Jose Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora em
1925 e escreveu este conto em 1975. Pelo tema, pela linguagem direta e pela
força das imagens, “Feliz ano novo” é um dos contos mais contundentes já escritos
em nossa língua. Uma leitura obrigatória.
Feliz Ano Novo
Rubem Fonseca
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam
vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também
que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o
estoque.
“Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e
apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.”
Pereba entrou no banheiro e disse, “que
fedor.”
“Vai mijar noutro lugar, tô sem água.”
Pereba saiu e foi mijar na escada.
“Onde você afanou a TV?”, Pereba perguntou.
“Afanei porra nenhuma. Comprei. O recibo
está bem em cima dela.”
“Ô
Pereba! você pensa que eu sou algum
babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?”
“Tô morrendo de fome,” disse Pereba.
“De manhã a gente enche a barriga com os
despachos dos babalaôs,” eu disse, só de sacanagem.
“Não conte comigo,” disse Pereba. “Lembra do
Crispim? Deu um bico
numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou
preta, cortaram no Miguel Couto e tá
ele aí, fudidão, andando de muleta.”
Pereba sempre foi supersticioso. Eu não.
Tenho ginásio, sei ler, escrever
e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que
quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a
novela. Merda. Mudamos
de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta.
“As madames granfas tão todas de roupa nova,
vão entrar o ano novo
dançando com os braços pro alto, já viu como as
branquelas dançam?
Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o
sovaco, elas querem
mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o
sovaco. Todas
corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota
por aí?”
“Pena que não tão dando pra gente,” disse
Pereba.
Ele falava devagar,
gozador, cansado,
doente.
“Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto
e pobre, você acha que as
madames vão dar pra você? O Pereba, o máximo que você
pode fazer é tocar
uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.”
“Eu queria ser rico, sair da merda em que
estava metido! Tanta gente
rica e eu fudido.”
Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando
punheta e disse, “que é isso
Pereba?”
“Michou, michou, assim não é possível,”
disse Pereba.
“Por que você não foi para o banheiro
descascar sua bronha?”, disse
Zequinha.
“No banheiro tá um fedor danado,” disse
Pereba.
“Tô sem água.”
“As mulheres aqui do conjunto não estão mais
dando?”, perguntou
Zequinha.
Ele tava homenageando uma loura bacana, de
vestido de baile e cheia
de jóias.
“Ela tava nua,” disse Pereba.
“Já vi que vocês tão na merda,” disse
Zequinha.
“Ele tá querendo comer restos de Iemanjá,”
disse Pereba.
“Brincadeira,” eu disse.
Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado
um
supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um
tempão
em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A
gente se
respeitava.
“Pra falar a verdade a maré também não tá
boa pro meu lado, disse
Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão
brincando, viu o que
fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo.
Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos
em Caxias,
o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era
meio
gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.”
“Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele.
Virou torresmo. Os homens
não tão dando sopa,” disse Pereba. “E frango de
macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver.”
“Vão ver o quê?”, perguntou Zequinha.
“Só tô esperando o Lambreta chegar de São
Paulo.”
“Porra, tu tá transando com o Lambreta?”,
disse Zequinha.
“As ferramentas dele estão todas aqui.”
“Aqui?”, disse Zequinha.
“Você tá louco.”
Eu ri.
“Quais são os ferros que você tem?”,
perguntou Zequinha.
“Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina
doze, de cano serrado, e duas Magnum.”
“Puta que pariu,” disse Zequinha. “E vocês
montados nessa baba tão aqui
tocando punheta?”
“Esperando o dia raiar para comer farofa de
macumba,” disse Pereba.
Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
“Posso ver o material?”, disse Zequinha.
Descemos pelas escadas, o elevador não
funcionava, e fomos no apartamento de dona Candinha. Batemos. A velha abriu a
porta.
“Dona Candinha, boa noite, vim apanhar
aquele pacote.”
“O Lambreta já chegou?”, disse a preta
velha.
“Já,” eu disse, “está lá em cima.”
A velha trouxe o pacote, caminhando com
esforço. O peso era demais para ela.
“Cuidado, meus filhos,” ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu
apartamento. Abri o
pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro
Zequinha segurar.
“Me
amarro nessa máquina, tarratátátátá!”,
disse Zequinha.
“É antigo mas não falha,” eu disse.
Zequinha pegou a Magnum.
“Joia, joia,” ele disse. Depois segurou a
doze,
colocou a culatra no ombro e disse: “ainda dou um tiro com esta belezinha
nos
peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas
na
parede e deixar ele pregado lá.”
Botamos tudo em cima da mesa e ficamos
olhando.
Fumamos mais um pouco.
“Quando é que vocês vão usar o material?”,
disse Zequinha.
“Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O
Lambreta quer fazer o
primeiro gol do ano.”
“Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É
vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis,
Porto
Alegre, Vitória, Niterói, para não falar aqui no Rio. Mais de
trinta bancos.”
“Mas dizem que ele dá o bozó,” disse
Zequinha.
“Não sei se dá, nem tenho peito de
perguntar. Pra cima de mim nunca
veio com frescuras.”
“Você já viu ele com mulher?”, disse
Zequinha.
“Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade,
mas que importa?”
“Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara
importante como o
Lambreta,” disse Zequinha.
“Cara importante faz o que quer,” eu disse.
“É verdade,” disse Zequinha.
Ficamos calados, fumando.
“Os ferros na mão e a gente nada,” disse
Zequinha.
“O material é do Lambreta. E aonde é que a
gente ia usar ele numa hora
destas?”
