Este é – na minha opinião – um dos melhores contos de
todos os tempos. Escrito pelo autor americano J. D. Salinger (1919 – 2010) foi
publicado em 1950 pela revista New Yorker. Para comprender o texto três datas
são importantes: abril de 1950 – data
em que o narrador recebe o convite descrito nos dois primeiros parágrafos; abril de 1944 (semanas antes do 6 de
Junho Dia D) – data do encontro com Esmé e; abril
de 1945 – depois do fim da guerra, quando o texto descreve o Sargento X.
Lembrando ainda que entre Abril de 1944 e Abril de 1945 Salinger, então
sargento de infantaria encarregado de interrogar prisioneiros, participou do
desembarque na praia de Utah, da Batalha de Bulge (onde morreram 19 mil
soldados americanos) e das batalhas na Floresta de Hürtgen onde outros 33 mil
soldados norte americanos morreram. Interessante também notar que a falta de sensibilidade do
narrador nos dois primeiros parágrafos, contrasta com a profunda sensibilidade
do personagem em 1944 e 1945, o que parece indicar que suas “faculdades mentais”
ainda não tinham sido completamente reestabelecidas. (Como o livro está esgotado e não encontrei o texto na internet, eu mesmo digitei a magnifica tradução
abaixo – desculpem pelos equívocos)
Para
Esmé, com amor e sordidez
J. D. Salinger
Publicado no Brasil por Editora do
Autor com tradução de Jório Dauster Magalhães e Silva e Álvaro Gurgel
Alencar
Outro dia recebi, por via aérea, um convite para um
casamento que se vai realizar na Inglaterra, no dia 18 de abril. Acontece que
eu gostaria muito de assistir a esse casamento e, quando o convite chegou,
pensei em dar um jeito qualquer de fazer a viagem. Pegava um avião... e as
despesas que se danassem. Mas desde então discuti exaustivamente o problema com
minha mulher, que é uma moça espantosamente sensata, e nos decidimos contra a
ideia: entre outras razões, tinha esquecido por completo que minha sogra esta
planejando passar conosco as duas ultimas semanas de abril. Na verdade quase
nunca vejo a mamãe Grencher, e os anos já lhe vão pesando. Esta com cinquenta e
oito (como seria a primeira a admitir).
Seja como for, quer eu afinal vá ou não, nunca fui
dessas pessoas que, por mera preguiça, deixam que um casamento transcorra em
meio à maior chatice. Por isso, pus mãos à obra e passei para o papel algumas
observações reveladoras sobre a noiva, tal como conheci há quase seis anos. Se
minhas notas causarem um ou outro momento de embaraço ao noivo, a quem nunca
vi, tanto melhor. Ninguém aqui esta interessado em ser simpático. A intenção é,
isto sim, educar, instruir.
Em abril de 1944 eu integrava um grupo de cerca de
sessenta soldados americanos submetidos a um curso de treinamento pré-invasão,
bastante especializado, ministrado pelo serviço inglês de espionagem em Devon,
na Inglaterra. Quando relembro aqueles dias, acho que o traço característico de
nosso grupo estava em que dentre os sessenta, não havia um único sujeito capaz
de fazer camaradagem com facilidade. Éramos todos essencialmente do tipo que
escreve cartas e, quando nos falávamos fora das horas de serviço, era quase
sempre para pedir emprestado um pouco de tinta. Quando não estávamos escrevendo
cartas ou assistindo às aulas, cada qual tratava de seguir seu próprio caminho.
De minha parte, quando fazia sol eu ia passear pelo campo, olhando a paisagem.
Em dias de chuva, geralmente sentava-me em algum lugar seco e lia um livro,
frequentemente a dois passos de uma inútil mesa de pingue-pongue.
O curso de treinamento durou três semanas, terminando
num sábado muito chuvoso. Nessa noite, as sete horas, o grupo todo devia tomar
um trem para Londres, onde, segundo se dizia, seriamos designados para divisões
de infantaria e de paraquedistas expressamente organizadas para os desembarques
do Dia D. Por volta das três da tarde já tinha arrumado todas as minhas
coisas no saco de campanha, inclusive a caixa que deveria conter a máscara
contra-gás – cheia de livros que eu trouxera do Outro Lado. (Algumas semanas
antes eu havia atirado a máscara por uma escotilha do Mauritânia,
perfeitamente cônscio de que, se o inimigo realmente resolvesse fazer uso do
gás, eu jamais conseguiria colocar a droga da máscara em tempo.) Lembro-me de
ter ficado um tempão diante da janela dos fundos de nossa barraca, vendo a
chuva cair de forma obliqua e tediosa. Meu dedo do gatilho coçava de maneira
quase imperceptível, se tanto. Atrás de mim podia ouvir o som pouco amistoso de
muitas canetas escrevendo sobre muitas folhas de papel de carta aérea. De
repente, sem qualquer proposito definido, afastei-me da janela e vesti a capa
de chuva, o cachecol de cachemira, as galochas, as luvas de lã e o quepe (que,
segundo me diziam, eu usava num angulo todo especial – ligeiramente caído sobre
as orelhas). Aí, depois de acertar meu relógio de pulso pelo relógio do
banheiro, desci a colina em direção à cidade, pelo longo e escorregadio caminho
de paralelepípedos. Tratei de ignorar os relâmpagos que caiam a minha volta: ou
bem eles trazem o endereço da gente ou não trazem.
No centro da cidade, provavelmente o lugar mais
alagado da região, parei em frente a uma igreja para ler o quadro de avisos,
principalmente porque os números, pintados de branco sobre o fundo preto,
tinham atraído minha atenção, mas em parte também porque, depois de três anos
no exército, eu já estava viciado em ler quadros de aviso. Às três e quinze,
segundo o quadro, haveria um ensaio do coro infantil. Olhei para meu relógio e
outra vez para o quadro. Numa folha de papel estavam relacionadas as crianças
que deveriam participar do ensaio. Li todos os nomes ali em pé, na chuva, e
depois entrei na igreja.
Uns dez adultos se achavam espalhados pelos bancos,
alguns deles segurando no colo pequenas galochas, as solas voltadas para cima.
Passei por eles e fui instalar-me na primeira fila. Sobre uma plataforma,
sentadas em três filas cerradas de cadeiras de auditório, havia umas vinte
crianças, na maioria meninas, variando em idade dos sete aos treze anos.
Naquele momento, a regente do coro – uma mulher enorme, com um vestido de tweed
– estava aconselhando as crianças a abrirem mais a boca ao cantar. Alguém já
ouviu falar, perguntou ela, de algum passarinhozinho que ouse cantar sua
linda canção sem antes abrir o biquinho bem aberto? Aparentemente
ninguém jamais ouvira: as crianças responderam-lhe com um olhar imóvel e opaco.
