William Somerset Maugham
(1874–1965) escritor inglês, foi um dos contistas mais populares de primeira
metade do século passado. “Chuva” e um clássico, admiravelmente bem escrito e
reflete bem a visão colonialista que predominava no universo europeu naquele
período.
Chuva
W.
Somerset Maugham
A hora de deitar aproximava-se.
Quando despertassem, logo pela manhã, poderiam ver a terra. O Dr. Macphail
acendeu novamente seu cachimbo e, apoiando o peito na amurada, tentou encontrar
o Cruzeiro do Sul. Após dois anos convivendo com os campos de batalha e com um
ferimento que demorara imensamente para ser cicatrizado, ele sentia-se contente
por poder descansar por um ano em Ápia. Desse modo, apenas a viagem já lhe
parecia um refresco. Devido ao fato de alguns passageiros deixarem a embarcação
em Pago Pago, na manhã que se seguiria, foi realizado um baile naquela noite.
Nos tímpanos do médico ainda soavam as notas musicais daquela pianola. Agora,
porém, o convés estava finalmente calmo. A uma pequena distância, viu a mulher
numa cadeira de convés, a conversar com os Davidsons, e dirigiu-se para lá.
Quando se sentou sob a luz e tirou o chapéu, deixou ver um cabelo muito ruivo,
com uma coroa no topo, e aquela pele rosada e sardenta que normalmente
acompanha o cabelo ruivo; era um homem de quarenta anos, magro, com uma cara
chupada, exigente e bastante afetado; e falava com sotaque escocês num tom
baixo e calmo.
Entre os Macphails e os Davidsons,
que eram missionários, nascera aquela intimidade de companheiros de viagem,
devida mais à proximidade do que a qualquer identidade de gostos. O que mais os
ligava era a condenação, que partilhavam, dos homens que passavam os dias e
noites na sala de fumo a jogar o pôquer ou o bridge, e a beber. Mrs. Macphail
sentia-se particularmente lisonjeada ao pensar que ela e o marido eram as
únicas pessoas a bordo com quem os Davidsons gostavam de conviver, e mesmo o
médico, tímido mas não tolo, reconhecia meio inconscientemente aquela
amabilidade. Apenas o seu espírito crítico o levava, à noite, no beliche, a
fazer certos comentários malévolos.
"Mrs. Davidson estava a dizer
que não sabia como é que eles conseguiriam suportar aquela viagem se não
fôssemos nós," disse Mrs. Macphail, enquanto escovava cuidadosamente a
cabeleira postiça. "Ela disse que nós fomos realmente as únicas pessoas do
barco que eles gostaram de conhecer."
"Nunca pensei que um
missionário fosse uma pessoa tão importante para se armar dessa maneira."
"Não é armar. Percebo
perfeitamente o que ela quer dizer. Não teria sido muito agradável para os
Davidsons terem de se misturar com todo aquele grupo tão grosseiro na sala de
fumo."
"O fundador da religião deles
não era tão seletivo," disse o Dr. Macphail com um riso abafado.
"Já te pedi muitas vezes que
não brincasses com a religião," respondeu a mulher. "Eu não gostava
de ser como tu, Alec. Nunca procuras o melhor das pessoas."
Ele olhou-a de soslaio, com os
seus olhos azuis, e não respondeu. Depois de muitos anos de vida de casado, já
aprendera que o melhor caminho para a paz era deixar à mulher a última palavra.
Despiu-se primeiro do que ela, e, depois de subir para a cama de cima,
acomodou-se para a sua habitual leitura até adormecer.
Quando chegou ao convés, na manhã
seguinte, estavam já muito próximos de terra. Olhou-a cobiçosamente. Via-se uma
estreita faixa de praia prateada que subia íngreme para as colinas cobertas até
acima de vegetação luxuriante. Os coqueiros, espessos e verdes, vinham quase
até à beira-mar, e no meio deles viam-se as casas de bambu dos samoanos; e aqui
e ali, a brancura reluzente de uma pequena igreja. Mrs. Davidson veio também e
ficou a seu lado. Estava vestida de preto e trazia ao pescoço uma corrente de
ouro, de onde pendia uma cruz. Era uma mulher pequena, de cabelo castanho baço
arranjado de uma maneira muito elaborada, e tinha uns olhos azuis salientes por
detrás de umas lunetas quase invisíveis. Tinha um rosto comprido, como o das
ovelhas, mas que não deixava uma impressão de tolice, mas antes de vivacidade;
tinha os movimentos rápidos dos pássaros. A coisa mais notável nela era a voz,
alta, metálica, e sem inflexões; caía-nos no ouvido com uma monotonia áspera,
irritante, como o zumbido impiedoso de uma broca pneumática.
"Isto, para os senhores, deve
ser quase como estar em casa," disse o Dr. Macphail com o seu sorriso fino
e difícil.
"As nossas são ilhas baixas,
sabe, não são como estas. São de coral. Estas são vulcânicas. Ainda temos mais
dez dias de viagem até lá chegar."
"Por estas partes, isso é
quase como estar na rua a seguir à nossa casa," disse o Dr. Macphail
gracejando.
"Bem, isso é uma maneira um
tanto exagerada de pôr as coisas, mas, realmente, nos Mares do Sul as
distâncias encaram-se de uma maneira diferente. Nesse ponto, tem razão."
O Dr. Macphail suspirou levemente.
"Ainda bem que não estamos
destacados aqui," continuou ela. "Dizem que é um lugar difícil para
trabalhar. O contato com os navios cria uma certa agitação nas pessoas; e
depois há o posto naval; e isso é mau para os indígenas. No nosso distrito não
temos estas dificuldades com que lutar. Há um ou dois comerciantes, claro, mas
nós tratamos de fazer com que se comportem decentemente, e se não o fazem, nós
tornamo-lhes as coisas tão difíceis que eles acabam por querer ir embora."
Ajustou os óculos e fixou a ilha
verde com um olhar impiedoso.
"É quase desesperada a tarefa
dos missionários aqui. Nunca poderei agradecer a Deus o bastante por, pelo
menos, termos sido poupados a isto."
