No dia 22 de Setembro de 1912,
as oito horas da noite Franz Kafka (1883-1924) decidiu ser escritor e começou a
escrever este conto. Ao amanhecer do dia seguinte o conto "O veredicto" estava pronto e
nascia assim um dos maiores escritores de todos os tempos. Nele Kafka descreve
com elegância e leveza uma serie de eventos e reflexões que parecem banais, e é
apenas com o trágico final, que o leitor percebe a importância de tudo que
havia lido – um desenho de conto que mais tarde também foi utilizado (entre
outros) em dois famosos contos "A perfect day for Banana Fish" do J.
D. Salinger e "Lugar llamado Kindberg" de J. Cortazar – O texto em
português esta reproduzido abaixo e o original pode ser encontrado em: http://www.gutenberg.org/ebooks/21593.
Como também em inglês: http://www.thoughtaudio.com/titlelist/TA0092Judgement/KAFKA_JUDGMENT.pdf
; e em Espanhol: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/euro/kafka/la_condena.htm
O Veredicto
Uma
historia para a senhorita Felice Bauer
Franz Kafka
Era uma manhã de domingo no auge da primavera. Georg
Bendemann, um jovem comerciante, estava sentado no seu quarto, no primeiro
andar de um dos prédios baixos, de construção leve, que se estendiam em longa
fila ao longo do rio, diferentes um do outro quase só́ na altura e na cor.
Tinha justamente acabado de escrever uma carta a um amigo que se achava no
estrangeiro, fechou-a com uma lentidão lúdica e depois, o cotovelo apoiado
sobre a escrivaninha, olhou da janela para o rio, para a ponte e para as colinas
da outra margem, com o seu verde sem vigor.
Ficou pensando como esse amigo, insatisfeito com suas
perspectivas na própria terra, já fazia anos havia literalmente se refugiado
na Rússia. Tinha agora uma casa comercial em São Petersburgo, que a principio havia
caminhado muito bem, mas que parecia há muito ter estacionado, conforme se
queixava o amigo nas suas visitas cada vez mais raras. Assim é que ele se
desgastava inutilmente no estrangeiro: a exótica barba cheia ocultava mal o
rosto tão conhecido desde os anos de infância, e a cor amarela da pele parecia
apontar para uma moléstia em evolução. Como ele contava, lá́ não mantinha
nenhuma ligação autentica com a colônia dos seus conterrâneos e quase nenhum
contato social com as famílias do lugar, de maneira que se encaminhava
definitivamente para a vida de solteiro.
O que se devia escrever a um homem assim, que
evidentemente tinha saído fora dos trilhos e a quem se podia lastimar mas não
prestar auxilio? Devia-se talvez aconselhá-lo a voltar de novo para casa, a
transferir para cá́ sua existência, a retomar as velhas relações de amizade —
para o que certamente não havia obstáculo algum — e no mais confiar na ajuda
dos amigos? Mas isso não significava outra coisa senão estar ao mesmo tempo lhe
dizendo, de uma maneira tanto mais ofensiva quanto maior a consideração, que
suas tentativas até agora tinham malogrado, que ele devia finalmente desistir
delas, regressar e permitir que todos o olhassem com espanto como a alguém para
sempre de volta, que só́ os seus amigos sabiam um pouco das coisas e que ele
era uma criança crescida, pura e simplesmente necessitada de seguir os
companheiros bem-sucedidos que haviam permanecido em casa. E além do mais, era
mesmo certo que todo esse transtorno, que seria preciso infligir a ele, tivesse
um sentido? Talvez não se conseguisse nem ao menos trazê-lo de volta — ele
mesmo afirmou que não entendia mais as condições vigentes no seu pais —, e
desse modo, a despeito de tudo, talvez continuasse na terra estranha,
amargurado com os conselhos e um pouco mais distanciado dos amigos. Se ele
porém seguisse de fato o conselho e — naturalmente sem essa intenção, mas em
virtude dos fatos — fosse esmagado, não se encontrasse nos seus amigos nem sem
eles, sofresse com o vexame, de fato então não possuísse lar ou amigos, nesse
caso não teria sido muito melhor para ele ficar no estrangeiro, do modo como
estava? Era possível, em tais circunstancias, pensar que aqui ele iria
efetivamente levar as coisas avante?