Ela prosseguiu, dizendo que queria que todas as suas criancinhas
absorvessem o significado das palavras que cantassem, não se contentando
simplesmente em repeti-las como uns papagaios. Soprou então uma nota no
diapasão e as crianças, qual halterofilistas precoces, ergueram seus hinários.
Cantaram sem acompanhamento instrumental – ou mais
precisamente no caso, sem qualquer interferência. Suas vozes eram melodiosas e
em nada afetadas, a tal ponto que alguém dotado de maior religiosidade do que
eu poderia ter levitado sem o menor esforço. Uma ou duas crianças menores
atrasavam um pouquinho, mas de um modo que só a mãe do compositor poderia
criticar. Eu nunca tinha ouvido aquele hino e fiquei torcendo para que tivesse
umas doze estrofes ou mais. Enquanto ouvia, fui examinando os rostos de todas
as crianças, mas observei um em particular, o da menina que estava sentada mais
próximo de mim, na ultima cadeira da fila da frente. Devia ter uns treze anos,
cabelos de um louro acinzentado que caiam até a altura dos lóbulos das orelhas,
uma testa perfeita e uns olhos blasé que, pensei comigo, muito
possivelmente já teriam registrado o numero de espectadores presentes. Sua voz
destacava-se claramente das demais, não apenas porque ela estivesse mais perto
de mim. Tinha o registro mais alto, era a que soava mais doce, a mais firme, e
automaticamente liderava as outras vozes. A mocinha, no entanto, parecia
ligeiramente entediada com sua própria habilidade vocal, ou talvez apenas com
as circunstancias de tempo e lugar; duas vezes, entre uma e outra estrofe, eu a
vi bocejar. Era um bocejo muito bem educado, um bocejo de boca fechada, mas
dava para se notar: as narinas a traiam.
Mal o hino chegara ao fim, a regente do coro começou a
dissertar longamente sobre as pessoas que não sabem manter os pés parados e a
boca hermeticamente fechada durante o sermão. Concluí que a parte cantada do
ensaio havia terminado e, antes que a voz dissonante da regente quebrasse todo
o encantamento criado pela musica das crianças, levantei-me e saí da igreja.
A chuva tinha aumentado. Desci a rua e, através da
janela. dei uma olhada no salão de diversões da Cruz Vermelha, mas havia um
monte de soldados diante do balcão de café e mesmo através do vidro dava para
ouvir o som de bolas e pingue-pongue na sala ao lado. Atravessei a rua e entrei
numa casa de chá comum, inteiramente deserta a não ser pela garçonete, mulher
de meia idade que parecia preferir um freguês com uma capa de chuva menos
encharcada. Pendurei a capa com maior cuidado possível, sentei-me a uma mesa e
pedi chá com torradas. Era a primeira vez que eu falava com alguém naquele dia.
Dei então uma batida por todos os meus bolsos, inclusive os da capa, e acabei
encontrando algumas cartas antigas para reler; uma, de minha mulher, contava
como havia piorado o serviço no Restaurante Schrafft da rua Oitenta e Oito;
outra, de minha sogra, pedia-me o obsequio de lhe mandar novelos de cachemira,
na primeira ocasião em que escapulisse do “acampamento”.
Enquanto eu ainda estava na primeira xicara de chá,
entrou na sala a mocinha que eu ficara olhando e ouvindo durante o ensaio do
coro. Seu cabelo estava empapado, deixando aparecer as bordas das orelhas. Com
ela vinha um garoto bem pequenininho, certamente seu irmão, cujo boné ela
removeu com dois dedos, como se fosse um espécime de laboratório. Fechando a
fila entrou uma mulher de jeitão eficiente, com um chapéu de feltro mole,
presumivelmente a governanta dos dois. A participante do coro,
desvencilhando-se do casaco enquanto andava, escolheu a mesa – uma boa mesa, de
meu ponto de vista, pois ficava a uns três metros de distancia, bem a minha
frente. Ela e a governanta se sentaram. O garotinho , que devia ter uns cinco anos,
ainda não estava pronto para se sentar. Esgueirou-se para fora do casaco e, com
expressão imperturbável de quem já nasceu fazendo alguma travessura, começou a
chatear a governanta metodicamente, empurrando varias vezes a cadeira para
frente e para trás, olhando para ela o tempo todo. A governanta, esforçando-se
por falar baixo, deu umas duas ou três ordens para que ele se sentasse e,
afinal, parasse com a gracinha. Mas só quando a irmãlhe falou é que ele
resolveu acalmar-se e repousar o traseiro no assento. Imediatamente apanhou o
guardanapo e o pôs em cima da cabeça. A mocinha removeu o guardanapo, abriu –o
e colocou no colo dele.
Mais ou menos na hora em que lhes era servido o chá, a
participante do coro, apanhou-me espiando sua mesa. Encarou-me de volta, com
aqueles olhos de quem calcula o numero de espectadores, e aí, de repente,
deu-me um sorriso breve e condicional. Estranhamente radiante, como são, as
vezes, alguns sorrisos breves e condicionais. Sorri em resposta, de maneira
muito menos radiante, mantendo o lábio superior firmemente plantado sobre uma
obturação provisória que me haviam feito no exército, negra como carvão, bem
visível entre dois de meus dentes da frente. Quando dei por mim a mocinha se
encontrava de pé, com invejável pose, ao lado da minha mesa. Estava com um
vestido de tecido escocês – com o padrão do clã de Campbell, se não me engano.
Pareceu-me o tipo de vestido ideal para ser usado por uma mocinha num dia assim
tão chuvoso.
– Eu pensava que os americanos detestassem chá – ela
falou.
Não disse isso pata se fazer de engraçadinha, mas
antes como alguém interessado na verdade ou em informações estatísticas.
Respondi que alguns de nós só tomávamos chá. Convidei-a para sentar-se
comigo.
– Obrigada – respondeu – Talvez por um segundinho.
Levantei-me e afastei a cadeira para ela, a que ficava
na minha frente; sentou-se na beirada do assento, mantendo o corpo ereto, com
graça e leveza. Voltei para minha cadeira, quase correndo, mais do que disposto
a estimular a conversa. Mas, quando me vi sentado. não consegui pensar em nada
para dizer. Sorri outra vez, mantendo ainda escondida minha negra obturação.
Comentei que estava fazendo um tempo horrível lá fora.
– É, péssimo – retrucou minha convidada com a
entonação significativa de quem odeia esse tipo de conversinha fiada. Pousou os
dedos firmemente sobre a borda da mesa, como se estivesse numa sessão espirita,
e logo em seguida – quase instantaneamente – fechou as mãos: suas unhas estavam
roídas até o sabugo. Usava um relógio de pulso de feitio militar, mais
parecendo o cronômetro de algum comandante de navio, grande demais para pulso
tão fino.
