jantar ficava normalmente embriagada o bastante para dormir.
Isto foi antes dos amantes. Depois de ter os amantes já não bebia tanto porque então não precisava de estar bêbeda para dormir. Mas os amantes aborreciam-na. Tinha estado casada com um homem que nunca a aborrecera, e esta gente aborrecia-a imenso.
Então, um dos seus dois filhos morreu num acidente de aviação e depois disso não mais quis os amantes, e, não sendo a bebida um anestésico, ela teve de arranjar outra vida. De repente, ficara agudamente amedrontada de estar só. Mas queria a companhia de alguém que ela respeitasse.
Tudo tinha começado muito simplesmente. Ela gostava do que ele escrevia e sempre invejara a vida que ele fazia. Ela pensava que ele fazia exatamente tudo o que queria. Os passos que dera para o conquistar, e a maneira como finalmente se apaixonara por ele, fazia tudo parte de uma progressão regular em que ela construíra uma nova vida para si própria e ele tinha vendido o que restava da sua antiga vida.
Tinha-a vendido em troca de segurança, e também de conforto, isso não se podia negar, e de mais quê? Não sabia. Ela ter-lhe-ia trazido tudo o que ele quisesse. Ele sabia isso. Ela era uma belíssima mulher, também. Ele ia para a cama com ela como com qualquer outra; mas preferia-a a ela, porque era mais rica, porque era muito agradável e gostava, e porque nunca fazia cenas. E agora essa vida que ela construíra de novo estava a chegar ao fim, porque há quinze dias ele não usara tintura de iodo quando um espinho lhe tinha feito um arranhão num joelho ao avançarem para tentar fotografar uma manada de gamos parados, com a cabeça levantada, a espreitar, de nariz no ar, as orelhas bem estendidas para escutar o primeiro ruído que os precipitaria para o bosque. Mas eles fugiram antes de ele tirar a fotografia.
Aí vinha ela agora.
Ele voltou a cabeça na cama para olhar para ela. “Olá,” disse ele.
“Matei um carneiro,” disse-lhe ela. “Vai fazer um belo caldo para ti e vou-lhes mandar fazer purê de batata com o Klim. Como é que te sentes?”
“Muito melhor.”
“Não é delicioso, isso? Sabes que eu já imaginava isso mesmo. Estavas a dormir quando fui embora.”
“Fiz uma boa soneca. Foste para muito longe?”
“Não. Só até ali adiante, atrás da colina. Foi um tiro bastante bom, no carneiro.”
“Tu atiras muito bem, sabes?”
“Adoro isto. Adorei a África. É verdade. Se ficares bom foi o melhor tempo que já tive. Tu não imaginas o gozo que foi caçar contigo. Adorei a região.”
“Eu também gosto.”
“Querido, não sabes como é maravilhoso ver-te melhor. Eu não suportava ver-te daquela maneira. Não vais falar mais comigo daquela maneira, pois não? Promete.”
“Não,” disse ele. “Eu já não me lembro do que disse.”
“Tu não precisas de me destruir. Pois não? Eu sou só uma mulher de meia idade que te ama e que quer fazer o que tu quiseres. Já me destruíram duas ou três vezes. Não ias com certeza querer destruir-me outra vez, pois não?”
“Eu gostaria de te destruir umas vezes, na cama,” disse ele.
“Sim. Essa é a boa destruição. Foi para sermos destruídos dessa maneira que nós fomos feitos. O avião vai chegar aí amanhã.”
“Como é que sabes?”
“Tenho a certeza. Tem de chegar. Os rapazes têm a madeira toda pronta e a erva para fazerem a fogueira. Fui ver hoje, outra vez. Há muito espaço para aterrar e nós temos as fogueiras preparadas, em ambos os extremos.”
“O que é que te faz pensar que ele vem amanhã?”
“Tenho a certeza de que vem. Já está atrasado. Depois, na cidade, eles tratam-te da perna e então nós trataremos de fazer alguma destruição. Não daquele terrível gênero falado.”
“Vamos beber um whisky? O sol já se pôs.”
“Achas que deves?”
“Eu vou beber um.”
“Vamos beber juntos. Molo, letti dui whisky-soda?” chamou ela.
“É melhor calçares as botas contra os mosquitos,” disse-lhe ele.