O distrito de Davidson consistia
de um grupo de ilhas ao norte da Samoa; eram muito distantes umas das outras e
ele tinha de viajar muitas vezes longas distâncias de canoa. Nessas alturas a
mulher ficava na sede e dirigia a missão. O Dr. Macphail sentiu um calafrio ao
pensar na eficiência com que ela certamente a dirigia. Ela falava da depravação
dos indígenas num tom que nada conseguia calar, mas com um horror veementemente
melífluo. O seu sentido de pudor era muito singular. Ainda no início da sua
relação, ela tinha-lhe dito:
"Sabe que os costumes dos
casamentos na ilha, quando nós viemos para cá, eram de tal maneira chocantes que
eu seria incapaz de lhos descrever. Mas eu vou contar a Mrs. Macphail e ela
conta-lhe a si."
Mais tarde ele vira a mulher e
Mrs. Davidson, com as cadeiras de convés muito juntas, numa conversa muito
séria que durou cerca de duas horas. Enquanto passeava de um lado para o outro
para fazer exercício, ouvira os sussurros agitados de Mrs. Davidson, como o
murmúrio de uma cascata distante, e, pela boca aberta e palidez da mulher, viu
que ela estava a apreciar uma experiência alarmante. À noite, no beliche, ela
repetiu-lhe, de respiração suspensa, tudo o que tinha ouvido.
"Então, o que é que eu lhe
disse?" exclamou Mrs. Davidson exultante, na manhã seguinte. "Alguma
vez ouviu coisa mais medonha? Com certeza que não ficou admirado de eu não ter
podido contar-lhe, pois não? Mesmo sendo o senhor médico."
Mrs. Davidson perscrutou-lhe a
expressão. Ela tinha uma avidez dramática em verificar se tinha conseguido o
efeito desejado.
"Acha que é de admirar que
tenhamos ficado desalentados quando para lá fomos a primeira vez? Com certeza
não me vai acreditar se eu lhe disser que era impossível encontrar uma única
boa rapariga em qualquer das aldeias."
Ela usou a palavra boa no sentido
rigorosamente técnico.
"Eu e Mr. Davidson falamos
sobre o assunto e decidimos que a primeira coisa a fazer era acabar com a
dança. Os indígenas eram doidos pela dança."
"Eu próprio também não
desgostava quando era novo," disse o Dr. Macphail.
"Eu calculei isso mesmo
quando o ouvi pedir a Mrs. Macphail, a noite passada, para dar uma voltinha
consigo. Parece-me que não há qualquer mal em um homem dançar com a sua mulher,
mas fiquei aliviada quando ela recusou. Naquelas circunstâncias pensei que
seria melhor mantermos uma certa reserva."
"Quais circunstâncias?"
Mrs. Davidson lançou-lhe um olhar
rápido através das lunetas, mas não respondeu à pergunta.
"Mas entre os brancos não é
bem a mesma coisa," continuou ela, "embora deva dizer que concordo
com Mr. Davidson, que diz que não consegue compreender como é que um marido
pode ficar a ver a mulher nos braços de outro homem, e pelo que me diz
respeito, desde que casei, nunca mais dei um passo de dança sequer. Mas a dança
indígena é uma coisa completamente diferente. Não só é imoral em si própria,
mas leva também claramente à imoralidade. Contudo, agradeço a Deus o fato de
termos acabado com ela, e creio não estar enganada se disser que já ninguém
dança no nosso distrito há oito anos."
Mas nessa altura tinham chegado à
entrada do porto e Mrs. Macphail juntou-se-lhes. O navio virou bruscamente e entrou
devagar. Era um porto grande, rodeado de terra, com espaço suficiente para
acolher uma esquadra de navios de guerra; e a toda a volta erguiam-se colinas
verdes, altas e escarpadas. Próximo da entrada, batida pela brisa que soprava
do mar, ficava a casa do governador, dentro de um jardim. A bandeira americana
pendia languidamente dum mastro. Passaram por dois ou três bangalôs bem
arranjados e um campo de tênis, e depois chegaram ao cais, com os seus
armazéns. Mrs. Davidson apontou para a escuna ancorada duzentos ou trezentos
metros ao lado, e que os havia de levar até Apia. Havia uma multidão de
indígenas ávidos, barulhentos e bem dispostos vindos de todas as partes da
ilha, uns por curiosidade, outros para trocar gêneros com os passageiros em
trânsito para Sidney; e traziam ananases e grandes cachos de bananas, tecidos
exóticos, colares de conchas ou dentes de tubarão, potes de kava e miniaturas
de canoas de guerra. Os marinheiros americanos, limpos e bem arranjados,
barbeados e de expressão franca, deambulavam entre eles, e via-se um pequeno
grupo de funcionários. Enquanto as bagagens eram levadas para terra, os
Macphails e Mrs. Davidson observavam a multidão. O Dr. Macphail olhava para as
marcas de framboesia de que a maioria das crianças e rapazes parecia sofrer,
chagas que desfiguram, como úlceras latentes, e o seu olhar profissional
brilhou quando viu pela primeira vez na sua experiência casos de elefantíase,
homens a andar por ali com um braço enorme e pesado ou a arrastar uma perna
grosseiramente desfigurada. Homens e mulheres usavam o lava-lava.
"É um vestuário perfeitamente
indecente," disse Mrs. Davidson. "Mr. Davidson acha que devia ser
proibido por lei. Como é que se pode esperar que as pessoas se comportem
moralmente quando, como vestuário, apenas trazem uma tira de algodão vermelho à
volta das ancas?"
"Está muito bem para o
clima," disse o médico, enquanto limpava o suor da testa.
Agora, que estavam em terra,
embora ainda fosse de manhã cedo, o calor já era opressivo. Fechada no meio das
colinas, nem uma ligeira brisa chegava a Pago-Pago.
"Nas nossas ilhas,"
continuou Mrs. Davidson no seu tom esganiçado, "praticamente erradicamos o
lava-lava. Só alguns velhos ainda continuam a usá-lo. Todas as mulheres
começaram a usar o Mother Hubbard, e os homens usam calças e camisola interior.
No princípio da nossa estadia Mr. Davidson escreveu num dos seus relatórios: os
habitantes destas ilhas nunca poderão ser completamente cristianizados enquanto
todos os rapazes de mais de dez anos não forem obrigados a usar calças."