– Você assistiu ao ensaio do coro – ela comentou, em
tom desinteressado. – Eu te vi lá.
Confirmei que havia estado lá e notara como a voz dela
se destacava das demais. Disse que tinha achado sua voz magnífica.
Concordou com a cabeça e falou – Eu sei. Vou ser
cantora profissional.
– É mesmo? Opera?
– Não pelo amor de Deus. Vou cantar jazz no radio e
ganhar um monte de dinheiro. Aí, quando tiver trinta anos, me aposento e vou
viver numa fazenda, em Ohio.
Tocou o alto da cabeça encharcada com a palma da mão.
– Você conhece Ohio? – perguntou.
Respondi que já havia atravessado o Estado algumas
vezes, de trem, mas que não conhecia direito aquela região. Ofereci-lhe uma
torrada.
– Não obrigada. Para dizer a verdade, eu como muito
pouco.
Mordi uma fatia de torrada e comentei que, em Ohio,
havia lugares onde a vida era bem dura.
Eu sei disso. Um americano que eu conheci me disse
isso. Você é o decimo-primeiro americano que eu encontro.
A essa altura a governanta estava fazendo sinais
insistentes em sua direção, para que voltasse à mesa – ou seja, para que
deixasse de incomodar o rapaz. Minha convidada, entretanto, ajeitou calmamente
a cadeira de modo a que suas costas impedissem qualquer possibilidade futura de
comunicação com a mesa de origem.
– Você esta frequentando aquela escola do serviço
secreto no alto do morro, não é? – indagou-me firmemente.
Por dever de ofício, respondi-lhe que estava visitando
Devonshire por motivos de saúde.
– Pois sim – respondeu – Eu não nasci ontem, sabe?
Respondi que, quanto a isso, não tinha a menor duvida.
Tomei meu chá por alguns momentos. Estava começando a ficar ligeiramente
preocupado com minha postura, por isso sentei-me mais empertigado na cadeira.
– Para um americano, você parece muito inteligente –
minha convidada ponderou.
Respondi-lhe que, pensando bem, aquilo era o tipo da
coisa esnobe de se dizer, além de não se uma observação digna de uma pessoa
como ela.
Ela corou, outorgando-me automaticamente a afirmação
social que me vinha faltando.
– Bem, a maioria dos americanos que eu vi agem
como uns animais. Estão sempre se socando e xingando todo mundo, e ... você
sabe o que um deles fez?
Fiz que não com a cabeça.
– Jogou uma garrafa de uísque vazia pela janela de
minha tia. Felizmente a janela estava aberta. Você acha isso muito
inteligente?
Não me pareceu particularmente inteligente, mas não
disse isso. Expliquei que, pelo mundo afora, muitos soldados estavam longe de
suas casas e poucos deles haviam sido bem tratados pela vida. Pensava mesmo que
qualquer pessoa era capaz de compreender isto sozinha.
– Talvez – respondeu minha convidada sem convicção.
Levantou outra vez a mão até a cabeça molhada e ajeitou alguns fios soltos de
cabelo louro, tentando encobrir as orelhas.
– Meu cabelo está encharcado. Devo estar horrorosa
–falou, olhando para mim – Meu cabelo é bem ondulado quando está seco.
– Dá para perceber, eu já tinha notado.
– Não chega a ser crespo, mas é bem ondulado.
Você é casado?
Respondi que era.
Ela sacudiu a cabeça… – Você é apaixonado por sua
mulher? Ou estou sendo muito indiscreta?
Respondi que, quando ela se tornasse indiscreta, eu o
diria.
Ela moveu as mãos e os pulsos mais para o centro da
mesa – e lembro-me de ter desejado fazer alguma coisa com aquele enorme relógio
de pulso, talvez sugerir que ela usasse em volta da cintura.
– Em geral eu não sou exageradamente gregária – ela
disse olhou para mim, como querendo ver se eu compreendera ou não o significado
da palavra. Mas nada fiz que pudesse indicar uma coisa ou outra. – Só vim até
sua mesa porque achei que você parecia extremamente solitário. Você tem um
rosto muito sensível.
Falei que ela tinha razão, que eu de fato estava me
sentindo solitário e ficara muito satisfeito por ela ter vindo até minha mesa.
– Estou me esforçando para ser mais compassiva. Minha
tia diz que eu sou uma pessoa terrivelmente fria – falou, levando novamente a
mão até o alto da cabeça. – Eu vivo com minha tia. Ela é uma pessoa
extremamente bondosa. Desde a morte de minha mãe ela tem feito todo o possível
para que eu e Charles nos sintamos ajustados.
– Que bom...
– Mamãe era muitíssimo inteligente. Muito sensual, em
vários sentidos.
Olhou-me com uma espécie de renovada intensidade.
– Você me acha terrivelmente fria?
Respondi que absolutamente não achava – na verdade,
muito pelo contrario. Disse meu nome e perguntei pelo dela.
Hesitou: – Meu primeiro nome é Esmé. Acho que, por
enquanto não lhe devo dizer todo o meu nome. Eu tenho um titulo de nobreza e
pode ser que você se impressione com títulos. Os americanos se impressionam com
esse tipo de coisa, você sabe.
Falei que não achava que fosse ficar impressionado,
mas não era má ideia ela deixar para revelar seu titulo mais tarde.
Nesse justo instante senti o bafo quente de alguém
respirando bem atrás do meu pescoço. Virei-me e, por um triz, não rocei meu
nariz no irmãozinho de Esmé. Como se eu não existisse, dirigiu-se a irmã, em
voz aguda e cortante.
– Miss Megley disse pra você ir acabar de tomar o chá!
Transmitida a mensagem, retirou –se para a cadeira que
ficava à minha direita, entre mim e sua irmã. Olhei-o com grande interesse. Ele
estava elegantíssimo, de calças marrons, casaco azul-marinho, camisa branca e
gravata listrada. Encarou-me de volta, com uns imensos olhos verdes.
– Por quê as pessoas nos filmes se beijam sempre de
lado? – inquiriu-me
– De lado? – Perguntei. Esse problema também me havia
preocupado quando eu era criança. Respondi que achava que era porque os narizes
dos artistas eram grande demais para eles se poderem beijar de frente.
– Ele se chama Charles – disse Esmé. – É extremamente
brilhante para a idade.
– Os olhos dele são um bocado verdes, não é Charles?
Charles respondeu-me com um olhar enjoado que minha
pergunta merecia e escorregou para a frente da cadeira, até que seu corpo todo
foi parar debaixo da mesa, com exceção da cabeça, que ele deixou ficar sobre o
assento.