“Depois de tomar banho...”
Enquanto escurecia estiveram a beber e precisamente antes de escurecer completamente e quando já não se via para disparar, uma hiena atravessou a clareira a caminho da colina.
“Aquele patife faz isto todas as noites,” disse o homem. “Todas as noites há duas semanas.”
“É ela que faz barulho de noite. Eu não me importo. Mas são animais imundos.”
A beberem juntos, já sem dores, a não ser o desconforto de estar deitado sempre na mesma posição, os rapazes a acenderem a fogueira e as suas sombras a saltar sobre as tendas, ele sentia o regresso da sua anuência a esta vida de agradável rendição. Ela era, de fato, muito boa para ele. Ele fora cruel e injusto para com ela, à tarde. Ela era uma belíssima mulher, realmente maravilhosa. E precisamente nessa altura lembrou-se de que ia morrer.
A lembrança veio-lhe numa arremetida; não uma arremetida de água ou de vento; mas de um vazio súbito, cheirando a mal e o estranho é que a hiena deslizava levemente ao longo da margem.
“O que foi, Harry?” perguntou ela?
“Nada,” disse ele. Era melhor mudares para o outro lado. Para o lado do vento.”
“O Molo mudou-te o penso?”
“Mudou. Agora só estou a pôr o bórico.”
“Como é que te sentes?”
“Um bocado enjoado.”
“Vou tomar banho,” disse ela. “Volto já. Venho comer contigo e depois pomos a cama lá dentro.”
Portanto, disse ele consigo, fizemos bem em acabar com as discussões.
Ele nunca tinha discutido muito com esta mulher, enquanto que com as mulheres que ele amava discutira tanto que sempre acabavam por matar a relação com a corrosão das discussões. Ele amara demais, exigira demais e esgotara tudo.
Pensou naquela altura em que estava só em Constantinopla depois de uma discussão em Paris antes de ir embora. Passara o tempo com prostitutas e depois, quando isso acabou, não tinha conseguido vencer a solidão, mas apenas piorá-la, escrevera-lhe uma carta, à primeira, àquela que o deixou, uma carta a contar-lhe como não tinha conseguido vencê-la... como ao julgar vê-la à saída do Regence ele se sentira todo fraco e enjoado interiormente, e que costumava seguir uma mulher que se parecia com ela ao longo do Boulevard, com receio de ver que não era ela, com receio de perder aquela sensação que aquilo lhe dava. Como todas aquelas com quem dormira apenas lhe faziam sentir mais a sua falta. Como o que ela lhe fizera não podia nunca ter qualquer importância uma vez que ele não conseguia deixar de amá-la. Escreveu essa carta no Clube, completamente sóbrio, e mandou-a para Nova York pedindo que lhe respondesse para o escritório em Paris. Assim parecia seguro. E nessa noite, sentindo tanto a sua falta que se sentiu oco por dentro, vagueou pelo Taxim’s, arranjou uma rapariga, e levou-a a jantar. Tinha ido depois com ela dançar, ela dançava mal, e trocou-a por uma quente puta armênia, que se esfregava contra ele de tal maneira que quase queimava. Ele tirou-a de um artilheiro britânico subalterno depois de uma briga. O artilheiro desafiou- o lá para fora e eles lutaram na rua, sobre o empedrado, na escuridão. Ele tinha-lhe batido duas vezes, com força, ao lado do queixo e quando viu que ele não caiu, concluiu que tinha ali uma luta séria. O artilheiro atingiu-o no corpo e depois num olho. Ele atirou-lhe uma esquerda outra vez, vacilou e caiu ao chão e o artilheiro caiu-lhe em cima agarrou-lhe o sobretudo e rasgou-lhe uma manga e ele agrediu-o por duas vezes por detrás da orelha e depois socou-o com a direita enquanto o afastava. Quando o artilheiro caiu, bateu primeiro com a cabeça e ele fugiu com a rapariga porque ouviram os M.P.’s a chegar. Apanharam um táxi que os levou para Rimmily Hiss ao longo do Bósforo, e de volta, e depois outra vez a noite fria e depois a cama e ele sentiu-a demasiado madura como parecia, mas macia, como pétala de rosa, melada, de ventre macio, seios grandes, sem precisar de almofada por baixo das nádegas, e deixou-a antes de ela acordar com ar desprendido aos primeiros raios de luz e apareceu no
Pera Palace com um olho negro e o sobretudo de baixo do braço porque lhe faltava uma manga.