Por essas razões, mesmo que se quisesse manter a
ligação por correspondência, não se podia na verdade transmitir a ele nenhuma
comunicação real, como se faria sem temor até aos conhecidos mais distantes. O
amigo já́ não vinha ao pais fazia mais de três anos e explicava muito
precariamente esse fato pela incerteza da situação politica na Rússia, que não
permitiria nem mesmo a mais breve ausência de um pequeno comerciante, ao passo
que centenas de milhares de russos circulavam tranquilamente pelo mundo. Para
Georg, entretanto, muita coisa havia mudado no curso desses três anos. Sobre a
morte da mãe de Georg, que havia ocorrido dois anos antes, e depois da qual ele
passara a viver em comum com o velho pai na mesma casa, o amigo naturalmente
tinha recebido noticia e manifestado o seu pesar numa carta de tamanha secura
que o motivo só podia ser que no estrangeiro o luto por um acontecimento dessa
natureza é inteiramente inconcebível. Mas desde aquela época Georg havia
assumido com maior determinação o negocio, bem como tudo o mais. Talvez o pai,
enquanto a mãe era viva, por querer fazer valer só o seu próprio ponto de vista
na firma, o tivesse impedido de exercer uma atividade pessoal efetiva; talvez o
pai, desde a morte da mãe, embora ainda continuasse trabalhando no
estabelecimento, tivesse ficado mais retraído; talvez — o que era até muito
provável — acasos felizes houvessem desempenhado um papel muito mais
importante; fosse como fosse, porem, nesses dois anos a firma tinha se
desenvolvido de um modo totalmente inesperado, fora preciso dobrar o pessoal, o
movimento havia quintuplicado e sem duvida se estava na iminência de um novo
avanço. Mas o amigo não fazia ideia dessa mudança. Anteriormente — talvez pela
ultima vez naquela carta de pêsames — tinha querido convencer Georg a emigrar
para a Rússia, estendendo-se sobre as perspectivas que existiam em São
Petersburgo justamente para o ramo comercial de Georg. As cifras desapareciam
diante do volume que os negócios de Georg tinham alcançado. Mas este não havia
sentido vontade alguma de escrever ao amigo sobre seus êxitos comerciais, e
caso o tivesse feito agora, em retrospecto, isso realmente teria adquirido uma
aparência estranha.
Assim sendo, Georg se limitava sempre a escrever ao
amigo só sobre incidentes insignificantes, da maneira como estes se acumulam
desordenadamente na lembrança, quando se reflete sobre eles num domingo
tranquilo. Ele não pretendia senão deixar inalterada a imagem que o amigo, no
decorrer do longo intervalo, tinha feito da cidade natal e à qual se havia
conformado. Aconteceu assim que Georg, em cartas bem distantes uma da outra,
anunciou por três vezes o noivado de uma pessoa sem importância com uma moca
igualmente sem importância, até que o amigo, na realidade contra as intenções
de Georg, começou a se interessar por essa ocorrência notável.
Mas Georg preferia escrever-lhe sobre coisas como essa
a admitir que ele próprio tinha ficado noivo, um mês atrás, da senhorita Frieda
Brandenfeld, uma jovem de família bem situada. Muitas vezes conversou com a
noiva sobre esse amigo e a situação peculiar da correspondência que mantinha
com ele.
— Então ele não virá de modo algum para o nosso casamento
— dizia ela. — E eu tenho o direito de conhecer todos os seus amigos.