– Eles são alaranjados – falou em voz forçada,
dirigindo-se ao teto. Apanhou uma beirada de toalha e cobriu seu rosto bonito e
impassível.
– As vezes ele é brilhante e outras vezes não é –
disse Esmé – Charles, senta direito!
Charles continuou onde estava. Parecia estar prendendo
a respiração.
– Ele sente muito a falta de meu pai. Papai foi
m-o-r-t-o no Norte da África – ela soletrou.
Expressei meu pesar pelo fato. Esmé sacudiu a cabeça e
disse.
– Papai adorava Charles.
Mordeu pensativamente a cutícula do polegar.
– Charles se parece muito com minha mãe. Eu sou
exatamente igual ao meu pai.
Continuou mordendo a cutícula.
– Minha mãe era uma mulher muito emotiva. Ela era
extrovertida, meu pai era introvertido. Mas eles combinavam muito bem, de um
modo superficial. Para ser franca, papai realmente precisava de uma companheira
mais intelectual do que mamãe. Ele era um verdadeiro gênio.
Esperei receptivamente por informações adicionais, mas
Esmé ficou nisso. Olhei para baixo, na direção de Charles, que estava agora com
o lado do rosto deitado no assento da cadeira. Quando notou que estava sendo
observado, fechou os olhos mansamente, angelicamente, e aí pôs a língua de fora
– uma peça de surpreendentes dimensões – deixando escapar um som que, no meu
país, teria sido um glorioso tributo a um juiz de beisebol míope. O barulho
fez virtualmente tremer a casa de chá.
– Para com isso – disse Esmé, nitidamente inabalada. –
Ele viu um americano fazer isso na fila do restaurante e agora repete sempre
que esta chateado. Para com isso agora, senão eu te mando diretamente para Miss
Megley.
Charles abriu os olhos enormes, sinal de que tinha
ouvido a ameaça da irmã, mas, afora isso, não demonstrou maiores cuidados.
Fechou os olhos novamente e continuou com o rosto deitado no assento.
Comentei que talvez ele devesse guardar aquele truque
– isto é, a vaia do Bronx – para quando começasse a usar normalmente seu titulo
nobiliárquico. Isto é, caso ele também tivesse algum titulo.
Esmé lançou-me um olhar demorado, vagamente clínico.
– Você tem um senso de humor muito apurado, não é? –
falou, suspirosa. – Papai dizia que eu não tinha nem um pouco de senso de
humor. Que eu estava despreparada para enfrentar a vida porque não tinha senso
de humor.
Encarando-a, acendi um cigarro e disse-lhe não
acreditar que o senso de humor tivesse qualquer utilidade numa hora de aperto.
– Papai disse que tinha.
Tratava-se de uma afirmação de fé, não de um
contra-argumento, por isso resolvi bater rapidamente em retirada. Balancei
afirmativamente a cabeça e disse que o pai dela provavelmente encarara a
questão sob uma perspectiva de longo prazo, enquanto eu a havia considerado em
sua projeção de curto prazo (embora até hoje eu não tenha a menor ideia do que isso
signifique).
– O Charles sente uma enorme falta dele – Esmé falou
alguns momentos depois. – Ele era um homem extremamente bom. E muito bonito
também. Não que a aparência de uma pessoa seja muito importante, mas ele era
bonito de verdade. Tinha uns olhos incrivelmente penetrantes, para um homem que
era intrinsecamente bondoso.
Concordei com a cabeça. Disse que imaginava que o pai
dela tinha um vocabulário riquíssimo.
– Ah, tinha! Fabuloso! – confirmou. – Ele era um
colecionador de documentos históricos... amador, naturalmente.
Nesse instante eu senti um tapa impertinente, quase um
soco, no meu braço direito, vindo do lado de Charles. Voltei-me para ele.
Estava sentado agora na cadeira, em posição bastante normal não fosse pela
circunstancia de ter uma perna dobrada por baixo do corpo.
– O que uma parede disse pra outra? – perguntou, com
aquela voz aguda. – É uma charada.
Levantei os olhos para o teto, pensativo, e repeti
alto a pergunta. Ai então olhei para Charles com ar de perplexidade e confessei
que desistia.
– Te encontro na esquina! – veio a solução, em volume
máximo.
A maior reação partiu do próprio Charles, que achou a
piada insuportavelmente engraçada. Na verdade, Esmé teve de levantar-se para ir
bater nas costas dele, como se estivesse com um aceso de tosse.
– Agora para como isso – ela disse, voltando a seu
lugar. – Ele conta essa charada a todo mundo e sempre tem um ataque.
Normalmente ele se baba todo quando ri. Agora para, por favor.
– Mas é uma das melhores charadas que eu já ouvi –
falei, olhando para Charles, que começava a recuperar-se do ataque. Em resposta
ao elogio, escorregou ainda mais para baixo da cadeira e voltou a cobrir o
rosto, até a altura dos olhos, com uma ponta da toalha. Aí então encarou-me com
os olhos descoberetos, carregados de uma alegria que se dissolvia lentamente,
com o orgulho de quem sabe umas charadas boas de verdade.
– Posso saber qual era a sua profissão antes da
guerra? – Esmé perguntou-me.
Respondi que não tinha emprego nenhum, que havia
terminado a universidade um ano antes de começar a guerra, embora gostasse de
me considerar um contista profissional.
Ela balançou a cabeça polidamente. – E seus contos já
foram publicados.
Tratava-se de uma pergunta familiar, embora sempre
embaraçosa, à qual eu não costumava responder com exagerada facilidade. Comecei
a explicar que a maioria dos editores dos Estados Unidos eram um bando de...
– Meu pai escrevia muito bem – Esmé interrompeu. –
Estou guardando varias cartas dele para a posteridade.
Falei que isso me parecia uma boa ideia. Por acaso dei
com os olhos outra vez sobre seu relógio de pulso com jeito de cronómetro, com
aquele mostrador enorme. Perguntei se havia pertencido a seu pai.
Ela examinou longamente o relógio, com toda a
solenidade.
– É era dele. Me deu de presente pouco antes de eu e o
Charles sermos evacuados – respondeu, enquanto escondia as mãos sob a mesa. –
Apenas como recordação é claro.
Ela mesma conduziu a conversa para outro assunto.
– Eu ficaria muito grata se você algum dia escrevesse
um conto exclusivamente para mim. Sou ávida por leitura.
Disse-lhe que certamente o faria, se pudesse.
Expliquei que não era terrivelmente prolífico.
– Não precisa ser terrivelmente prolífico! Basta que
não seja um conto bobo e infantil – ela disse, e depois se calou, pensativa. –
Eu prefiro estórias sobre sordidez e sofrimento.
– Sobre o quê? – perguntei , inclinando-me para a
frente.