Nessa mesma noite partiu para a Anatólia e lembrou-se mais tarde, nessa viagem, de ter cavalgado todo o dia pelos campos de papoulas que eles cultivavam para fazer ópio e como aquilo o fazia sentir-se esquisito, finalmente, e todas as distâncias pareciam estar erradas, para onde eles tinham feito o ataque com os recém-chegados oficiais de Constantino, que não percebiam nada, e a artilharia tinha disparado sobre as tropas e o observador britânico tinha chorado como uma criança.
Foi nesse dia que ele viu pela primeira vez mortos com saias de ballet brancas e sapatos com a pontas reviradas e com pompons. Os turcos tinham vindo com regularidade aos magotes e ele tinha visto os homens de saias a correr e os oficiais a disparar sobre eles e depois a correr, eles também, e ele e o observador britânico tinham corrido também até os pulmões lhe doerem e a boca ficou cheia daquele sabor a dinheiro e pararam atrás de umas rochas e lá estavam os turcos a chegar sempre aos magotes. Mais tarde vira coisas que nunca imaginara e que ainda vira outra vez mais tarde, muito piores. Assim, quando voltou para Paris dessa vez não conseguia falar daquilo nem suportava que referissem o assunto. E naquele café onde ele passou estava aquele poeta americano com uma pilha de pires à sua frente e uma expressão estúpida na cara de batata a conversar sobre o movimento Dada com um romeno que disse chamar-se Tristan Tzara, que trazia sempre um monóculo e estava com dores de cabeça, e, de volta ao apartamento com a mulher, que, acabada a discussão, acabada a loucura, ele agora amava outra vez, feliz por estar em casa, o escritório mandava-lhe o correio para o apartamento. Então a carta em resposta àquela que ele escrevera chegou numa bandeja um dia de manhã e quando ele reparou na caligrafia ficou gelado e tentou esconder a carta debaixo de outra. Mas a mulher disse, “De quem é essa carta, querido?” e foi o fim do princípio daquilo.
Recordou os bons tempos com todas elas, e as discussões. Elas escolhiam sempre os melhores sítios para as discussões. E por que é que elas discutiam sempre quando ele se sentia no melhor? Nunca tinha escrito sobre nada disto, porque, primeiro, nunca queria magoar ninguém e depois parecia-lhe que havia mais sobre que escrever, para além daquilo. Mas sempre pensou que acabaria por escrever. Havia tanto para escrever. Tinha visto o mundo mudar; não apenas os acontecimentos; embora ele tivesse visto muitos deles e tivesse observado as pessoas, mas tinha visto a mudança mais subtil e lembrava-se de como as pessoas eram nas diferentes alturas. Tinha estado por dentro e tinha observado e era seu dever escrever sobre isso; mas agora nunca o faria.
“Como é que te sentes?” disse ela. Já tinha saído da tenda, depois do banho.
“Bem.”
“Já queres comer?” Ele viu Molo atrás dela, com a mesa desdobrável, e o outro rapaz, com os pratos.
“Eu quero escrever,” disse ele.
“Devias comer um pouco de caldo para manter as forças.”
“Eu vou morrer esta noite,” disse ele. “Não preciso de forças.”
“Por favor, Harry, não sejas melodramático,” disse ela.
“Por que é que tu não usas o nariz? Já estou todo podre até à coxa. Para que diabo me hei-de chatear com o caldo? Molo, traz-me o whisky-soda.”
“Toma o caldo, por favor,” disse ela calmamente.
“Está bem.”
O caldo estava quente. Teve de o deixar arrefecer na tigela para o tomar e depois bebeu-o de um trago.
“És uma excelente mulher,” disse ele. “Não ligues ao que eu digo.”
Ela olhou para ele com a sua conhecida cara bem-amada do Spur e Town and Country só um pouco pior na bebida, só um pouco pior na cama, mas Town and Country nunca mostraram aqueles seios tão bons e aquelas coxas tão úteis e aquelas mãos tão acariciadoras, e enquanto olhava e via o seu tão agradável e bem conhecido sorriso, sentiu a morte a aproximar-se de novo. Desta vez não havia pressa. Era um sopro, como de uma aragem que faz a chama da vela tremer e alongar-se.
