Rubén Darío (1867-1916), escritor nascido em uma pequena
cidade do interior da Nicarágua, é o pai da moderna literatura
hispano-americana, considerado como um dos grandes poetas da língua espanhola,
ao lado de Lorca e Neruda. Este pequeno conto permite conhecer a obra deste
escritor – pouco conhecido no Brasil – que foi uma influencia marcante em todos
os grandes escritores da América espanhola..
O rei burguês
Rubén Darío
Meu amigo! O céu está opaco, o ar frio, o dia
triste. Um conto alegre... assim como para divertir as brumosas e cinzentas
melancolias, eis aqui:
Havia numa cidade imensa e brilhante um rei
muito poderoso, ele possuía trajes pretensiosos e ricos, escravas nuas, brancas
e pretas, cavalos de longas crinas, armas novíssimas, galgos rápidos e
monteiros com chifres de bronze que enchiam o vento com suas fanfarras. Era um
rei poeta? Não, meu amigo: era o Rei Burguês.
Era muito afeiçoado às artes o soberano, e
favorecia com grande generosidade os seus músicos, os seus fazedores de
ditirambos, pintores, escultores, boticários, barbeiros e mestres de esgrima.
Quando ia à floresta, junto ao cervo ou javali
ferido e sangrento, fazia com que seus professores de retórica improvisassem
canções alusivas; os criados enchiam as taças com vinho de ouro borbulhante, e
as mulheres batiam palmas com movimentos rítmicos e galhardos. Era um rei sol,
na sua Babilônia repleta de músicas, de gargalhadas e de ruídos de festim.
Quando se fartava da algazarra da cidade, saia à caça aturdindo o bosque com
seus tropéis; e fazia sair dos ninhos as aves assustadas, e o vozerio ecoava no
recôndito mais escondido das cavernas. Os cachorros de pés elásticos iam
quebrando o ervaçal na corrida, e os caçadores, inclinados sobre o pescoço dos
cavalos, faziam ondular os mantos purpúreos com seus rostos flamejantes e as
cabeleiras ao vento.
O rei tinha um palácio soberbo onde acumulara
riquezas e objetos de arte maravilhosos. Chegava a ele cruzando plantações de
lírios e extensos lagos sendo saudado pelos cisnes de pescoço branco, antes do
que pelos arrogantes lacaios. Bom gosto. Subia pela escada cheia de colunas de
alabastro, que tinha aos lados leões de mármore como nos tronos salomônicos.
Refinamento. Além dos cisnes, tinha um grande aviário, como amante da harmonia,
do arrulho, do trinado; e perto dele ia alargando seu espírito, lendo romances
de M. Ohnet, os belos livros que tratam das questões gramaticais, ou críticas
graciosas. Isto sim: defensor tenaz da correção acadêmica nas letras, e do modo
usual nas artes; alma sublime amante da exatidão e da ortografia!
Japonerias! Chinerias! Por moda e mais nada. Bem que podia se dar ao luxo de uma sala digna do
gosto de um Goncourt e dos milhões de um Creso: quimeras de bronze com as
goelas abertas e os rabos enroscados, em grupos fantásticos e maravilhosos;
lacas de Kioto com incrustações de folhas e galhos de uma flora monstruosa, e
animais de uma fauna desconhecida, borboletas de raras asas junto às paredes;
peixes e galos coloridos; máscaras de gestos infernais e com olhos como se
fossem vivos; alabardas de folhas antiquíssimas e empunhaduras com dragões
devorando flores de lótus; túnicas de seda amarela, tecidas com teias de aranha,
semeadas de garças vermelhas e de verdes ramalhetes de arroz; e jarros,
porcelanas de muitos séculos, daquelas que exibem guerreiros tártaros com uma
pele que os cobre até os rins, e que levam arcos esticados e ramos de
flechas.
Além disso, tinha a sala grega, cheia de
mármores: deusas, musas, ninfas e sátiros; a sala dos tempos galantes, com
quadros do grande Watteau e do Chardin; dois, três, quatro, quantas salas?
E Mecenas passeava por todas, com o rosto
inundado de certa majestade, a barriga feliz e a coroa na cabeça, como os reis
do baralho.
Um dia levaram-lhe uma rara espécie de homem
perante o seu trono, onde se encontrava cercado de cortesãos, de retóricos e de
mestres de equitação e de dança.
— O que é isso? — perguntou.
— Senhor, é um poeta.
O rei tinha cisnes no lago, canários,
beija-flores no aviário: um poeta era algo novo e estranho.
— Deixai-o aqui.
E o poeta:
— Senhor, eu não tenho comido.
E o rei:
— Fala e comerás.
Começou:
— Senhor, há muito tempo que canto o verbo do
porvir. Estendi minhas asas ao furacão; nasci no tempo do amanhecer; procuro a
raça escolhida que deve esperar, com o hino na voz e a lira na mão, a saída do
grande sol. Abandonei a inspiração da cidade malsã, a alcova cheia de perfumes,
a musa de carne que enche a alma de pequenez e o rosto de pó-de-arroz. Quebrei
a harpa lisonjeira das cordas frágeis, contra as taças de Boêmia e as jarras
onde borbulha o vinho que embriaga sem dar fortaleza; joguei o manto que me
fazia parecer bufo, ou mulher, e tenho me vestido de maneira selvagem e
esplêndida: meu farrapo é de púrpura. Fui à floresta, onde me fiz vigoroso e
farto de leite fecundo e licor de nova vida; e na beira do mar áspero,
sacudindo a cabeça embaixo da forte e negra tempestade, como um anjo soberbo,
ou como um semideus olímpico, ensaiei o verso grego atirando ao esquecimento o
madrigal.