Mas Mrs. Davidson tinha lançado
dois ou três olhares rápidos às densas nuvens cinzentas que pairavam sobre a
entrada do porto. Começaram a cair alguns pingos.
"Era melhor
abrigarmo-nos," disse ela.
Dirigiram-se com toda aquela gente
para um grande telheiro de chapas de ferro onduladas, e a chuva começou a cair
torrencialmente. Ficaram ali durante algum tempo, e depois Mr. Davidson
juntou-se-lhes. Durante a viagem ele fora bastante amável para com os
Macphails, mas não era tão sociável como a mulher, e passara muito do seu tempo
a ler. Era um homem calado, bastante taciturno, e ficava-se com a impressão de
que a sua afabilidade era um dever que ele se impunha cristãmente a si próprio;
era reservado e mesmo insociável por natureza. Tinha uma aparência invulgar.
Era muito alto e magro, com braços e pernas compridos e soltos; faces cavadas e
malares curiosamente salientes; tinha um ar tão escaveirado que os lábios
grossos nos surpreendiam pela sua sensualidade. Usava o cabelo muito comprido.
Os olhos escuros, fundos nas órbitas, eram grandes e trágicos; e as mãos, com
dedos grossos e compridos, tinham um aspecto fino; davam-lhe um ar de grande
força. Mas o mais notável nele era a impressão que nos deixava de um fogo
reprimido. Era impressivo e vagamente perturbador. Não era homem com quem fosse
possível qualquer intimidade.
Trazia agora más notícias. Havia
na ilha uma epidemia de sarampo, uma doença grave e muitas vezes mortal entre
os Kanakas, e tinha-se detectado um caso entre a tripulação da escuna que os
havia de transportar. O doente tinha sido trazido para terra e levado para o
hospital, onde ficou no posto de quarentena, mas tinham vindo instruções
telegráficas de Apia no sentido de que a escuna não seria autorizada a entrar
no porto até que houvesse a certeza de que nenhum outro membro da tripulação
estava contaminado.
"Isto significa que teremos
de ficar aqui pelo menos dez dias."
"Mas a minha presença é
necessária urgentemente em Apia," disse o Dr. Macphail.
"Não há nada a fazer. Se não
forem detectados mais casos a bordo, a escuna será autorizada a partir com
passageiros brancos, mas todo o trânsito de indígenas está proibido durante
três meses."
"Há aqui algum hotel?"
perguntou Mrs. Macphail.
Davidson deu uma gargalhada
abafada.
"Não, não há."
"Então o que é que vamos
fazer?"
"Estive a falar com o
governador. Há um comerciante aí na esplanada que tem quartos para alugar, e eu
proponho que, mal a chuva pare, vamos lá ver o que podemos fazer. Não esperem
conforto. Temos é que ficar muito gratos se conseguirmos uma cama para dormir e
um teto para nos abrigar."
Mas a chuva não mostrava sinais de
parar, e por fim, com guarda-chuvas e impermeáveis, puseram-se a caminho. Não
havia propriamente uma cidade, mas apenas um grupo de edifícios oficiais, uma
ou duas lojas e, atrás, por entre coqueiros e bananeiras, algumas habitações
indígenas. A casa que procuravam ficava a cerca de cinco minutos, a pé, do
embarcadouro. Era uma casa de madeira, de dois andares, com grandes varandas em
ambos, e telhado de chapas de ferro onduladas. O dono era um mestiço chamado
Horn, com um mulher indígena rodeada de criancinhas morenas, e no rés-do-chão
tinha uma loja onde vendia enlatados e tecidos de algodão. Os quartos que lhes
mostrou não tinham quase mobília nenhuma. O dos Macphails não tinha nada a não
ser uma reles cama, já muito velha, com um mosquiteiro esfarrapado, uma cadeira
meio desconjuntada, e um lavatório. Olharam à sua volta desanimados. A chuva
torrencial caía sem cessar.
"Só vou tirar das malas
aquilo de que realmente precisarmos," disse Mrs. Macphail.
Mrs. Davidson entrou no quarto
quando ela estava a abrir uma mala. Estava muito animada e vivaz. O ambiente
sombrio não a afetou.
"Se quer um conselho, pegue
numa agulha e num bocado de tecido de algodão e comece já a remendar o
mosquiteiro," disse ela, "senão não vão conseguir pregar olho esta
noite."
"Os mosquitos vão incomodar
muito?" perguntou o Dr. Macphail.
"Estamos na época deles.
Quando os senhores forem convidados para uma festa no Palácio do Governo, em
Apia, vão reparar que eles distribuem a todas as senhoras uma fronha para elas
meterem as… os membros inferiores lá dentro."
"Se a chuva ao menos parasse
um bocado," disse Mrs. Macphail. "Com sol eu teria mais ânimo para
tentar dar a este quarto um ar mais confortável."
"Oh, se a senhora está a
contar com isso, bem pode esperar. Pago-Pago é dos lugares mais chuvosos do
Pacífico. Está a ver, as colinas, e aquela baía, elas atraem a água, e, aliás,
a chuva já é de esperar nesta altura do ano."
Ela correu o olhar de Macphail
para a mulher, um em cada canto, desamparados, como almas perdidas, e apertou
os lábios. Viu que tinha de lhes deitar a mão. Pessoas assim débeis
impacientavam-na, mas uma espécie de comichão nas mãos impelia-a a pôr tudo em
ordem, o que era em si uma coisa natural.
"Ora, arranje-me aí uma
agulha e tecido de algodão e eu remendo-vos esse vosso mosquiteiro, enquanto a
senhora continua a tirar as coisas das malas. O almoço é à uma. Dr. Macphail,
era melhor o senhor ir até ao embarcadouro ver se eles vos puseram as malas
grandes em sítio seco. O senhor sabe como são estes indígenas, são muito bem
capazes de as ter posto num sítio onde apanham chuva a toda a hora."
O médico vestiu o impermeável
outra vez e desceu as escadas. À porta estava Mr. Horn a conversar com o
contramestre do navio em que tinham vindo e com uma passageira da segunda
classe que o Dr. Macphail tinha visto várias vezes a bordo. O contramestre, um
homem baixo, enrugado, extremamente sujo, baixou-lhe a cabeça quando ele
passou.