— Não quero perturbá-lo — respondia Georg. — Entenda
bem, é provável que ele viesse, pelo menos é o que acredito; mas iria se
sentir forçado e prejudicado, talvez ficasse com inveja de mim; e certamente
insatisfeito e incapaz de por de lado essa insatisfação, regressaria sozinho.
Sozinho — você sabe o que é isso?
— Sim, eu sei, mas ele não pode ficar sabendo do nosso
casamento de outra maneira?
— Seja como for, isso eu não posso evitar; mas,
vivendo como vive, é improvável.
— Se você tem amigos assim, Georg, não devia ter
ficado noivo.
— Bem, a culpa é de nós dois; mas mesmo agora eu não
queria que as coisas fossem diferentes.
E quando ela, então, respirando rápido sob seus beijos,
ainda argumentava: “na verdade isso me ofende”, ele achou que realmente não era
embaraçoso escrever tudo ao amigo.
“Eu sou assim e é assim que ele tem de me aceitar”,
disse consigo. “Não posso talhar em mim mesmo uma pessoa que talvez fosse mais
ajustada à amizade com ele do que eu sou.”
E de fato, na longa carta que escreveu nessa manhã de
domingo, relatou ao amigo a realização do noivado com as seguintes palavras: “A
melhor novidade eu guardei para o fim. Fiquei noivo da senhorita Frieda Brandenfeld,
uma jovem da família bem-posta que só́ se estabeleceu aqui tempos depois da sua
partida e que portanto você dificilmente poderia ter conhecido. Ainda haverá́
ocasião para lhe contar mais sobre a minha noiva, basta hoje que lhe diga que
estou muito feliz e que nossa atual relação só́ mudou alguma coisa na medida em
que agora você terá́ em mim, ao invés de um amigo comum, um amigo feliz. Além
disso você ganha, com a minha noiva, que manda saúdá-lo cordialmente, e que em
breve vai escrever pessoalmente a você, uma amiga sincera, o que não é sem
importância para um solteiro. Sei que muita coisa o impede de nos visitar, mas
não seria justamente o meu casamento a oportunidade certa para afastar os
obstáculos? Seja como for, porém, aja sem qualquer escrúpulo e segundo o que
achar melhor”.
Com essa carta na mão Georg ficou longo tempo sentado
à escrivaninha, o rosto voltado para a janela. Mal respondeu, com um sorriso
ausente, a um conhecido que, passando pela rua, o cumprimentara.
Finalmente enfiou a carta no bolso e, do seu quarto,
atravessando um pequeno corredor escuro, entrou no quarto do pai, ao qual não
ia já fazia meses. De resto não havia necessidade disso, pois sempre
encontrava o pai na loja e almoçavam juntos num restaurante; à noite, efetivamente,
cada um cuidava de si a seu critério, mas na maioria das vezes, quando Georg
não estava com os amigos ou visitava a noiva, o que acontecia com mais
frequência, ficavam sentados ainda um pouco na sala de estar comum, cada qual
com o seu jornal.
Surpreendeu Georg como estava escuro o quarto do pai
mesmo nessa manhã ensolarada. A sombra era pois lançada pelo muro alto que se
erguia do outro lado do estreito pátio. O pai estava sentado junto à janela,
num canto enfeitado com varias lembranças da finada mãe, e lia o jornal
segurando-o de lado para compensar alguma deficiência da vista. Sobre a mesa
jaziam os restos do café́ da manhã, do qual não parecia ter sido consumida
muita coisa.
— Ah, Georg! — disse o pai e caminhou ao seu encontro.
Seu roupão pesado se abriu quando andava e as pontas
esvoaçaram em volta dele. “Meu pai continua sendo um gigante”, pensou Georg
consigo.
— Aqui está insuportavelmente escuro — disse depois.
— É verdade, está escuro — respondeu o pai.
— Você fechou também a janela?
— Prefiro assim.
