Neste conto, Mario de Andrade (1893-1945),
escritor paulista, que revolucionou e liderou a modernização da literatura
brasileira, propõem uma revolução ainda mais ampla: a revolução dentro da
própria família.
O peru de Natal
Mário de Andrade
O nosso primeiro Natal de família, depois da
morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas
para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse
sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas
internas nem graves dificuldades
econômicas. Mas, devido principalmente à natureza
cinzenta de meu pai, ser
desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz, acolchoado no
medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas
felicidades materiais, um vinho bom, uma
estação de águas, aquisição de
geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um
bom errado, quase dramático, o
puro-sangue dos desmancha-prazeres.
Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando
chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar
aquela memória
obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a
obrigação
de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família. Uma vez
que
eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que
resultou
foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já
estava
sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas
regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do
morto.
Foi decerto por isto que me nasceu, esta
sim, espontaneamente, a ideia
de fazer uma das minhas chamadas
"loucuras". Essa fora aliás, e desde muito
cedo, a minha esplêndida
conquista contra o ambiente familiar. Desde
cedinho, desde os tempos de
ginásio, em que arranjava regularmente uma
reprovação todos os anos; desde o
beijo às escondidas, numa prima, aos
dez anos, descoberto por Tia Velha, uma
detestável de tia; e principalmente
desde as lições que dei ou recebi, não sei,
duma criada de parentes: eu
consegui no reformatório do lar e na vasta
parentagem, a fama conciliatória
de "louco". "É doido,
coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa
tristeza condescendente, o
resto da parentagem buscando exemplo para os
filhos e provavelmente com aquele
prazer dos que convencem de alguma
superioridade. Não tinham doidos entre os
filhos. Pois foi o que me salvou,
essa fama. Fiz tudo o que a vida me
apresentou e o meu ser exigia para se
realizar com integridade. E me deixaram
fazer tudo, porque eu era doido,
coitado. Resultou disso uma existência sem
complexos, de que não posso me
queixar um nada.
Era costume sempre, na família, a ceia de
Natal. Ceia reles, já se
imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas,
depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos
os três manos por
causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e
monotonias, a
gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que
arrebentei com uma
das minhas "loucuras
– Bom, no Natal, quero comer peru.
Houve um desses espantos que ninguém não
imagina. Logo minha tia
solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que
não podíamos convidar
ninguém por causa do luto.
– Mas quem falou de convidar ninguém! Essa
mania... Quando é que
a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é
prato de festa, vem
toda essa parentada do diabo...
– Meu filho, não fale assim...
– Pois falo, pronto!
E descarreguei minha gelada indiferença pela
nossa parentagem infinita,
diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa!
Era mesmo o
momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi
a
ocasião. Me deu de supetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas
duas
mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a
vida. Era
sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa.
Peru era prato de festa: uma imundície de
parentes já preparados
pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das
empadinhas e dos
doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida
senão trabalhar,
trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem
feitos, a prensagem
devorava tudo e inda levava embrulhinhos pros que não
tinham podido vir.
As minhas três mães mal podiam de exaustas.
Do peru, só no enterro dos
ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia inda
provavam um naco de
perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo
era mamãe quem
servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém
sabia de fato
o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não, não se convidava ninguém, era um peru
pra nós, cinco pessoas.
E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos,
e a seca, douradinha,
com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a
farofa gorda, em
que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de
xerez, como
aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que
omiti
onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo
naquele
ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar
receita tão gostosa. E cerveja
bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus
"gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho
bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe
adorava cerveja.
Quando acabei meus projetos, notei bem,
todos estavam felicíssimos,
num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu
estourara. Bem que
sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu
sozinho é que
estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem
pra cima de
mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando,
tímidos como
pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento
geral:
– É louco mesmo!...
Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E
depois de uma Missa do Galo
bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso
Natal. Fora engraçado:
assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe
comer peru, não
fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura
por ela, amar
minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo
ritmo
violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru
vinha
imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas,
deixei
muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um
momento
aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não
resistindo
àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa
quase
pobreza sem
razão.
– Não senhora, corte inteiro! só eu como
tudo isso!
Era mentira. O amor familiar estava por tal
forma incandescente em
mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os
outros quatro
comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru
comido
a sós, redescobria em cada um o que a cotidianidade abafara por
completo,
amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou
pensando
em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se
realizando
um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou
inteiramente
reduzido a fatias amplas.
– Eu que sirvo!
"É louco, mesmo!" pois por que
havia de servir, se sempre mamãe servira
naquela casa! Entre risos, os grandes
pratos cheios foram passados pra mim
e
principiei uma distribuição heroica,
enquanto mandava meu mano servir a
cerveja. Tomei conta logo dum pedaço
admirável da "casca", cheio de gordura
e pus no prato. E depois
vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou
o espaço angustiado com
que todos aspiravam pela sua parte no peru:
– Se lembre de seus manos, Juca! Quando que
ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela,
da Mãe, da minha
amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus
crimes, a que eu só
lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou
sublime.
– Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe
não!
Foi quando ela não pôde mais com tanta
comoção e principiou
chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo
prato sublime
seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que
jamais viu
lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro.
Então
principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha
dezenove
anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim.
Todos
se
esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara
impossível. É que
o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu
pai morto.
Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso
Natal.
Fiquei danado.
Bom, principiou-se a comer em silêncio,
lutuosos, e o peru estava
perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue
boiava fagueira entre os
sabores das farofas e do presunto, de vez em quando
ferida, inquietada e
redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta
e o estorvo
petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali,
gigantesco,
incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava
tão
gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do
Jesusinho
nascido.
Principiou uma luta baixa entre o peru e o
vulto de papai. Imaginei que
gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está
claro, eu tomara decididamente
o partido do peru. Mas os defuntos têm meios
visguentos, muito hipócritas
de vencer: nem bem gabei o peru a imagem de papai
cresceu vitoriosa,
insuportavelmente obstruidora.
– Só falta seu pai...
Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele
peru perfeito, tanto que
me interessava aquela luta entre os dois mortos.
Cheguei a odiar papai. E nem
sei que inspiração genial, de repente me tornou
hipócrita e político. Naquele
instante que hoje me parece decisivo da nossa
família, tomei aparentemente
o partido de meu pai. Fingi, triste:
– É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem
a gente, que morreu
de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar
contente... (hesitei,
mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver
nós todos reunidos
em família.
E todos principiaram muito calmos, falando
de papai. A imagem dele
foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha
brilhante do céu. Agora
todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora
muito bom,
sempre se sacrificara por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos,
nunca
poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo,
uma
contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não
prejudicava
mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto
ali
era o peru, dominador, completamente vitorioso.
Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de
felicidade. Ia escrever
"felicidade gustativa", mas não era só isso
não. Era uma felicidade maiúscula,
um amor de todos, um esquecimento de outros
parentescos distraidores do
grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele
primeiro peru comido no
recesso da família, o início de um amor novo,
reacomodado, mais completo,
mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso
de si. Nasceu de então
uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista,
alguns a terão assim
grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível
conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento
imaginei, aquilo podia
lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que
ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A tamanha falta de egoísmo me transportara o
nosso infinito amor...
Depois vieram umas uvas leves e uns doces,
que lá na minha terra levam o
nome de "bem-casados". Mas nem mesmo
este nome perigoso se associou à
lembrança de meu pai, que o peru já convertera
em dignidade, em coisa certa,
em culto puro de contemplação.
Levantamos. Eram quase duas horas, todos
alegres, bambeados por
duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou
mexer na cama, pouco
importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a
Rose, católica
antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra
poder
sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei
pra
ela,
modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras
duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
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