"Coisa feia, esta do sarampo,
doutor," disse ele. "Já vi que os senhores já se instalaram."
O Dr. Macphail achou muita
familiaridade da parte do homem, mas como era um tímido, não se ofendia
facilmente.
"Sim, arranjamos um quarto lá
em cima, no primeiro andar."
"Miss Thompson ia viajar com
os senhores para Apia, por isso trouxe-a para aqui."
O contramestre apontou com o
polegar a mulher que estava a seu lado. Tinha talvez vinte e sete anos, roliça,
e de uma beleza grosseira. Trazia um vestido branco e um grande chapéu, também
branco. As barrigas das pernas, gordas, dentro de meias brancas de algodão,
saíam-lhe do topo das botas altas brancas, de pelica envernizada. Sorriu a
Macphail de maneira insinuante.
"Este tipo está a tentar
cravar-me dólar e meio por dia por esta espelunca," disse ela em voz
rouca.
"Já lhe disse que ela é uma
amiga minha, Jo," disse o contramestre. "Ela não pode pagar mais do
que um dólar e você tem de a deixar ficar por isso."
O comerciante era gordo e sorria
calmamente.
"Bem, se o senhor põe a
questão nesse pé, Mr. Swan, vou ver o que posso fazer. Vou falar com Mrs. Horn
e se nós virmos que podemos fazer um desconto, fazemos."
"Não me venha com essa
conversa fiada," disse Miss Thompson. "Vamos resolver isto já. Você
vai arrecadar um dólar por dia pelo quarto e nem mais um centavo."
O Dr. Macphail sorriu. Admirava o
desaforo com que ela negociava. Ele era o tipo de pessoa que pagava sempre o
que lhe pediam. Preferia pagar mais do que o devido a regatear. O comerciante
suspirou.
"Bem, para ser agradável a
Mr. Swan, aceito."
"Assim é que é," disse
Miss Thompson. "Entre e venha daí beber um trago de whisky a martelo.
Tenho ali uma boa pinga de centeio naquela mala, se o senhor a trouxer, Mr. Swan.
Venha também, Doutor."
"Oh, obrigado, mas não
posso," respondeu ele. "Vou só ali abaixo ver se a nossa bagagem está
bem."
Saiu para a chuva, que vinha
varrida desde a entrada do porto, em lençóis de água, e a costa do lado oposto
estava toda enevoada. Passou por dois ou três indígenas vestidos apenas com o
lava-lava e guarda-chuvas enormes a cobri-los. Caminhavam com elegância, com
movimentos calmos, muito direitos; e, quando ele passou, sorriram e
cumprimentaram-no numa língua desconhecida.
Eram quase horas de almoço quando
regressou, e a mesa foi posta na sala de estar do comerciante. Aquela sala não
se destinava a utilização diária, mas apenas a ocasiões especiais, e tinha um
ar bafiento e triste. Havia um conjunto de cortinas de pelúcia estampada dispostas
ordenadamente à volta das paredes, e do meio do teto, protegido das moscas por
um papel de seda amarelo, pendia um candelabro dourado. Davidson não apareceu.
"Eu sei que ele foi fazer uma
visita ao governador," disse Mrs. Davidson, "e com certeza ficou para
o almoço."
Uma rapariguinha indígena
trouxe-lhes uma travessa de hamburguers e pouco depois apareceu o comerciante
para ver se eles precisavam de mais algum coisa.
"Já vi que temos uma
companheira de casa, Mr. Horn," disse o Dr. Macphail.
"Ela só alugou um quarto,
mais nada," respondeu o comerciante. "Das refeições trata ela."
Olhou para as duas senhoras com ar
servil.
"Eu a coloquei lá em baixo
para não incomodar. Não vai haver qualquer problema para os senhores."
"É alguém do barco?"
perguntou Mrs. Macphail.
"É sim, Minha Senhora, vinha
em segunda classe. Ia para Apia. Tem um emprego como caixa à espera dela."
"Oh!"
Quando o comerciante se foi,
Macphail disse:
"Não a imaginava a achar
muito divertido comer no quarto."
"Se era da segunda classe
acho que é melhor assim," respondeu Mrs. Davidson. "Não sei quem
poderá ser."
"Eu por acaso estava presente
quando o contramestre a trouxe. Chama-se Miss Thompson."
"Não me diga que é a mulher
com quem o contramestre andava a dançar ontem à noite?" perguntou Mrs. Davidson.
"Deve ser essa," disse
Mrs. Macphail. "Nessa altura perguntei-me quem seria ela. Parece-me de
moralidade duvidosa."
"Sem nível nenhum."
Começaram a falar de outras
coisas, e depois do almoço, cansados por se terem levantado cedo, separaram-se
e foram dormir. Quando acordaram, embora o céu ainda estivesse cinzento e as
nuvens pairassem baixas, não chovia, e eles foram dar um passeio pela estrada
que os americanos tinham construído ao longo da baía.
Ao regressar, viram que Davidson
tinha acabado de chegar.
"Poderemos ter de ficar aqui
uns quinze dias," disse ele irritado. "Discuti o assunto com o
governador, mas ele diz que não há nada a fazer."
"Mr. Davidson está ansioso
por voltar ao trabalho," disse a mulher, lançando-lhe um olhar ansioso.
"Já estamos fora há um
ano," disse ele, a andar de um lado para o outro na varanda. "A
missão tem estado entregue a missionários indígenas, e eu estou com muito medo
de que eles tenham deixado as coisas resvalar. São homens de bem, não posso
apontar-lhes nada, tementes a Deus, devotos e cristãos verdadeiros - o seu
cristianismo faria corar muitos dos chamados cristãos na nossa terra - mas
falta-lhes lamentavelmente alguma energia. São capazes de resistir um vez, duas
vezes, mas não conseguem oferecer uma resistência permanente. Se deixarmos uma
missão entregue a um missionário indígena, por muito digno de confiança que ele
pareça ser, ao fim de algum tempo verificamos que ele deixou que se instalasse
o abuso."
Mr. Davidson parou. Com o seu perfil
alto e seco, e os olhos grandes a brilharem na palidez das faces, era uma
figura impressiva. A sua sinceridade era óbvia no calor dos gestos e na voz
profunda e vibrante.