— Fora está fazendo bastante calor — disse Georg como
um acréscimo ao que havia dito antes e sentou-se.
O pai retirou a louça do café́ e colocou-a em cima de
uma cômoda.
— Na realidade eu só queria dizer a você — continuou
Georg, acompanhando completamente absorto os movimentos do velho — que acabo de
anunciar a São Petersburgo o meu noivado.
Puxou um pouco a carta de dentro do bolso e deixou-a
cair outra vez.
— Como assim, a São Petersburgo? — perguntou o pai.
— Ao meu amigo, é claro — disse Georg buscando os
olhos do pai.
“Na loja ele é totalmente diferente do que é aqui,
sentado com todo o peso do corpo e os braços cruzados sobre o peito”, pensou
— Ah, sim, ao seu amigo — disse o pai com ênfase.
— Você sabe muito bem, pai, que a principio eu quis
ocultar o meu noivado dele. Por consideração, por nenhum outro motivo. Você̂
mesmo sabe que ele é uma pessoa difícil. Eu disse cá́ comigo: ele pode ter
noticia do meu noivado através de terceiros, embora seja pouco provável com o
tipo de vida solitária que leva — isso eu não posso evitar —, mas por mim é
que ele não deve ficar sabendo.
— E agora você mudou de opinião? — perguntou o pai,
pôs o amplo jornal sobre o parapeito da janela e sobre os óculos, que cobriu
com a mão.
— É, agora mudei de opinião. Se ele é um bom amigo,
pensei comigo, então um noivado que me faz feliz é também uma felicidade para
ele. Por isso não hesitei mais em anunciá-lo. Antes porem de remeter a carta,
queria dizer isso a você.
— Georg — disse o pai esticando para os lados a boca
desdentada —, ouça bem. Você̂ veio a mim para se aconselhar comigo sobre esse
assunto. Isso o honra, sem duvida. Mas não é nada, é pior do que nada, se
você̂ agora não me disser toda a verdade. Não quero levantar questões que não cabem
aqui. Desde a morte da nossa querida mãe aconteceram certas coisas que não são
nada bonitas. Talvez chegue a hora de também discuti-las — e talvez ela chegue
mais cedo do que pensamos. Na loja muita coisa foge ao meu controle, talvez não
pelas minhas costas — não quero agora supor que seja pelas minhas costas —, não
tenho mais força suficiente, minha memoria começa a falhar, já́ não tenho visão
para tudo isso. Em primeiro lugar, é o curso da natureza; em segundo, a morte
da nossa mamãe me abateu muito mais do que a você. Mas já que estamos falando
desse assunto, dessa carta, peço-lhe por favor, Georg, que não me engane. É uma
ninharia, não vale nem um suspiro, por isso não me engane. Você realmente tem
esse amigo em São Petersburgo?
Georg levantou-se, embaraçado.
— Vamos deixar de lado os amigos. Para mim mil amigos
não substituiriam meu pai. Sabe o que eu acho? Você não se poupa o necessário.
Mas a idade reclama os seus direitos. Você sabe muito bem que me é
indispensável na loja, mas se for para ela ameaçar sua saúde, amanhã mesmo eu
a fecho definitivamente. E isso não é possível. Portanto temos de encontrar um
novo modo de vida para você. Radicalmente novo. Você fica sentado aqui no
escuro, no entanto na sala de estar teria uma boa luz. Belisca o café da manhã
ao invés de se alimentar direito. Senta-se junto à janela fechada quando o ar
lhe faria tão bem. Não, pai! Vou chamar o medico e nós seguiremos as
prescrições dele. Vamos trocar de quarto, você vai para o da frente, eu venho
para este. Não significará nenhuma mudança para você, todas as suas coisas
serão transportadas junto. Mas tudo isso tem tempo, deite-se agora mais um
pouco na cama, você precisa de repouso sem falta. Venha, vou ajudá-lo a tirar
a roupa, você̂ vai ver como sei fazer isso. Ou quer ir já para o quarto da
frente? Se é assim, deite-se por enquanto na minha cama. Alias, seria uma
coisa muito sensata.