“Eles podem trazer-me a rede mais tarde e pendurá-la na árvore e fazer a fogueira. Esta noite não vou ficar na tenda. Não vale a pena mudar-me. Está uma noite clara. Não vai chover.
Então era assim que se morria, em sussurros que não se ouviam. Bem, não haveria mais discussões. Podia prometê-lo. Não ia agora estragar a única coisa que nunca experimentara. Se calhar ia. Tu estragavas sempre tudo. Mas talvez não fosse.
“Tu não sabes tomar ditados, pois não?”
“Nunca aprendi,” disse-lhe ela.
“Não tem importância.”
Não havia tempo, claro, embora desse a sensação de que aquilo se comprimia de maneira a poder meter-se tudo num parágrafo se se conseguisse agarrá-lo bem.
Era uma casa de madeira com as juntas calafetadas com argamassa branca numa colina sobre o lago. Havia um sino num poste ao lado da porta para chamar as pessoas para as refeições. Por detrás da casa ficavam os campos e por detrás dos campos a floresta. Uma fila de choupos ia da casa até ao embarcadouro. Mais choupos ao longo do pontão. Uma estrada subia até às colinas acompanhando a orla da floresta e ao longo da estrada ele apanhava amoras silvestres. Depois a casa ardeu e todas as armas penduradas sobre a lareira se queimaram e depois os canos com o chumbo derretido nas câmaras e as coronhas carbonizadas, ficaram sobre o monte das cinzas que foram utilizadas para fazer soda cáustica para as grandes caldeiras de ferro do sabão, e tu perguntavas ao avô se podias brincar com elas, e ele dizia, não. Compreendes, ainda eram as suas armas e nunca mais comprou outras. E também nunca mais caçou. A casa foi reconstruída no mesmo local, aproveitando os destroços, e pintada de branco e da entrada viam-se os choupos e para além deles o lago; mas nunca mais houve armas. Os canos das armas que estavam penduradas na parede da casa estavam ali no monte das cinzas e nunca mais ninguém mexeu nelas.
Na Floresta Negra, depois da guerra, alugamos um ribeiro de trutas e havia duas maneiras de lá chegar. Uma era ir pelo vale abaixo, desde Triberg, rodear a estrada do vale à sombra das árvores que bordejavam aquela estrada branca, e depois subir por um caminho lateral que seguia pela colina acima, passando por muitas pequenas quintas com aquelas grandes casas do Schwarzwald, até o caminho atravessar o ribeiro. Era aí que a pesca começava.
A outra maneira era trepar pela orla escarpada dos bosques e depois atravessar o cume das colinas pelos pinhais e sair para a orla de uma veiga e descer por esta veiga até à ponte. Havia vidoeiros ao longo do ribeiro, e este não era grande, mas estreito, claro e rápido, com pequenos poços nos sítios onde a água tinha escavado a passagem por debaixo das raizes dos vidoeiros. No Hotel em Triberg o proprietário teve uma bela época. Foi muito agradável e éramos todos amigos. No ano seguinte veio a inflação e o dinheiro que ele tinha feito no ano anterior não chegou para comprar as provisões necessárias para abrir o hotel e enforcou- se.
Tu podias ditar isto, mas não podias ditar a Praça Contrescarpe onde as vendedeiras de flores tingiam as flores na rua e a tinta escorria para o pavimento de onde os autocarros partiam e os velhos e as velhas, sempre bêbados de vinho e bagaço ordinários; o cheiro a suor sujo e a pobreza e a embriaguez no Café des Amateurs e as prostitutas no Bal Musette por cima do qual viviam. A porteira que acolhia o soldado da Guarda Republicana no seu apartamento, o capacete emplumado de crinas sobre a cadeira. A locatária da frente cujo marido era corredor de bicicleta e a alegria dela naquela manhã na Leitaria quando abriu o L’Auto e viu que ele se classificara em terceiro lugar no Paris-Tours; a sua primeira grande corrida. Ela corara e rira e subira as escadas a gritar, com aquele jornal desportivo amarelo na mão. O marido da mulher que dirigia o Bal Musette era motorista de táxi e quando ele, Harry, tinha de apanhar um avião muito cedo batia-lhe à porta para o acordar e eles bebiam um copo de vinho branco cada um ao balcão cromado do bar antes de partirem. Ele nessa altura conhecia os moradores daquele bairro porque eram todos pobres.