"Já estou a contar com
trabalhos. Vou agir e agir prontamente. Se a árvore estiver podre, corta-se e
põe-se no fogo."
E à noite, depois do chá, que era
a última refeição, enquanto estavam sentados naquela sala desgraciosa, as
senhoras a trabalhar e o Dr. Macphail a fumar o seu cachimbo, o missionário
falou-lhes do seu trabalho nas ilhas.
"Quando para lá fomos eles
não tinham qualquer noção de pecado," disse ele. "Infringiam os
mandamentos uns atrás dos outros e nunca se apercebiam de que estavam a
praticar o mal. E creio que essa foi a parte mais difícil do meu trabalho, inculcar
nos indígenas a noção de pecado."
Os Macphails já sabiam que
Davidson tinha trabalhado nas Solomons durante cinco anos antes de conhecer a
mulher. Ela fora missionária na China, e eles tinham-se conhecido em Boston,
onde estavam a passar parte da sua licença para assistirem a um congresso
missionário. Quando casaram foram nomeados para as ilhas, onde ficaram a
trabalhar.
No decurso de todas as conversas
que tinham tido com Mr. Davidson uma coisa tinha ressaltado claramente: a
coragem inabalável daquele homem. Ele era missionário médico, e estava sempre
sujeito a ser chamado a qualquer hora para uma ou outra das ilhas do grupo. Nem
mesmo os barcos de pesca da baleia são suficientemente seguros nas águas
tempestuosas do Pacífico na estação úmida, mas muitas vezes ele saía numa canoa
e o perigo era grande. Em casos de doença ou acidente ele nunca hesitava.
Passou muitas vezes noites inteiras a escoar a água do barco para evitar uma
morte certa, e mais de uma vez Mrs.Davidson deu-o como perdido.
"Eu, às vezes, pedia-lhe que
não fosse," disse ela, "ou, pelo menos, que esperasse até que o tempo
amainasse, mas ele nunca me dava ouvidos. É obstinado, e uma vez tomada a
decisão nada o demove."
"Como é que eu posso pedir
aos indígenas que confiem no Senhor, se eu próprio receio fazê-lo?"
exclamou Davidson. "E eu não receio fazê-lo, não receio. Eles sabem que,
se, numa aflição, me mandarem chamar, eu vou, se tal for humanamente possível.
E acham que o Senhor me vai abandonar quando estou ao seu serviço? O vento
sopra a seu comando e as ondas erguem-se e enfurecem-se a um sinal seu."
O Dr. Macphail era uma pessoa
tímida. Nunca conseguira habituar-se ao assobiar das bombas por sobre as
trincheiras, e quando estava a operar num posto de socorros avançado o suor escorria
lhe das sobrancelhas e embaciava lhe as lentes com o esforço que fazia para
controlar a mão que tremia. Arrepiou-se um pouco ao olhar para o missionário.
"Gostaria de poder dizer que
nunca tive medo," disse ele.
"E eu gostaria que o senhor
pudesse dizer que acredita em Deus," retorquiu o outro.
Mas por qualquer razão, naquela
noite os pensamentos do missionário recuaram até aos primeiros dias que ele e a
mulher tinham passado nas ilhas.
"Por vezes Mrs. Davidson e eu
olhávamos um para o outro e as lágrimas caíam-nos pela cara abaixo.
Trabalhávamos sem cessar, dia e noite, e parecia que não fazíamos qualquer
progresso. Eu não sei o que teria feito, então, sem ela. Quando começava a
ir-me abaixo, quando estava muito próximo do desespero, ela dava-me coragem e
esperança."
Mrs.Davidson baixou os olhos para
o trabalho, e corou ligeiramente. As mãos tremeram-lhe um pouco. Não conseguiu
falar.
"Não tínhamos ninguém que nos
ajudasse. Estávamos sós, a milhares de milhas de pessoas como nós, rodeados de
escuridão. Quando eu estava abatido e cansado, ela deixava o trabalho, pegava
na Bíblia e lia para mim até que a paz descesse sobre mim como o sono sobre as
pálpebras de uma criança, e quando, por fim, ela fechava o livro, dizia:
'Havemos de salvá-los, mesmo contra a sua vontade.' E eu sentia-me de novo
forte no Senhor, e respondia: 'Sim, com a ajuda de Deus hei de salvá-los. Tenho
de salvá-los.'"
Veio até à mesa e ficou ali de pé,
como se aquela mesa fosse um púlpito.
"Já vê, eles eram tão
naturalmente depravados que nós não conseguíamos fazer com que se apercebessem
da sua própria imoralidade. Tivemos que lhes fazer ver que aquilo que eles
achavam um comportamento natural era pecado. Tivemos que lhes fazer ver que não
só o adultério, a mentira e o roubo, mas também a exposição do corpo, e ir
dançar em vez de ir à igreja, tudo era pecado. Fiz-lhes ver que era pecado uma
rapariga mostrar o peito e um homem não usar calças."
"Como é que conseguiu?"
perguntou o Dr. Macphail, não sem alguma surpresa.
"Estabeleci multas.
Evidentemente que a única maneira de as pessoas compreenderem que uma
determinada ação é pecaminosa é puni-las se a cometerem. Eu multava-os se ele
não vinham à igreja, e multava-os se eles dançavam. Multava-os se estivessem
vestidos impropriamente. Eu tinha uma tabela, e cada pecado tinha que ser pago
em dinheiro ou em trabalho. E por fim fi-los compreender."
"E eles nunca se recusavam a
pagar?"
"Como é que podiam?"
perguntou o missionário.
"Só um homem de muita coragem
ousaria fazer frente a Mr. Davidson," disse a mulher apertando os lábios.
O Dr. Macphail olhou para Davidson
incomodado. Aquilo que ouvira chocou-o, mas hesitou em manifestar a sua
discordância.
"Não se esqueça que em último
recurso eu podia expulsá-los da congregação."
"E eles importavam-se com
isso?"
Davidson sorriu um pouco e
esfregou as mãos devagar.
"Não conseguiam vender a sua
copra. Quando os homens pescavam não recebiam a sua parte do pescado. Isso
significava mais ou menos passar fome. Sim, eles importavam-se e muito."
"Conta-lhe a história de Fred
Ohlson," disse Mrs. Davidson.