– Miséria e sofrimento. Eu me interesso muito pela
sordidez e pelo sofrimento.
Eu já ia começar a solicitar-lhe maiores
esclarecimentos, mas senti um beliscão forte de Charles em meu braço. Voltei-me
para seu lado, com uma ligeira careta de dor. Ele estava novamente de pé, a meu
lado.
– O que é que uma parede disse para a outra? –
perguntou, de modo algop familiar.
– Você já perguntou isso a ele , Charles – Esmé disse.
– Agora para com isso.
Sem prestar atenção à irmã, e pisando sobree um dos
meus pés, Charles repetiu a pergunta-chave, Reparei que o laço de sua gravata
não estava no lugar devido. Apertei o nó, encarando-o, e aí, arrisquei: – Te
encontro na esquina!
Mal acabei de falar, arrependi-me inteiramente. A boca
do menino se abriu. Senti-me como se eu mesmo a tivesse aberto. Ele desceu de
cima de meu pé e, com furiosa dignidade, voltou para a sua mesa, sem olhar para
atrás.
– Ele esta fulo de raiva – Esmé disse. – Tem um
temperamento muito violento. Minha mãe costumava mimá-lo demais. Meu pai era o
único que não o mimava.
Continuei olhando para Charles, que se havia sentado e
começava a tomar o chá, segurando a xícara com as duas mãos. Tinha a esperança
de que ele se voltasse na minha direção, mas nem se mexeu.
Esmé levantou-se
– Il faut que je parte aussi – ela disse com um
suspiro. – Você fala francês?
Levantei-me
da cadeira com um misto de pesar e confusão. Trocamos um aperto de mãos; sua
mão, como eu suspeitava, era nervosa, a palma úmida. Disse-lhe, em inglês, o
quanto me fora agradável sua presença.
Ela concordou, sacudindo a cabeça. – Achei que você
gostaria. Eu sou muito comunicativa para a minha idade – falou, dando mais um
toque exploratório no cabelo. – Desculpe o jeito que está meu cabelo. – Eu
provavelmente estou com uma cara horrorosa de se olhar.
– Nada disso! Para dizer a verdade, acho que as ondas
já estão começando a aparecer.
Ela rapidamente levou a mão outra vez ao cabelo.
– Você acha que voltará por aqui num futuro próximo? –
Perguntou. – Todo sábado nós costumamos vir aqui, depois do ensaio do coro.
Respondi que gostaria muitíssimo de poder voltar, mas
que infelizmente tinha a certeza de que isso não seria possível.
– Em outras palavras, você não pode falar sobre os
movimentos da tropa – Esmé disse. Não fez qualquer menção de abandonar as
proximidades da mesa. Cruzou mesmo um pé sobre o outro e, olhando para baixo,
alinhou os bicos dos sapatos. Era uma exibiçãozinha digna de nota, porque ela
estava de meias brancas e seus pés e tornozelos eram muito bem feitos. Olhou-me
repentinamente.
– Você gostaria que eu escrevesse para você –
perguntou, seu rosto ganhando um colorido peculiar. – Eu escrevo umas cartas
muito maduras para uma pessoa de...
– Gostaria muito – respondi. Tirei do bolso papel e
lápis, e escrevi meu nome, posto, numero de serie e numero postal.
– Eu escrevo primeiro – ela disse, aceitando o pedaço
de papel e guardando-o num bolso do vestido. – Não quero que você se sinta
constrangido a escrever de modo algum. Adeus – falou, e voltou para sua mesa.
Pedi mais um bule de chá e fiquei olhando para eles,
até que os dois – e a afobada governanta – se levantassem para ir embora.
Charles seguia na frente, capengando tragicamente, como se tivesse uma perna
muito mais curta do que a outra. Não olhou para mim. A governanta vinha depois
e, por ultimo, Esmé, que acenou na minha direção. Respondi também com um aceno,
levantando-me ligeiramente da cadeira. Foi um momento estranhamente comovedor
para mim.
*
* *
Menos de um minuto depois Esmé voltou a entrar na casa
de chá, puxando Charles pela manga do casaco.
– O Charles quer te dar um beijo de despedida.
Descansei imediatamente a xícara e disse que era muito
gentil da parte dele mas... será que ela tinha certeza?
– Tenho – respondeu, com uma ponta de severidade.
Soltou a manga de Charles e deu-lhe um empurrão bastante vigoroso em minha
direção. Ele avançou, a face lívida, e deu-me um beijo estalado, molhado, bem
embaixo da ponta da orelha direita. Terminada a provação, fez menção de partir
em linha reta rumo à porta, em busca de uma existência menos sentimental, mas
peguei-o pelo cinto falso, nas costas do paletó; prendi-o firmemente e
perguntei:
– O que é que uma parede disse para outra?
Seu rosto iluminou-se – Te encontro na esquina! –
respondeu num guincho, e saiu correndo da sala, possivelmente em meio a um
ataque histérico.
Esmé continuava de pé, novamente com um tornozelo
cruzado sobre o outro.
– Você tem certeza de que não vai esquecer de escrever
aquele conto para mim? Não precisa ser exclusivamente para mim. Pode...
Falei que não havia a menor possibilidade de que eu
esquecesse. Disse-lhe que nunca tinha escrito um conto para ninguém, mas
parecia exatamente o momento oportuno para começar.
Ela concordou com a cabeça.
Procure escrever uma estória, extremamente sórdida e
comovente – sugeriu – Você tem alguma experiência pessoal de miséria humana?
Respondi que, a bem dizer, não tinha experiência
própria do assunto, mas que, de uma forma ou de outra, estava ficando cada dia
mais familiarizado com ela – e faria o possível para corresponder às
especificações. Trocamos um aperto de mãos.
– Não é uma pena que nós nos tenhamos encontrado em
condições tão desfavoráveis?
Respondi que sim, que certamente era uma pena.
– Adeus – Esmé disse – Espero que você saia da guerra
com suas faculdades mentais intactas.
Agradeci, disse mais algumas palavras e a acompanhei
com o olhar. Foi embora vagarosamente, pensativamente, tocando a ponta dos
cabelos para ver se já estavam secos.
*
* *
Esta é a parte sórdida ou comovente da historia, e o
cenário se modifica. Os atores também se modificam. Eu ainda estou nas
imediações mas daqui por diante, por razões que não estou autorizado a revelar,
disfarcei-me tão astuciosamente que nem mesmo o leitor mais atilado conseguira
reconhecer-me.