Naquela Praça havia duas espécies de gente: os bêbados e os desportistas. Os bêbados matavam a pobreza dessa maneira; os desportistas superavam-na com o exercício. Eram os descendentes dos Communards e para eles não era preciso um grande esforço para saberem da sua política. Eles sabiam quem matara os pais, os parentes, os irmãos e os amigos quando as tropas de Versailles entraram na cidade e a tomaram depois da Comuna e executaram quem quer que apanhassem de mãos calosas ou que usasse boina ou exibisse qualquer outro sinal de que era um trabalhador. E naquela pobreza e naquele bairro do outro lado da rua de uma Boucherie Chevaline e de uma cooperativa vinícola ele tinha escrito o começo de tudo o que tinha que fazer. Nunca gostara de qualquer outra zona de Paris como gostava
daquela, as árvores esparramadas, as velhas casas rebocadas de branco e pintadas de castanho na parte de baixo, o verde dos autocarros naquela praça quadrada, a tinta purpúrea das flores sobre o pavimento, a descida íngreme da Rua Cardinal Lemoine pela colina abaixo até ao Rio, e do outro lado o estreito mundo da Rua Mouffetard apinhada de gente . A rua que subia em direção ao Panteão e a outra por onde ele ia sempre de bicicleta, a única rua asfaltada daquele bairro, macia sob os pneus, com as casas estreitas e altas e o edifício alto daquele hotel barato onde morrera Paul Verlaine. Os apartamentos onde eles viviam tinham apenas duas divisões e ele tinha um quarto no último andar desse hotel, que lhe custava sessenta francos por mês, onde ele escrevia, e de lá via os telhados e as chaminés e todas as colinas de Paris.
Do apartamento apenas se via a loja do vendedor de lenha e carvão. Vendia vinho também, vinho ordinário. A cabeça de cavalo dourada na parte de fora da Boucherie Chevaline, onde se viam, penduradas na montra, as carcaças douradas e vermelhas, e a cooperativa pintada de verde onde eles compravam o vinho; vinho bom e barato. O resto eram paredes de estuque e as janelas dos vizinhos. Vizinhos que, à noite, quando algum bêbado, deitado na rua, resmungava e gemia, naquela ivresse tipicamente francesa que nos queriam convencer que não existia, abriam as janelas e depois o murmúrio das conversas.
“Onde está o polícia? Quando não é preciso o gajo anda sempre por aí. Deve estar a dormir com alguma porteira. Chama o Agent.” Até que alguém atirava um balde de água da janela e os gemidos acabavam. “O que é aquilo? Água. Ah, inteligente.” E as janelas a fecharem-se. Marie, a mulher-a-dias dele, a protestar contra o dia de trabalho de oito horas dizendo, “Se o marido trabalha até às seis, embebeda-se só um bocado a caminho de casa e não gasta muito. Se trabalha só até às cinco embebeda-se todas as noites e fica sem dinheiro. É a mulher do trabalhador que sofre com esta redução das horas de trabalho.
“Não queres mais caldo?” perguntou então a mulher. “Não, obrigado. Está muito bom.”
“Toma só um bocadinho.”
“Eu queria era um whisky-soda.”
“Isso não te faz bem.”
“Não, faz-me mal. Cole Porter escreveu a letra e a música. O saber que vais ficar louca por mim.”
“Sabes muito bem que eu gosto que bebas.”
“Pois. Só que me faz mal.”
Quando ela se for, pensou ele, vou ter tudo o que quiser. Não tudo o que quiser, mas tudo o que houver. Sim, sim, ele estava cansado. Cansado demais. Ia dormir um pouco. Deixou-se ficar quieto e a morte não estava lá. Deve ter ido a outra rua. Foi aos pares, de bicicleta e deslocou-se em silêncio absoluto sobre os passeios.
Não, ele nunca escrevera sobre Paris. Sobre o Paris de que ele gostava. Mas, e o resto, tudo o resto sobre que ele nunca escrevera?