O missionário fixou o olhar
inflamado no Dr. Macphail.
"Fred Ohlson era um
comerciante dinamarquês que estava na ilha há muitos anos. Era um homem
bastante rico, como todos os comerciantes, e não ficou muito satisfeito quando
nós chegamos. Já vê, as coisas corriam-lhe como ele queria. Pagava a copra aos
indígenas ao preço que bem queria, e pagava em whisky e outros gêneros. Tinha
uma mulher indígena, mas era-lhe descaradamente infiel. Era um bêbado. Dei-lhe
uma oportunidade de emendar o seu comportamento, mas ele não quis. Riu-se de
mim."
A voz de Davidson tornou-se grave
quando pronunciou estas últimas palavras, e ficou calado por alguns momentos.
Aquele silêncio tinha o peso de uma ameaça.
"Em dois anos ficou
arruinado. Perdeu tudo o que tinha amealhado num quarto de século. Eu abati-o,
e por fim viu-se obrigado a vir ter comigo, como um pedinte, implorar-me que
lhe pagasse a passagem de volta para Sidney."
"Haviam de o ver, quando ele
veio falar com Mr. Davidson," disse a mulher do missionário.
Davidson olhou a noite
abstratamente. A chuva caía de novo.
Subitamente ouviu-se barulho vindo
de baixo, e Davidson voltou-se e lançou um olhar interrogativo à mulher. Era o
som de um gramofone, áspero e ruidoso, gemendo uma música sincopada.
"O que é aquilo?"
perguntou.
Mrs. Davidson ajustou as lunetas
mais firmemente ao nariz.
"Uma das passageiras da
segunda classe tem um quarto aqui na casa. Isto deve vir de lá."
Ficaram todos a ouvir em silêncio,
e logo a seguir ouviram o ruído de alguém a dançar. Depois a música parou, e
eles ouviram o som de rolhas a saltar e vozes altas em conversa animada.
"Ela deve estar a dar uma
festa de despedida aos companheiros de viagem," disse o Dr. Macphail.
"O barco parte ao meio-dia, não é?"
Davidson não fez qualquer
comentário e olhou para o relógio.
"Estás pronta?"
perguntou à mulher.
Ela levantou-se e guardou o
trabalho
"Acho que sim,"
respondeu ela.
"Ainda é cedo para ir para a
cama, não é?" disse o médico.
"Ainda temos umas boas
leituras para fazer," explicou Mrs. Davidson. "Onde quer que
estejamos, lemos sempre um capítulo da Bíblia antes de irmos para a cama e
comentamo-lo, sabe? e discutimo-lo todo. É um belíssimo treino para o
espírito."
Os dois casais deram as
boas-noites. O Dr.Macphail e Mrs. Macphail ficaram sozinhos. Durante uns
momentos não falaram.
"Acho que vou buscar as
cartas," disse o médico por fim.
Mrs. Macphail olhou para ele
indecisa. A conversa com os Davidsons deixara-a um tanto inquieta, mas ela não
queria dizer que achava que era melhor não jogarem as cartas numa altura em que
os Davidsons podiam entrar a qualquer momento. O Dr. Macphail trouxe-as e ela
observou-o, embora com um vago sentimento de culpa, enquanto ele dispunha as
cartas para uma paciência. Lá em baixo o barulho da pândega continuava.
No dia seguinte o tempo estava
bom, e os Macphails, condenados a passar quinze dias de ociosidade em
Pago-Pago, trataram de aproveitar a situação o melhor possível. Desceram até ao
cais e tiraram alguns livros das malas. O médico fez uma visita ao
cirurgião-chefe do hospital naval e acompanhou-o na ronda pelos doentes.
Deixaram cartões ao governador. Passaram por Miss Thompson na estrada. O médico
tirou-lhe o chapéu e ela respondeu-lhe com um 'Bom dia, doutor' alegre e em voz
alta. Estava vestida como na véspera, com um vestido branco, e as botas brancas
brilhantes, de saltos altos, e as pernas gordas a saírem-lhe protuberantes do
topo eram uma coisa estranha naquele ambiente exótico.
"Acho que ela não está
vestida de maneira muito conveniente, devo dizer," disse Mrs. Macphail.
"Tem um aspecto extremamente ordinário."
Quando voltaram para casa, ela
estava na varanda a brincar com um dos filhos mulatos do comerciante.
"Diz-lhe qualquer coisa,"
sussurrou o Dr. Macphail à mulher. "Ela está aqui completamente só e acho
que ignorá-la é muito pouco simpático da nossa parte."
Mrs. Macphail era uma pessoa
tímida, mas estava habituada a fazer o que o marido lhe dizia.
"Parece-me que somos companheiros
de casa aqui," disse ela muito desajeitadamente.
"Terrível, não é, estarmos
aqui engaiolados num lugarejo chinfrim desses?" respondeu Miss Thompson.
"E pelo que me disseram, ainda tive muita sorte em ter arranjado um
quarto. Não me estou a ver a viver numa casa de indígenas, e é isso que algumas
pessoas têm de fazer. Não sei por que é que eles não hão de ter aqui um
hotel."
E trocaram mais algumas palavras.
Miss Thompson, espalhafatosa e tagarela, estava evidentemente desejosa de um
pouco de coscuvilhice, mas Mrs. Macphail tinha muito pouca bagagem para
conversas banais e disse logo:
"Bem, acho que temos de ir
para cima."
À noite, quando se sentaram para a
ceia, Davidson ao entrar disse:
"Já vi que a mulher lá de
baixo tem lá dois marinheiros com ela. Pergunto-me como é que ela os teria
conhecido."
"Ela não deve ser muito
esquisita," disse Mrs. Davidson.
Estavam todos muito cansados,
depois daquele dia ocioso e sem objetivo.
"Se os quinze dias vão ser
sempre assim, não sei como é que nos vamos sentir no fim," disse o Dr. Macphail.
"A única coisa a fazer é
dividir o dia em atividades diferentes," respondeu o missionário.
"Vou reservar um certo número de horas para estudar, outro para exercício,
faça chuva ou faça sol - na estação úmida não podemos ligar à chuva - e outro
para recreio."