Deviam ser umas dez e meia da noite em Gaufurt, na
Bavária, algumas semanas depois do Dia da Vitoria. O Sargento X achava-se em
seu quarto, no segundo andar da casa onde, antes mesmo do armistício, ele e
outros nove soldados americanos haviam sido instalados. Estava sentado numa
cadeira de armar, de madeira, diante de uma pequena escrivaninha bastante
desarrumada. Lia com grande dificuldade um livro aberto à sua frente. A
dificuldade corria por sua conta, e não por conta do livro. Embora os soldados
que ocupavam o primeiro andar tivessem habitualmente acesso prévio aos livros
enviados todo mês pelo Departamento de Serviços Especiais, X parecia sempre
ficar com o livro que teria escolhido de qualquer maneira. Tratava-se, contudo,
de um jovem que não saíra da guerra com todas as faculdades mentais intactas –
e já há mais de uma hora vinha tendo que ler e reler cada paragrafo. Agora
estava tendo que seguir o mesmo processo com cada frase. De repente fechou o
livro, sem marcar a pagina. Por alguns instantes cobriu os olhos com a mão,
protegendo-os do clarão rude da lâmpada descoberta que brilhava sobre a
escrivaninha.
Tirou um cigarro do maço que havia em cima da mesa,
acendendo-o com dedos que se entrechocaram de leve, incessantemente. Chegou o
corpo um pouco para trás na cadeira e fumou sem sentir gosto algum. Ha semanas
que vinha fumando um cigarro atrás do outro. Suas gengivas sangravam à mais
leve pressão da ponta da língua, e ele raramente parava de repetir essa experiência;
era um pequeno jogo que ele às vezes praticava durante horas a fio. Ficou
sentado algum tempo, fumando e experimentando. Aí, de repente – da maneira já
familiar e, como sempre, sem qualquer aviso prévio – teve a sensação de que sua
mente se deslocava e ficava balançando, tal como bagagem mal assentada num
porta malas de trem. Rapidamente fez o que vinha fazendo há bastante tempo para
repor as coisas no lugar: apertou as mãos fortemente contra as têmporas.
Manteve-se assim, teso, por alguns instantes. Seu cabelo precisava ser cortado
e estava sujo. Tinha-o lavado três ou quatro vezes durante as duas semanas que
passara no hospital em Frankfort-sobre-o-Meno, mas o cabelo tinha-se sujado
novamente na longa e poeirenta viagem de jipe, ao voltar para Gaufurt. O Cabo
Z, que fora busca-lo no hospital, ainda dirigia seu jipe como se estivesse em
combate, com o para-brisas abaixado, houvesse ou não armistício. Havia milhares
de soldados recém chegados na Alemanha. Dirigindo com o para-brisas arriado, Z
queria mostrar que não era um deles, que de jeito nenhum era um desses filhos
da mãe recém-chegados com as tropas especiais de ocupação.
Quando largou a cabeça, X começou a olhar fixamente a
superfície da escrivaninha, onde se amontoavam pelo menos duas dúzias de cartas
não abertas e pelo menos cinco ou seis pacotes fechados, todos endereçados a
ele. Esticou o braço por cima do entulho e apanhou um livro que estava
encostado à parede. Era um livro de Goebbels, intitulado Die Zeit Ohne
Beispiel. Pertencera a uma mulher de trinta e oito anos, solteira, filha do
casal que até algumas semanas antes vivera naquela casa. Ela fora membro do
Partido nazista e, embora sua patente fosse baixa, era suficientemente alta
para justificar, à luz dos regulamentos militares, sua inclusão na categoria de
prisão automática. O próprio X a prendera. Agora, pela terceira vez desde que
voltara do hospital naquele dia, X abriu o livro da mulher e leu a curta
inscrição que havia na sobrecapa. Escritas a tinta, em alemão, numa caligrafia
miúda e irremediavelmente sincera, lá estavam as palavras: “Deus meu, a vida é
um inferno”. Nada as precedia ou a elas se seguia. Solitárias na página – e
dentro do silencio doentio do quarto – as palavras pareciam adquirir a estatura
de uma acusação incontestável, até mesmo clássica. X encarou fixamente a página
durante vários minutos, tentando, contra todas as probabilidades, não se deixar
absorver por ela. Então, com muito mais zelo do que empregara durante semanas
em qualquer outra atividade, apanhou um toco de lápis e escreveu sobre a
inscrição, em inglês:
“Pais e mestres, eu pergunto: o que é um inferno”
Sustento que é a dor de não poder amar”.
Começou a escrever o nome de Dostoievski sob a
citação, mas notou – com um temor que lhe percorreu todo o corpo – que suas
palavras eram quase inteiramente ilegíveis. Fechou o livro.
Apanhou rapidamente outra coisa de cima da mesa, uma
carta de seu irmão mais velho, que morava em Albany. A carta já estava sobre a
mesa antes mesmo de sua ida para o hospital. Abriu o envelope, vagamente
disposto a ler tudo de uma só vez, mas leu apenas a metade superior da primeira
página. Parou depois das palavras: “Agora que a droga de guerra acabou você
provavelmente tem tempo de sobra por aí, que tal mandar para os garotos uma
baionetas ou umas suásticas...” Após rasgar a carta, olhou os pedacinhos na
cesta de papeis. Viu então que não tinha reparado numa fotografia que viera
junto com a carta. dava para distinguir os pés de alguém sobre um gramado
qualquer.
Pôs os braços em cima da mesa e descansou a cabeça
sobre eles. Sentia dores da cabeça aos pés, todas as zonas de dor aparentemente
interdependentes. Mais parecia uma arvore de Natal, cujas luzinhas, ligadas por
um único fio, apagam-se todas se uma única lâmpada estiver defeituosa.
*
* *
A porta foi aberta violentamente, sem qualquer aviso
prévio. X levantou a cabeça, olhou para trás e viu o Cabo Z, de pê, na soleira
da porta. O Cabo Z fora seu companheiro constante desde o Dia D, ao longo de
cinco campanhas da guerra. Morava no primeiro andar e normalmente subia para
ver X quando tinha alguns boatos ou amolações para descarregar. Era um jovem
corpulento e fotogênico, de vinte e quatro anos. Durante a guerra, uma revista
de circulação nacional o fotografara na Floresta de Hürtgen; ele havia posado,
com um pouco mais de presteza do que o exigiria a mera boa-educação, segurando
em cada mão um peru do Dia de Ação de Graças.
– Tá escrevendo alguma carta? – perguntou a X. –
Pomba, isso aqui tá parecendo até casa mal-assombrada – prosseguiu. Ele
preferia sempre entrar num aposento onde a lâmpada do teto estivesse acessa.
X voltou-se na cadeira e convidou-o a entrar, desde
que tomasse cuidado para não pisar no cachorro.
– Pisar em quê?
– No Alvin. Ele está bem embaixo do teu pé, Clay. Que
tal acender a porcaria da luz?