Zequinha chupou ar, fingindo que tinha
coisas entre os dentes. Acho
que ele também estava com fome.
“Eu tava pensando a gente invadir uma casa
bacana que tá dando festa.
O mulherio tá cheio de joia e eu tenho um cara que
compra tudo o que eu
levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você
sabe que tem anel
que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu
conheço? Ele
paga na hora.”
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a
chover.
“Lá se foi a tua farofa,” disse Pereba.
“Que casa? Você tem alguma em vista?”
“Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A
gente puxa um carro e sai
procurando.”
Coloquei a lata de goiabada numa saca de
feira, junto com a munição. Dei uma Magnum pro Pereba, outra pro Zequinha.
Prendi a carabina no
cinto, o cano pra baixo, e vesti uma capa. Apanhei três
meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu
disse.
Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de
São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da
rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente
um jardim grande
e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de
música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei
com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão
quando viram a gente.
“É um assalto,” gritei bem alto, para abafar
o som da vitrola. “Se vocês
ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga
essa porra dessa vitrola!”
Pereba e Zequinha foram procurar os
empregados e vieram com três
garçons e duas cozinheiras.
Deita todo mundo, eu disse.
Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos
deitados em silêncio,
quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo
nada.
“Tem mais alguém em casa?”, eu perguntei.
“Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É
uma senhora doente,”
disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho.
Devia ser a
dona da casa.
“Crianças?”
“Estão em Cabo Frio,” com os tios.
“Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e
traz a mãe dela.”
“Gonçalves?”, disse Pereba.
“É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome,
ô burro?”
Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
“Inocêncio, amarra os barbados.”
Zequinha amarrou os caras usando cintos,
fios de cortinas, fios de
telefones, tudo que encontrou.
Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana.
Os putos estavam cheios
de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios
eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as joias das mulheres. Um bocado de
ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba desceu as escadas sozinho.
“Cadê as mulheres?”, eu disse.
“Engrossaram e eu tive que botar respeito.”
Subi. A gordinha estava na cama, as roupas
rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O
Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as joias.
A velha tava no corredor, caída
no chão.
Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de
louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava
mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto.
Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha
um anel que não saía. Com
nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo
assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela.
Enfiei tudo dentro
de uma fronha.
O quarto da gordinha tinha as paredes
forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco,
enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado.
Voltei para o quarto, empurrei a gordinha
para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha,
brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito
legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as
calças e desci.
“Vamos comer,” eu disse, botando a fronha
dentro da saca.
Os homens e mulheres no chão estavam todos
quietos e encagaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o
puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse,
calmamente, “não se irritem, levem o que quiserem, não faremos nada.”
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de
seda colorida em volta do
pescoço.
“Pode também comer e beber à vontade,” ele
disse.
Filha da puta. As bebidas, as comidas, as joias,
o dinheiro, tudo aquilo
para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para
eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.
“Como é seu nome?”
“Maurício,” ele disse.
“Seu Maurício, o senhor quer se levantar,
por favor?”
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
“Muito obrigado,” ele disse. “Vê-se que o
senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não
daremos queixa à polícia.”
Ele disse isso olhando para os outros, que
estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas,
como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
“Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz
uma perna de peru dessas
ai.” Em cima de uma mesa tinha comida que dava para
alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e
carreguei os dois canos.
“Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar
perto da parede?”
Ele se encostou na parede.
”Encostado não, não, uns dois
metros de distância. Mais um pouquinho
para cá. Muito obrigado.”
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando
os dois canos, aquele
tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra
a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito
dele tinha um buraco que dava para
colocar um panetone.
“Viu, não grudou o cara na parede, porra
nenhuma.”
“Tem que ser na madeira, numa porta. Parede
não dá,” Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos
fechados, nem se mexiam.
Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
“Você aí, levante-se,” disse Zequinha.
O sacana tinha escolhido um cara magrinho,
de cabelos compridos.
“Por favor,” o sujeito disse, bem baixinho.
“Fica de costas para a parede,” disse
Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze.
“Atira você, o coice dela machucou o
meu
ombro. Apoia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai
grudar.”
Zequinha atirou. O cara voou, os pés
saíram
do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu
com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara
ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
“Eu não disse?”, Zequinha esfregou o ombro
dolorido. “Esse canhão é
foda.”
“Não vais comer uma bacana destas?”,
perguntou Pereba.
“Não estou a fim. Tenho nojo dessas
mulheres. Tô cagando pra elas. Só
como mulher que eu gosto.”
“E você... Inocêncio?”
“Acho que vou papar aquela moreninha.”
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu
uns murros nos cornos
dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos,
olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
“Vamos embora,” eu disse. Enchemos toalhas e
fronhas com comidas e objetos.
“Muito obrigado pela cooperação de todos,”
eu disse.
Ninguém respondeu.
Saímos. Entramos no Opala e voltamos para
casa.
Disse para o Pereba, larga o rodante numa
rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta.
Eu e Zequinha saltamos.
“Este edifício está mesmo fudido, disse
Zequinha, enquanto subíamos,
com o material, pelas escadas imundas e
arrebentadas.”
“Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás
querendo que eu vá morar
em Nilópolis?”
Chegamos lá em cima cansados. Botei as
ferramentas no pacote, as joias
e o dinheiro na saca e levei para o apartamento
da preta velha.
“Dona Candinha,” eu disse, mostrando a saca,
é coisa quente.
“Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui
não vêm.”
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas
em cima de uma toalha no
chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos
esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e
disse, “que o próximo
ano seja melhor. Feliz ano novo.”
Gostei da iniciativa. Serei um leitor assíduo.
ResponderExcluir