O Dr. Macphail olhou para o
companheiro com apreensão. O programa de Davidson oprimia-o. Estavam a comer
hamburguers outra vez. Parecia ser o único prato que o cozinheiro sabia fazer.
Depois, lá em baixo, começou o gramofone outra vez. Davidson estremeceu
nervosamente quando o ouviu, mas não disse nada. Chegaram lá cima vozes de
homens. Os convidados de Miss Thompson cantavam em coro uma conhecida canção e
logo depois ouviram a voz dela, áspera e berrante. Havia gritos e gargalhadas.
As quatro pessoas lá em cima, tentando conversar, ouviam contrariados o
tilintar dos copos e o arrastar das cadeiras. Tinha chegado mais gente, com
certeza. Miss Thompson estava a dar uma festa.
"Como é que ela consegue
metê-los todos lá dentro?" disse Mrs. Macphail, interrompendo uma conversa
sobre medicina entre o missionário e o marido.
Isto revelou os caminhos por onde
andavam a vaguear os seus pensamentos. A contração da expressão de Davidson
mostrava que, embora falando de assuntos científicos, o seu espírito estava
ocupado na mesma direção. E de repente, enquanto o médico dava muito
prosaicamente conta da sua experiência na frente da Flandres, ele pôs-se de pé
de um salto e soltou uma exclamação.
"O que é, Alfred?"
perguntou Mrs. Davidson.
"Claro! E nunca me ocorreu.
Ela veio de Iwelei."
"Não pode ser."
"Ela embarcou em Honolulu. É
evidente. E está a transferir o seu negócio para aqui. Para aqui."
Pronunciou as últimas palavras com
uma indignação arrebatada.
"O que é Iwelei?"
perguntou Mrs. Macphail.
Ele voltou para ela os olhos
sombrios e a sua voz tremeu de horror.
"A peste de Honolulu. O
distrito da Luz Vermelha. Foi uma nódoa na nossa civilização."
Iwelei ficava na periferia da
cidade. Seguia-se por ruas laterais junto do porto, na escuridão, por uma ponte
frágil, até chegar a uma estrada deserta, toda cheia de sulcos e buracos, e
depois, subitamente entrava-se na luz. Havia espaço para estacionamento de
carros de ambos os lados da estrada, havia bares, vistosos e brilhantes, todos
barulhentos com os seus pianos mecânicos, e havia barbearias e tabacarias.
Havia no ar uma certa agitação e uma sensação de alegria expectante. Virava-se
para uma travessa estreita, à direita ou à esquerda, porque a estrada dividia
Iwelei em duas partes, e estava-se no distrito. Havia filas de pequenos
bangalôs, bem arranjados e pintados de verde, e o caminho entre eles era largo
e direito. Estava desenhado como uma cidade jardim. Na sua respeitável
normalidade, na sua ordem e elegância, deixava uma impressão de horror
sardônico; porque nunca a busca de amor fora tão sistematizada e ordenada. Os
caminhos eram iluminados por raros candeeiros, mas seriam escuros se não fosse
a luz que saía das janelas abertas dos bangalôs. Os homens vagueavam por ali a
olhar para as mulheres que estavam sentadas à janela lendo ou costurando e que
na sua maior parte nem reparavam nos transeuntes; e, como as mulheres, eles
eram de todas as nacionalidades. Havia americanos, marinheiros dos barcos que
estavam no porto, recrutas alistados nas canhoneiras, sombriamente bêbados, e
soldados, brancos e negros, dos regimentos estacionados na ilha; havia
japoneses, a passear em grupos de dois e três; havaianos, chineses de compridos
robes, e filipinos com chapéus ridículos. Andavam calados e como que oprimidos.
O desejo é triste.
"Foi o escândalo mais
gritante do Pacífico," exclamou Davidson veementemente. "Os
missionários andaram muitos anos a movimentar-se contra aquilo, e por fim a
imprensa pegou no assunto. A polícia recusou-se a agir. Já sabem qual é o
argumento deles. Dizem que o vício é inevitável e consequentemente o melhor a
fazer é delimitá-lo e controlá-lo. A verdade é que a polícia estava comprada.
Comprada. Comprada pelos donos dos bares, comprada pelos especuladores,
comprada pelas próprias mulheres. Por fim foram obrigados a sair."
"Eu li isso nos jornais que
chegaram a bordo, em Honolulu," disse o Dr. Macphail.
"Iwelei, com o seu pecado e
vergonha, deixou de existir no próprio dia em que nós chegamos. Toda a população
foi levada a tribunal. Não sei como é que não percebi logo quem aquela mulher
era."
"Agora que fala nisso,"
disse Mrs. Macphail, "lembro-me de a ver entrar a bordo apenas uns minutos
antes de o barco partir. E lembro-me de ter pensado na altura que ela estava a
chegar mesmo à justa."
"Como é que ela se atreveu a
vir para aqui!" exclamou Davidson indignado. "Não vou permitir."
Dirigiu-se para a porta em passos
largos.
"O que é que vai fazer?"
perguntou Macphail.
"O que é que espera que eu
faça? Vou acabar com aquilo. Não vou permitir que esta casa se transforme num -
num…"
Procurou uma palavra que não
ofendesse os ouvidos das senhoras. Os seus olhos faiscavam e a face pálida
estava ainda mais pálida com a emoção.
"Pelo barulho, dá a impressão
de que haverá três ou quatro homens lá em baixo," disse o médico.
"Não lhe parece que é um tanto imprudente ir lá precisamente agora?"
O missionário olhou-o com desprezo
e sem uma palavra saiu da sala precipitadamente.
"O senhor conhece Mr. Davidson
muito mal, se pensa que o medo do perigo pessoal o pode deter no cumprimento do
dever," disse a mulher.
Estava sentada, com as mãos
nervosamente apertadas, uma mancha de cor sobre os malares salientes, atenta ao
que ia acontecer lá em baixo. Estavam todos atentos. Ouviram-no a descer as
escadas de madeira e abrir violentamente a porta. A cantilena acabou de
repente, mas o gramofone continuou a berrar a sua melodia ordinária. Ouviram a
voz de Davidson e depois o barulho de qualquer coisa pesada a cair. A música parou.