Acarinhei a grande natureza, procurei no calor
do ideal o verso que está no astro no fundo do céu, e o que está na pérola do
profundo oceano. Tentei ser pujante! Porque vem o tempo das grandes revoluções,
com um Messias todo luz, todo agitação e potência, e é necessário receber seu
espírito com o poema que seja arco triunfal, de estrofes de aço, de estrofes de
ouro, de estrofes de amor.
Senhor, a arte não está nas frias coberturas
do mármore, nem nos quadros pálidos, nem no excelente senhor Ohnet! Senhor! A
arte não se veste de calças, nem fala burguês, nem coloca os pontos em todos os
is. Ela é augusta, tem mantos de ouro ou de chamas, ou anda nua, e amassa a
greda com febre, e pinta com luz, e é opulenta, e bate asas como as águias, ou
lança farpadas como os leões. Senhor, entre um Apolo e um ganso, prefere o Apolo,
ainda que um seja de terracota, e o outro de marfim.
Oh, a Poesia!
Muito bem! Os ritmos prostituem-se, cantam-se
as pintas das mulheres, e fabricam-se xaropes poéticos. Além disso, Senhor, o
sapateiro critica meus decassílabos, e o senhor professor de farmácia põe os
pontos e vírgulas na minha inspiração. Senhor, e vós autorizais tudo isso!... O
ideal, o ideal...
O rei interrompeu:
— Já ouvistes. O que fazer?
E um filósofo que estava disponível:
— Se vós o permitis, senhor, ele pode ganhar a
comida com uma caixa de música; podemos colocá-la no jardim, perto dos cisnes,
para quando passeardes por lá.
— Sim — disse o rei, e dirigindo-se ao poeta:
— Dareis voltas a uma manivela. Fechareis a
boca. Fareis soar uma caixa de música que toca valsas, quadrilhas e galopas, se
não preferis morrer de fome. Peça de música por pedaço de pão. Nada de
geringonças, nem de ideais. Ide.
E desde aquele dia pôde-se ver, à beira do
lago dos cisnes, o poeta faminto que dava voltas à manivela: tiriririn,
tiriririn... envergonhado sob os olhares do grande sol! Passava o rei pelas
proximidades? Tiriririn, tiriririn...! Tinha que encher o estômago? Tiriririn!
Tudo em meio às gozações dos pássaros livres, que chegavam para beber o orvalho
dos lírios em flor; entre o zunido das abelhas, que lhe mordiam o rosto e
enchiam seus olhos de lágrimas, tiriririn...! Lágrimas amargas que rolavam por
suas bochechas e caíam na terra preta!
E o inverno chegou, e o pobre sentiu frio no
corpo e na alma. E seu cérebro estava como petrificado, e os grandes hinos
estavam esquecidos, e o poeta da montanha coroada de águias não era senão um
pobre-diabo que dava voltas à manivela, tiriririn.
E quando a neve caiu esqueceram-se dele, o rei
e seus vassalos; aos pássaros deram-lhes abrigo, e a ele deixaram-no ao léu
glacial que lhe mordia as carnes e lhe açoitava o rosto, tiriririn!
E numa noite em que caía do alto uma chuva
branca de peninhas cristalizadas, no palácio havia um festim, e a luz dos
lustres ria alegre sobre os mármores e sobre as túnicas dos mandarins das
velhas porcelanas. E aplaudiam-se até a loucura os brindes do senhor professor
de retórica, perplexo de dátilos, de anapestos e de pirríquios, enquanto nas
taças cristalinas fervia o champanhe com seu borbulhar luminoso e fugaz. Noite
de inverno, noite de festa! E o desgraçado coberto de neve, perto do lago dando
voltas à manivela para esquentar-se tiriririn, tiriririn! Tremendo e
paralisado, insultado pelo vento, sob a brancura implacável e gelada, na noite
sombria, fazendo ressoar entre as árvores sem folhas a música louca das galopas
e quadrilhas; e ficou morto, tiriririn... pensando no sol do dia seguinte que
nasceria, e com ele o ideal, tiriririn... e na arte que não ia vestir calças e
sim mantos de chamas, ou de ouro... Até que, no dia seguinte, acharam-no o rei
e seus cortesãos, ao pobre-diabo de poeta, como beija-flor que mata o gelo, com
um sorriso amargo nos lábios, e ainda com a mão na manivela.
Oh, meu amigo! O céu está opaco, o ar frio, o
dia triste. Flutuam brumosas e cinzentas melancolias...
Mas como esquenta a alma uma frase, um aperto
de mãos a tempo! Até logo!
O texto acima foi
extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", editora
Bom-Texto - Rio de Janeiro (RJ), 2005, pág. 49, organização e tradução de
Alicia Ramal.
É isso o que fazem aos professores neste Brasil de hoje em dia... Não importa o que eles têm a oferecer, são obrigados a se calar e girar uma manivela... tiriririn, tiriririn, tiriririn... e ai daquele que não girá-la direitinho, do jeitinho que o rei mandou. Os cisnes estão lá, eles ouvem, não se interessam pelo tiriririn, e continuam sendo o que sempre foram: apenas cisnes. É assim que o rei gosta.
ResponderExcluirZulmira, perfeito o seu comentário.
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