Georg estava em pé bem ao lado do pai, que tinha
deixado pender sobre o peito a cabeça de cabelos brancos e desgrenhados.
— Georg — disse o pai em voz baixa, sem se mover.
Georg ajoelhou-se imediatamente ao seu lado, viu nos
cantos dos olhos do rosto cansado do pai as pupilas dilatadas se voltarem para
ele.
— Você não tem nenhum amigo em São Petersburgo. Você
sempre foi um trapaceiro e não se conteve nem mesmo diante de mim. Como iria
ter justamente lá um amigo? Não posso de maneira alguma acreditar nisso.
— Pense outra vez, pai — disse Georg, erguendo o velho
da cadeira e lhe tirando o roupão, enquanto o pai ficava em pé numa posição
frágil. — Agora vai fazer três anos que o meu amigo nos fez uma visita. Ainda
me lembro que você não simpatizou muito com ele. Pelo menos duas vezes omiti de
você a sua presença, embora ele estivesse sentado logo ali no meu quarto. Eu
podia compreender perfeitamente sua aversão por ele: meu amigo tem muitas
idiossincrasias. Mas depois você sem duvida se entendeu bem com ele. Na ocasião
fiquei muito orgulhoso porque você lhe deu atenção, assentiu com a cabeça e lhe
fez perguntas. Se pensar um pouco, logo vai se lembrar. Daquela vez ele contou
historias incríveis sobre a Revolução Russa. Como por exemplo ter visto, numa viagem
de negócios, durante um tumulto em Kiev, um padre que, no alto de uma sacada,
havia cortado na palma da mão uma grande cruz de sangue, levantando-a enquanto
conclamava a multidão. Você mesmo contou aqui e ali essa historia para outras
pessoas.
Nesse meio tempo Georg tinha conseguido fazer o pai se
sentar outra vez, despindo com cuidado a calça de malha que ele vestia sobre as
ceroulas de linho, bem como as meias. Ao ver que a roupa de baixo não estava
muito limpa, censurou-se por ter descuidado do pai. Teria sido sem duvida seu
dever zelar pela troca dessa roupa. Ainda não havia conversado expressamente
com a noiva sobre a maneira como pretendiam organizar o futuro do velho, pois
tinham admitido de forma tácita que ele iria ficar sozinho na antiga casa.
Nesse momento porém ele decidiu, rápido e com toda firmeza, levá-lo para sua
futura residência. Num exame mais atento, quase parecia que o tratamento a ser
lá dispensado ao pai poderia estar vindo tarde demais.
Carregou nos braços o velho para a cama. Teve um
sentimento terrível quando, ao dar uns poucos passos até lá, notou que o pai
estava brincando com a corrente do seu relógio. Não conseguiu colocá-lo logo
na cama, tão firme ele se agarrava à corrente.
Mas mal o pai ficou na cama tudo pareceu estar bem.
Ele mesmo se cobriu e depois puxou o cobertor bem acima dos ombros. Ergueu os
olhos para Georg de um modo não inamistoso.
— Você já se lembra dele, não é verdade? — perguntou
Georg enquanto lhe fazia um aceno de estímulo com a cabeça.
— Estou bem coberto agora? — perguntou o pai, como se
não pudesse verificar se os pés estavam suficientemente protegidos.
— Então você já se sente bem na cama — disse Georg,
estendendo melhor as cobertas sobre ele.
— Estou bem coberto? — perguntou o pai outra vez;
parecia estar particularmente atento à resposta.
— Fique tranquilo, você está bem coberto.