E o rancho e o cinzento prateado das salvas, a água rápida e clara nas valas de irrigação, e o verde pesado da alfafa? O caminho subia até às colinas e o gado no verão ficava tímido como os veados. Os gritos e o ruído regular e aquela mole imensa movendo-se lentamente, levantando a poeira quando os traziam para baixo no outono. E por detrás das montanhas, o pico afiado muito claro à luz da tardinha e, a cavalgar ao longo da caravana, à luz do luar muito brilhante no vale. Recordava agora a descida através da floresta, no meio da escuridão, agarrado à cauda do cavalo quando já não se via e todas as histórias que ele tencionava escrever.
Sobre o moço de recados, um pateta, que deixaram no rancho e a quem recomendaram que não deixasse ninguém apanhar feno, e aquele velho patife do Forks que batera no rapaz quando este trabalhara para ele e que lá foi para arranjar umas rações. O rapaz a recusar e o velho a dizer que lhe batia outra vez. O rapaz pegou na espingarda que estava na cozinha e disparou sobre ele quando tentava entrar no celeiro e quando eles regressaram ao rancho já ele estava morto há uma semana, congelado na cerca dos animais, e os cães já lhe tinham comido uma parte do corpo. Mas o que dele restava foi colocado num trenó, embrulhado num cobertor, e amarrado com cordas e tu mandaste o rapaz ajudar-te a arrastá-lo e os dois levaram-no pela estrada, em skis, para a cidade, a sessenta milhas, para entregar o rapaz, sem que ele fizesse idéia de que iria ser preso. Pensando que tinha cumprido com a sua obrigação e que tu eras amigo dele e que seria recompensado. Ele tinha ajudado a arrastar o velho para que toda a gente soubesse como o velho fora mau, e como tinha tentado tirar rações que não lhe pertenciam, e quando o xerife o algemou não queria acreditar. Começara então a chorar. Esta era uma história que ele tinha guardado para escrever. Conhecia pelo menos vinte boas histórias dali e nunca escrevera nenhuma. Porquê?
“Diz-lhes porquê,” disse ele.
“Porquê o quê, querido?”
“Nada.”
Ela já não bebia tanto desde que o tinha com ela. Mas se ele sobrevivesse nunca escreveria sobre ela, e ele sabia disso. Nem sobre qualquer um deles. Os ricos eram maçadores e bebiam demais, ou jogavam demais ao backgammon. Eram maçadores e repetitivos. Lembrava-se do pobre Julian e do romântico horror que ele tinha deles e de como ele uma vez tinha iniciado uma história que começava, “Os muito ricos são diferentes de ti e de mim.” E de como alguém dissera a Julian, sim, têm mais dinheiro. Mas o Julian não achou graça. Ele pensava que eles eram uma raça especial e encantadora e quando descobriu que não eram, isso destroçou-o tanto como qualquer das outras coisas que o destroçavam.
Ele desprezara aqueles que o destroçavam. Não se era obrigado a gostar disso por o compreender. Ele podia vencer qualquer coisa, pensava, porque nada o magoava, se não se preocupasse.
Muito bem. Já não se preocupava com a morte. Uma coisa que sempre receara era a dor. Suportava a dor como qualquer pessoa, enquanto esta não se prolongasse por demasiado tempo e o desgastasse, mas aqui tinha qualquer coisa que o tinha magoado terrivelmente e precisamente quando sentira que isso o estava a quebrar, a dor desaparecera.
Recordou a altura, há muito tempo, em que Williamson, o oficial do bombardeamento, foi atingido por uma granada que alguém da patrulha alemã tinha atirado quando ele ia a atravessar o arame naquela noite e pediu, aos gritos, que o matassem. Ele era gordo, corajoso e um bom oficial, embora com uma certa inclinação para exibições fantásticas. Mas naquela noite ele foi apanhado no arame, com um foguete luminoso a iluminá-lo e as suas entranhas derramadas sobre o arame, e assim, quando o trouxeram para dentro, vivo, tiveram de o cortar para o libertar. Mata-me, Harry. Por amor de deus, mata-me. Tinham discutido uma vez sobre o fato de Nosso Senhor nunca nos mandar qualquer coisa que não possamos suportar e uma teoria dizia que isso queria dizer que em determinada altura a dor provocava automaticamente o desmaio. Mas ele lembrava-se sempre de Williamson naquela noite. Nada o fez desmaiar até que ele lhe deu todos os comprimidos de morfina que tinha guardado para si próprio e não deram resultado imediato.