Clay descobriu o interruptor, acendeu a luz e aí
atravessou o pequeno aposento, do tamanho de um quarto de empregada; sentou na
beirada da cama, encarando o anfitrião. De seus cabelos cor-de-tijolo,
recém-penteados, escorria boa parte do volume de agua que ele julgava
necessário para um penteado satisfatório. Um pente, com prendedor igual ao da
caneta, formava uma protuberância já familiar no bolso direito de sua camisa
verde-oliva. Em cima do bolso, do lado esquerdo, estavam pregadas a Insígnia da
Infantaria de Combate (que tecnicamente, ele não estava autorizado a usar) a
fita do teatro Europeu, com cinco estrelas de batalha de bronze (em vez de uma
única de prata, equivalente às cinco de bronze) e a fita de serviço pré-Pearl
Harbor. Suspirou profundamente e disse.
–Deus meu.
Não que isso significasse alguma coisa: era apenas
parte da vida no exército. Tirou um maço de cigarros do bolso da camisa, catou
um, guardou o maço e abotoou novamente o bolso. Enquanto fumava, percorreu o
quarto com olhar vazio. Seus olhos fixaram-se finalmente no rádio.
– Ei – falou – vai ter um show infernal no
radio daqui a pouquinho. Bob Hope, todo mundo.
X abrindo um novo maço de cigarros, disse que tinha
acabado de desligar o rádio.
Inabalável, Clay ficou observando X enquanto ele
tentava acender o cigarro.
– Poxa – comentou, com entusiasmo de bom espectador –
você precisava ver a droga das tuas mãos. Pomba você tá com a maior tremedeira,
sabe disso?
X conseguiu acender o cigarro e disse que Clay tinha
um espirito de observação muito apurado.
– Fora de brincadeira. Quase desmaiei quando te vi no
hospital. Você tava mais parecendo uma droga dum cadáver. Quantos quilos
você emagreceu? Hem?
– Sei lá. Como é que andou tua correspondência enquanto
eu estava fora? teve alguma noticia da Loretta?
Loretta era a namorada de Clay. Pensavam casar-se na
primeira oportunidade favorável. Ela lhe escrevia com regularidade, perdida num
paraíso de pontos de exclamação triplos e observações incorretas. Ao longo de
toda a guerra, Clay havia lido para X as cartas de Loretta, por mais íntimas
que fossem – aliás quanto mais íntimas, melhor. Já era um habito, depois de
cada leitura, pedir a X que planejasse ou retocasse a carta de resposta, ou
ainda que inserisse algumas palavras imponentes em francês ou alemão.
– Tive, chegou uma carta dela ontem. Tá lá embaixo, no
meu quarto, depois te mostro – Clay respondeu, com indiferença. Empertigou-se
na beirada da cama, prendeu a respiração e soltou um longo e sonoro arroto.
Parecendo apenas parcialmente satisfeito com a façanha, voltou a
descontrair-se.
– A droga do irmão dela foi dispensado da Marinha por
causa do quadril. O safado tem aquele quadril estropiado.
Empertigou-se novamente e tentou outro arroto, mas com
resultados medíocres. Um leve traço de atenção aflorou em seu rosto.
– Ei, antes que eu esqueça;: amanhã a gente tem que
acordar as cinco da matina e ir até Hamburgo ou coisa parecida. Apanhar umas
túnicas, Eisenhower para o destacamento todo.
X, encarando-o com hostilidade, declarou que não
queria nenhuma túnica Eisenhower.
Clay pareceu surpreso, quase ofendido.
– Poxa, elas são um bocado bacanas! Tem uma pinta
infernal. Por quê que você não quer?
– Por nada. Pra quê que a gente tem de acordar às
cinco? A guerra acabou, pomba.
– Sei lá... A gente tem que estar de volta antes do
almoço. Tem ai uns formulários novos que a gente tem de preencher antes do
almoço. Perguntei ao Bulling por quê que a gente não podia preencher os troços
hoje de noite. Ele tá com a droga dos papeis na mesa dele. Não quer abrir os
envelopes agora, o filho da puta.
Os dois ficaram calados por alguns instantes, odiando
o Bulling.
Clay repentinamente olhou para X com renovado
interesse, mais agudo do que antes.
– Ei! Você sabe que a porcaria da tua bochecha tá
pulando pra burro?
X disse que sabia muito bem e encobriu o tique com a
mão.
Clay encarou-o por um momento e enfim disse, com
bastante entusiasmo, como se fosse o portador de noticias excepcionalmente
agradáveis:
– Escrevi para Loretta dizendo que você teve um
esgotamento nervoso.
– É?
– Foi. Ela tá um bocado interessada nesse tipo de
troço. Vai se formar em psicologia.
Clay deitou-se sobre acama, incluindo os sapatos.
– Sabe o quê ela disse? Que ninguém tem um esgotamento
nervoso só por causa da guerra e tudo. Disse que você provavelmente jEa era
meio desequilibrado a vida toda.
X cobriu os olhos com as mãos – a lâmpada sobre a cama
parecia cegá-lo – e disse que o discernimento da Loretta era sempre uma
maravilha.
Clay deu uma olhadela de relance.
– Escuta seu sacana. Ela entende mil vezes mais de
psicologia do que você.
– Seria muito incomodo para você tirar estes pês
fedorentos de cima da minha cama – X perguntou.
Clay deixou os pés onde estavam por alguns segundos, o
tempo suficiente para demonstrar que quem mandava nos pes dele era ele, e aí,
num giro, sentou-se novamente.
– Tou mesmo descendo de qualquer maneira. Tem um radio
ligado no quarto do Walker – falou, mas sem levantar da cama. – Ei, eu agorinha
mesmo táva contando lá embaixo, àquele sacana novo, o Bernstein. Lembra aquela
vez que eu e você estávamos em Valognes e fomos bombardeados umas duas horas, e
aquele filho da mãe daquele gato pulou no capô do jipe e eu dei um tiro nele,
quando a gemente estava deitado naquele buraco? Lembra?
– Sei... Pomba, não começa com aquele negocio do gato
outra vez Clay. Não quero saber nada daquilo.
– Não, o caso é que eu contei o troço pra Loretta. Ela
e a turma toda de psicologia discutiram o negocio. Na aula e tudo. Até a droga
do professor.
– Ótimo. Não me interessa saber, Clay.
– Não, sabe por quê que eu dei um tiro nele? Sabe o
quê que a Loretta disse? Que eu estava temporariamente maluco. Fora de
brincadeira. Por causa do bombardeio e tudo.
X passou os dedos uma vez pelos cabelos sujos e voltou
a proteger os olhos da luz.
– Você não estava maluco coisa nenhuma. Estava apenas
cumprindo o teu dever. Considerando as circunstancias, você matou aquele
gatinho da maneira mais varonil possível.
Clay olhou-o com jeito desconfiado.
– Como é que é?