— Não! — bradou o pai de tal forma que a resposta
colidiu com a pergunta, atirou fora a coberta com tamanha força que por um
instante ela ficou completamente estirada no voo e pôs-se em pé́ na cama,
apoiando-se de leve só́ com uma mão no forro. — Você queria me cobrir, eu sei
disso, meu frutinho, mas ainda não estou recoberto. E mesmo que seja a ultima
força que tenho, ela é suficiente para você, demais para você. É claro que
conheço o seu amigo. Ele seria um filho na medida do meu coração. Foi por isso
que você o traiu todos esses anos. Por que outra razão? Você pensa que não
chorei por ele? É por isso que você se fecha no seu escritório: ninguém deve
incomodar, o chefe está ocupado — só́ para que possa escrever suas cartinhas
mentirosas para a Rússia. Mas felizmente ninguém precisa ensinar o pai a ver o
filho por dentro. E agora que você acredita tê-lo aos seus pés, tão submetido
que é capaz de sentar em cima dele com o traseiro sem que ele se mova, o
senhor meu filho se decidiu casar!
Georg levantou os olhos para a imagem aterrorizante do
pai. O amigo de São Petersburgo, que de repente o pai conhecia tão bem, o
comoveu como nunca antes. Viu-o perdido na vasta Rússia. Viu-o na porta da loja
vazia e saqueada. Entre os escombros das prateleiras, das mercadorias
destrocadas, dos tubos de gás caindo, ele ainda continuava em pé́. Por que
tinha precisado viajar para tão longe?
— Mas olhe para mim! — bradou o pai, e Georg, quase
distraído, correu até a cama para registrar tudo, mas ficou parado no meio do
caminho.
— Só́ porque ela levantou a saia — começou o pai em
voz de falsete —, só́ porque a nojenta idiota levantou a saia — e para fazer a
mimica suspendeu tão alto o camisolão, que dava para ver na parte superior da
coxa a cicatriz dos seus anos de guerra —, só́ porque ela levantou a saia
assim, assim e assim, você̂ foi se achegando, e para que pudesse se satisfazer
nela sem ser perturbado, você̂ profanou a memoria da sua mãe, traiu o amigo e
enfiou seu pai na cama para que ele não se movesse. Mas ele pode ou não se
mover?
E, sem se apoiar em nada, passou a esticar as pernas
para a frente. Resplandecia de perspicácia.
Georg encolheu-se a um canto o mais possível distante
do pai. Fazia já algum tempo tinha tomado a firme decisão de observar tudo de
maneira absolutamente precisa, para não ser surpreendido num descaminho, seja
por trás ou de cima para baixo. Lembrou-se nesse momento da decisão há muito
esquecida e a esqueceu de novo, como um fio curto que se enfia pelo buraco de
uma agulha.
— Mas o seu amigo não foi atraiçoado! — exclamou o
pai, sublinhando a fala com o dedo indicador que se mexia de lá para cá. — Eu
era o seu representante aqui no lugar.
— Comediante! — gritou Georg sem conseguir se conter,
reconheceu logo o erro e, com os olhos arregalados, mordeu — só que tarde
demais — a língua com tanta força que se dobrou de dor.
— Sim, sem dúvida interpretei uma comédia! Comédia!
Boa palavra! Que outro consolo restava ao velho pai viúvo? Diga — e no instante
da resposta seja ainda o meu filho vivo — o que me restava, neste meu quarto
dos fundos, perseguido pelos empregados desleais, velho até os ossos? E o meu
filho caminhava triunfante pelo mundo, fechava negócios que eu tinha preparado,
dava cambalhotas de satisfação e passava diante do pai com o rosto circunspecto
de um homem respeitável! Você acha que eu não o teria amado — eu, de quem você̂
saiu?
“Agora vai se inclinar para a frente”, pensou Georg. “Se
ele caísse e rebentasse!” Essa palavra passou zunindo pela sua cabeça.
O pai se inclinou para a frente, mas não caiu. Uma vez
que Georg não se aproximou como ele esperava, endireitou o corpo outra vez.