Contudo, isto que ele agora tinha era fácil; e se não piorasse não era nada que o preocupasse. Exceto que gostaria de estar em melhor companhia.
Pensou um pouco sobre a companhia que gostaria de ter ali.
Não, pensou, quando tudo aquilo que se faz, se faz durante tempo demais, ou tarde demais, não se pode esperar que as pessoas ainda lá estejam. As pessoas foram-se todas embora. A festa acabou e agora fica-se com o anfitrião.
Começo a ficar tão farto da morte como de tudo o resto, pensou.
“É uma chatice,” disse ele alto.
“O quê, querido?”
“Qualquer coisa que se faça durante demasiado tempo.”
Olhou-lhe o rosto, entre ele e a fogueira. Estava encostada para trás na cadeira e a luz da fogueira brilhava-lhe no rosto de linhas agradáveis e ele viu que ela estava com sono. Ouviu o ruído da hiena mesmo a seguir à zona da fogueira.
“Estive a escrever,” disse ele. “Mas fiquei cansado.” “Achas que consegues dormir?”
“Com certeza. Por que é que não te vais deitar?” “Gosto de estar aqui contigo.”
“Sentes alguma coisa esquisita?”
“Não. Apenas tenho sono.”
“Eu sinto.”
Ele sentira a morte a aproximar-se de novo.
“Sabes muito bem que a única coisa que nunca perdi foi a curiosidade,” disse-lhe ele.
“Tu nunca perdeste nada. És o homem mais completo que conheci.”
“Meu Deus,” disse ele. “Que pouco sabem as mulheres. O que é isso? A tua intuição?”
Porque precisamente nessa altura a morte chegara e pousara a cabeça nos pés da cama e ele sentiu o seu hálito.
“Nunca acredites nessa balela da gadanha e da caveira,” disse-lhe ele. “Tanto podem ser dois polícias de bicicleta como um pássaro. Ou pode ter um focinho largo como uma hiena.”
Já tinha subido até ele, mas não tinha forma. Apenas ocupava espaço.
“Diz-lhe que se vá embora.”
Mas ela não se foi embora, antes se aproximou mais.
“Tens um hálito dos diabos,” disse-lhe ele. “Canalha mal-cheirosa.”
Ela aproximou-se ainda mais, mas mesmo assim, ele não conseguia falar com ela, e quando ela viu que ele não conseguia falar aproximou-se mais e mais, e então ele tentou afastá-la sem falar, mas ela trepou para cima dele de modo que o seu peso estava-lhe todo sobre o peito, e enquanto ela ali se instalava e ele não podia mexer-se nem falar, ouviu a mulher dizer, “Bwana já está a dormir. Peguem na cama com muito cuidado e levem-na para dentro da tenda.”
Ele não conseguia falar para lhe pedir que a fizesse ir embora, e ela pesou-lhe ainda mais e ele já não conseguia respirar. E então, enquanto eles levantavam a cama, subitamente, ficou tudo bem, e o peso desapareceu-lhe do peito.
Era já de manhã há algum tempo e ele ouviu o avião. Parecia muito pequenino e descreveu um grande círculo e os rapazes correram a acender as fogueiras com querosene, e fizeram montes de erva de modo que havia duas grandes fogueiras em cada um dos extremos da planura e a brisa da manhã soprava-as na direção do acampamento, e o avião descreveu mais dois círculos, mais baixo desta vez, e depois desceu até ao nível do terreno e aterrou suavemente, e, a caminhar na direção do acampamento, lá vinha o velho Compton, de calças, casaco de tweed e chapéu de feltro castanho.
“O que é que se passa, chefe?” disse Compton.
“Um problema numa perna,” disse-lhe ele. “Não queres tomar o pequeno almoço?”
“Obrigado. Só chá. É o Puss Moth, sabes. Não vou poder levar a Memsahib. Só há lugar para um. A tua camioneta já vem a caminho.”