_ Aquele gato era um espião. Você tinha que dar
um tiro nele. Era um anãozinho alemão muito esperto, vestido com um capote de
pele barata. Por isso, não tinha nada de brutal, cruel ou sujo, ou até...
– Merda! – disse Clay, os lábios apertados, formando uma
linha – Será que você não consegue nunca ser sincero?
X de repente sentiu-se nauseado, girou na cadeira e
agarrou a cesta de papeis – bem na horinha. Quando voltou a endireitar-se e
virou na direção de seu visitante, encontrou-o de pé, sem jeito, a meio caminho
entre a cama e a porta. X começou a desculpar-se, mas mudou de ideia e estendeu
o braço para apanhar um cigarro.
– Ei, vem lá pra baixo ouvir o Hope no radio – Clay
disse, mantendo certa reserva, embora procurasse ser simpático. – Vai te fazer
bem. No duro.
– Vai você, Clay... Vou ficar olhando minha coleção de
selos.
– É? Você tem uma coleção de selos? Não sabia que
você...
– Só tou brincando.
Clay deu uns dois passos vagarosos em direção à porta.
– Sou capaz de dar um pulo até Ekstadt mais tarde. Tem
uma festa lá. Deve ir até às duas, mais ou menos. Quer ir comigo?
– Não, obrigado. Vou treinar uns passos de dança aqui
mesmo no quarto.
– Tá bom. Té manhã. Vê se te cuida agora tá? – disse
ele, fechando a porta com estrondo. A porta abriu-se novamente um segundo
depois. – Ei, posso enfiar uma carta para Loretta aqui por baixo da porta?
Botei uns troços em alemão. Quer conferir para mim?
– Está bem. Agora me deixa em paz, pomba.
– Tá legal. Sabe o quê que minha mãe escreveu numa
carta? Disse que gostou muito que eu e você ficamos juntos a guerra toda. No
mesmo jipe e tudo. Disse que minhas cartas ficaram muito mais inteligentes
depois que eu comecei a andar contigo.
X Levantou os olhos para ele e disse, com grande
esforço: – Obrigado. Agradece a ela por mim.
_ Agradeço sim. Té manhã!
A porta foi novamente fechada com violência, dessa vez
em definitivo.
*
* *
X ficou sentado um tempão olhando para a porta; aí
girou a cadeira, pondo-se de frente para a escrivaninha, e apanhou do chão sua
máquina de escrever portátil. Abriu espaço para ela em meio ao entulho que
cobria a mesa, empurrando para o lado a pilha desmoronada de cartas e pacotes.
Imaginou que, se escrevesse uma carta para um velho amigo de Nova York,
encontraria nisso uma terapia rápida, ainda que superficial. Mas não conseguiu
enfiar direito o papel na máquina, de tanto que seus dedos tremiam. Baixou os
braços por um instante e então tentou novamente, mas afinal amassou o papel.
Sabia que devia tirar a cesta de papeis do quarto,
mas, em vez de tomar alguma providência, pôs os braços em cima da maquina e
descansou a cabeça sobre eles, fechando os olhos.
Depois de alguns minutos latejantes, entreabriu os
olhos e encontrou-se fitando um pequeno pacote, embrulhado em papel verde.
Provavelmente tinha-se destacado da pilha na hora em que abrira espaço para a
maquina de escrever. Notou que o pacote fora reenderaçado várias vezes,
reconhecendo, só de um lado do pacote, pelo menos três de seus antigos números
postais.
Abriu o pacote sem nenhum interesse, sem mesmo olhar o
endereço do remetente. Queimou o barbante com a chama de um fósforo. Estava
mais interessado em ver o barbante queimar até o fim do que em abrir o pacote,
mas afinal o fez.
Dentro de uma caixa havia uma cartinha, escrita a
tinta, cobrindo um pequeno objeto embrulhado em papel fino. Apanhou a carta e
leu.
Rua........................., 17
...........................Devon
7 de Junho de 1944
Caro Sargento X
Espero que você me desculpe por se
terem passado 38 dias antes que eu iniciasse nossa correspondência, mas tenho
andado extremamente ocupada porque minha tia contraiu uma inflamação na
garganta e quase faleceu; compreensivelmente, sobre meus ombros recaiu uma
responsabilidade atrás da outra. Todavia, tenho pensado frequentemente em você
e na tarde agradabilíssima que passamos juntos no dia 30 de abril de 1944,
entre 3:45 e 4:25, caso você tenha esquecido.
Estamos todos tremendamente
emocionados e exultantes com o Dia D e esperamos somente que ele apresse o
término da guerra e de uma maneira de viver que é ridícula, para não dizer
coisa pior. Charles e eu estamos ambos muito preocupados com você; esperamos
que você não tenha participado do primeiro assalto à Península de Cotentin.
Você participou do ataque? responda por favor, o mais depressa possível.
Sinceras lembranças a sua esposa.
Um abraço de
ESMÉ
Ps. Estou tomando a liberdade de
enviar-lhe meu relógio de pulso, que pode ficar com você enquanto durar o
conflito. Não reparei se você estava usando relógio durante nosso breve
encontro, mas este é extremamente resistente, à prova de água e à prova de
choque, além de ter muitas outras qualidades, dentre as quais a de permitir que
a pessoa saiba a que velocidade está andando, se assim o desejar. Tenho a
certeza de que, nesses dias difíceis, você poderá usa-lo com mais proveito do
que eu jamais poderia, e que você o aceitará como um talismã de boa sorte.
Charles, a quem estou ensinando a
ler e escrever e que se tem revelado um principiante muitíssimo inteligente,
deseja acrescentar algumas palavras. Por favor, escreva tão logo encontre tempo
e disposição.
COMO VAI COMO VAI COMO VAI COMO
VAI
COMO VAI COMO VAI COMO VAI COMO
VAI
BEIJOS E ABRAÇOS
CHALES
Muito tempo passou antes que X pudesse por de lado o
papel, e muito menos apanhar de dentro da caixa o relógio de pulso do pai de
Esmé. Quando afinal o fez, viu que o vidro do mostrador se quebrara no trajeto.
Teve vontade de saber se aquele fora o único estrago, mas não achou coragem
para dar corda no relógio e certificar-se definitivamente. Ficou só sentado com
o relógio na mão, por outro longo período de tempo. Então, repentinamente,
quase em êxtase, sentiu-se sonolento.
Imagine um homem realmente sonolento,
Esmé, e você verá que ele tem sempre alguma chance de se tornar outra vez um
homem com todas as fac... com todas as f-a-c-u-l-d-a-d-e-s intactas.
Obrigado pela tradução. De coração.
ResponderExcluirExcelente
ResponderExcluirQuero ler tudo sobre Salinger
ResponderExcluir(L)
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