— Fique onde está, não preciso de você! Julga que
ainda tem força para vir até aqui e que só não faz isso porque não quer.
Cuidado para não se enganar! Continuo sendo de longe o mais forte. Sozinho eu
talvez precisasse recuar, mas sua mãe me transmitiu a energia que tinha,
liguei-me ao seu amigo de uma forma estupenda e tenho aqui no bolso a sua
clientela!
“Até no camisolão ele tem bolsos!”, disse Georg a si
mesmo; achava que com essa observação podia tornar-lhe a vida impossível no
mundo inteiro. Pensou assim só́ por um instante, pois continuava esquecendo
tudo.
— Pendure-se na sua noiva e venha ao meu encontro! Vou
varrê-la do seu lado, você não imagina como!
Georg fez caretas como se não acreditasse nisso. O pai
simplesmente acenou com a cabeça, acentuando a verdade do que estava dizendo,
em direção ao canto de Georg.
— Como você̂ hoje me divertiu quando veio perguntar se
devia escrever ao seu amigo sobre o noivado! Ele sabe de tudo, jovem estupido,
ele sabe de tudo! Eu escrevi a ele porque você̂ se esqueceu de me tirar o
material para escrever. É por isso que há anos ele não vem, ele sabe de tudo
cem vezes mais do que você̂ mesmo, amassa sem abrir as suas cartas na mão
esquerda enquanto com a direita segura as minhas diante dos olhos para ler.
De entusiasmo, arremessou o braço sobre a cabeça.
— Ele sabe de tudo mil vezes melhor! — gritou.
— Dez mil vezes! — disse Georg para ridicularizar o
pai, mas já́ na sua boca as palavras ganharam uma tonalidade mortalmente séria.
— Estava aguardando há anos que você̂ viesse com essa
pergunta. Você̂ acha que eu me preocupava com qualquer outra coisa? Você acha
que leio jornais? Olhe aí — e atirou na direção de Georg uma folha de jornal
que de algum modo tinha sido carregada para a cama, um jornal velho, com um
nome já completamente desconhecido de Georg.
— Quanto tempo você levou para amadurecer! Sua mãe
precisou morrer, não pode viver o dia da alegria, o amigo se arruinando na
Rússia — três anos atrás ele já estava amarelo de jogar fora — e quanto a mim
você está vendo como vão as coisas. É para isso que tem olhos!
— Então você ficou à minha espreita — bradou Georg.
Compassivamente disse o pai, de passagem:
— Provavelmente você queria dizer isso antes. Agora já
não dá mais.
E em voz alta:
— Agora portanto você sabe o que existia além de você,
até aqui sabia apenas de si mesmo! Na verdade você era uma criança inocente,
mas mais verdadeiramente ainda você era uma pessoa diabólica! Por isso saiba
agora: eu o condeno à morte por afogamento!
Georg sentiu-se expulso do quarto, levando ainda nos
ouvidos o baque com que o pai, atrás dele, desabou sobre a cama. Na escadaria,
sobre cujos degraus passou correndo como se fosse por cima de uma superfície
obliqua, atropelou a criada que se dispunha a subir para arrumar a casa pela
manhã.
— Jesus! — exclamou ela, cobrindo o rosto com o
avental, mas ele já tinha desaparecido. No portão do prédio deu um pulo,
impelido sobre a pista da rua em direção à agua. Já agarrava firme a amurada,
como um faminto a comida. Saltou por cima dela como o excelente atleta que tinha
sido nos anos de juventude para orgulho dos pais. Segurou-se ainda com as mãos
que ficavam cada vez mais fracas, espiou por entre as grades da amurada um
ônibus que iria abafar com facilidade o barulho da sua queda e exclamou em voz
baixa:
— Queridos pais, eu sempre os amei — e se deixou cair.
Nesse momento o transito sobre a ponte era praticamente interminável.
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