Helen tinha puxado Compton aparte e estava a falar com ele. Compton voltou mais alegre que nunca.
“Vamos já levar-te,” disse ele. “Depois volto para levar a Mem. Mas acho que terei de parar em Arusha para reabastecer. É melhor irmos já.”
“E o chá?”
“Já sabes que eu não gosto muito de chá.”
Os rapazes tinham pegado na cama e rodeando as tendas verdes levaram-na pela rocha abaixo para a planície até ao avião, passando pelas fogueiras que ardiam agora muito brilhantes, consumida já toda a erva e espevitadas pelo vento. Foi difícil pô-lo lá dentro, mas uma vez lá, ficou sentado no banco de couro, com a perna estendida para um dos lados do banco onde Compton se sentava. Compton arrancou com o motor e entrou. Ele acenou para Helen e para os rapazes e quando aquele ruído se tornou naquele roncar muito familiar deram a volta, o Compie atento aos buracos dos javalis, e aceleraram, aos solavancos, ao longo da faixa entre as fogueiras e, com um último solavanco levantaram vôo e ele viu-os todos de pé lá em baixo a acenar, e o acampamento ao lado da colina que agora começava a ficar achatada, e a planície a estender-se, maciços de árvores, e o bosque a ficar achatado, enquanto os rastos dos animais corriam macios até aos charcos secos, e havia uma nova água que ele nunca conhecera. Os costados já pequenos e arqueados das zebras, e os gnus, pequenos pontos de cabeça grande, parecendo trepar quando se deslocavam como que em longos dedos através da planície, espalhando-se agora que a sombra se aproximava deles, eram já muito pequenos e os seus movimentos não eram de galope, e a planície a perder de vista, já amarelo-acizentada, e à frente o tweed do casaco e o chapéu de feltro do velho Compie. Depois sobrevoaram as primeiras colinas e os gnus a correr à sua frente e depois as montanhas com súbitos vales cobertos de florestas verde claras e as sólidas encostas de bambus e depois floresta densa outra vez esculpida em picos e depressões, até as atravessarem, e as colinas desciam e depois outra planície, agora quente, e castanho púrpura, irregular do calor, e o Compie a olhar para trás para ver como ele estava. Depois outras montanhas escuras à frente.
E então, em vez de irem para Arusha, viraram à esquerda, ele evidentemente concluiu que tinham combustível suficiente, e ao olhar para baixo viu uma nuvem cor-de-rosa granulada a deslocar-se sobre a terra e no ar, como as primeiras neves de uma tempestade vinda de parte nenhuma, e ele sabia que os gafanhotos vinham lá do sul. Começaram então a subir e parecia que se dirigiam para leste, e depois escureceu e ficaram no meio de uma tempestade, a chuva tão espessa que parecia que iam a voar no meio de uma queda de água, e depois saíram e o Compie voltou-se e mostrou um largo sorriso e apontou e lá à frente tudo o que ele conseguiu ver, largo como o mundo todo, grande, alto e inacreditavelmente branco da luz do sol, lá estava o cume quadrangular do Kilimanjaro. E então ficou a saber que era para lá que ia.
Precisamente nesse momento a hiena calou-se na noite e começou a produzir um som estranho, humano, quase um choro. A mulher ouviu-a e mexeu-se, inquieta. Não acordou. Em sonhos, estava na casa de Long Island e era a noite da véspera do début da filha. Sem saber como nem porquê, o pai estava lá e fora muito grosseiro. Então o som da hiena era já tão alto que ela acordou e por momentos ficou sem saber onde estava e com medo. Pegou na lanterna e dirigiu-a para a outra cama que eles tinham trazido para dentro depois de Harry ter adormecido. Viu o volume do corpo dele debaixo da rede dos mosquitos, mas ele tinha como que estendido a perna para fora e ela pendia ao longo da cama. Os pensos tinham caído todos e ela não conseguia olhar para lá.
“Molo,” chamou ela. “Molo! Molo!”
Depois disse, “Harry, Harry!” Depois subindo de tom, “Harry! Por favor. Oh, Harry!”
Não houve resposta e ela não o ouvia a respirar.
Fora da tenda a hiena fez aquele mesmo som estranho que a tinha acordado. Mas ela não ouvia nada senão o bater do próprio coração.


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