Ele atirara o gramofone para o chão. A seguir, ouviram de novo a voz de
Davidson, não conseguiam distinguir as palavras, depois a de Miss Thompson,
alta e estridente, seguida de um clamor confuso, como se várias pessoas
estivessem todas a gritar o mais alto que podiam. Mrs. Davidson deu um pequeno
grito abafado e apertou as mãos ainda mais. O Dr. Macphail olhou indeciso dela
para a mulher. Não queria ir lá baixo, mas perguntava-se se elas estariam à
espera que ele fosse. Depois houve qualquer coisa que parecia uma rixa. O
barulho era agora mais distinto. Certamente Davidson estava a ser posto fora do
quarto. A porta bateu. Houve um momento de silêncio e depois ouviram Davidson a
subir as escadas outra vez. Foi para o seu quarto.
"Acho que vou ter com ele,"
disse Mrs. Davidson.
Levantou-se e saiu.
"Se precisar de mim,
chame," disse Mrs. Macphail, e depois de ela sair: "Espero que ele
não esteja ferido."
"Por que é que ele não se
mete na vida dele?" disse o Dr. Macphail.
Ficaram sentados em silêncio por
momentos e depois ambos estremeceram, porque o gramofone começou de novo a
tocar, provocadoramente, e vozes trocistas gritavam roucas a letra de uma
canção obscena.
No dia seguinte Mrs. Davidson
estava pálida e cansada. Queixava-se de dores de cabeça e estava envelhecida e
mirrada. Disse a Mrs. Macphail que o missionário não tinha dormido nada;
passara a noite numa agitação terrível e às cinco levantou-se e saiu.
Tinham-lhe despejado um copo de cerveja em cima e as roupas estavam manchadas e
malcheirosas. Mas uma chama sombria brilhou nos olhos de Mrs. Davidson quando
ela falou de Miss Thompson.
"Ela vai arrepender-se
amargamente do dia em que zombou de Mr. Davidson," disse ela. "Mr. Davidson
tem um coração admirável e nunca ninguém com problemas se lhe dirigiu que não
fosse por ele confortado, mas com o pecado não tem contemplações, e quando
provocam a sua justa cólera, é terrível."
"E o que é que ele vai fazer?
perguntou Mrs. Macphail.
"Não sei, mas eu não queria
estar na pele daquela criatura por nada deste mundo."
Mrs. Macphail sentiu um calafrio.
Havia qualquer coisa de positivamente alarmante na firmeza triunfante dos modos
daquela pequena mulher. Iam sair juntas naquela manhã, e desceram as escadas
lado a lado. A porta de Miss Thompson estava aberta, e elas viram-na com um
robe esfarrapado, a cozinhar qualquer coisa num fogareiro a petróleo.
"Bom dia," disse ela.
"Mr. Davidson está melhor hoje?"
Passaram em silêncio, de nariz no
ar, como se ela não existisse. Contudo, coraram quando ela desatou às
gargalhadas trocistas. Mrs. Davidson voltou-se subitamente para ela.
"Não se atreva a dirigir-me a
palavra," gritou ela. "Se me insultar eu tratarei de a pôr daqui para
fora."
"Ora diga-me lá, fui eu, por
acaso, que convidei Mr. Davidson a visitar-me?"
"Não lhe responda,"
murmurou Mrs. Macphail apressadamente.
Continuaram a andar até ficarem
fora do seu alcance.
"É uma desavergonhada,
desavergonhada," explodiu Mrs. Davidson.
A cólera quase a sufocava.
E no regresso a casa
encontraram-na a passear em direção ao cais. Trazia todos os seus enfeites. O
seu grande chapéu branco, com aquelas flores vistosas e ordinárias, era uma
afronta. Chamou-as alegremente quando passou, e dois marinheiros americanos que
estavam por ali sorriram ironicamente quando as senhoras afivelaram uma
expressão fixa e gelada. Entraram em casa precisamente quando a chuva começava
de novo a cair.
"Acho que ela vai estragar
aquelas belas roupas," disse Mrs. Davidson com um amargo sorriso
escarninho.
Davidson só chegou quando eles
estavam a meio do almoço. Estava completamente encharcado, mas não quis mudar
de roupa. Sentou-se taciturno e calado, recusando-se a comer mais do que uma
colher, e ficou a olhar a chuva que caía obliquamente. Quando Mrs. Davidson lhe
contou os seus dois encontros com Miss Thompson, não respondeu. Só o carregar
do sobrolho mostrou que ouvira.
"Não achas que devíamos
obrigar Mr. Horn a expulsá-la daqui?" perguntou Mrs. Davidson. "Não
podemos permitir que nos insulte."
"Parece que não tem mais para
onde ir," disse Macphail.
"Ela podia ir viver em casa
de um dos indígenas."
"Com um tempo destes, uma
cabana indígena deve ser um lugar muito desconfortável para viver."
"Eu vivi numa durante
anos," disse o missionário.
Quando a rapariguinha indígena
trouxe as bananas fritas que constituíam a sobremesa todos os dias, Davidson
voltou-se para ela.
"Vai perguntar a Miss
Thompson quando é que eu poderia falar com ela," disse ele.
A rapariga fez timidamente que sim
e saiu.
"Para que é que queres falar
com ela, Alfred?" perguntou a mulher.
"É meu dever falar com ela.
Não vou agir enquanto não lhe der todas as oportunidades."
"Tu não sabes como ela é.
Vai-te insultar."
"Ela que me insulte. Ela que
me cuspa. Ela tem uma alma imortal, e eu tenho de fazer tudo o que estiver ao
meu alcance para a salvar."
As gargalhadas trocistas da
prostituta ainda soavam nos ouvidos de Mrs. Davidson.
"Ela foi longe demais."
"Longe demais para a
misericórdia de Deus?" Os olhos iluminaram-se-lhe, e subitamente a sua voz
tornou-se baixa e suave. "Nunca. O pecador pode descer, no pecado, mais
fundo do que as profundezas do próprio inferno, mas o amor do Senhor Jesus pode
sempre chegar até ele."
A rapariga voltou com a resposta.
"Miss Thompson manda
cumprimentos e diz que, desde que não vá durante as horas de trabalho, ela
estará à disposição do Rev. Davidson em qualquer altura."
O grupo recebeu a mensagem em
silêncio sepulcral, e o sorriso que aparecera nos lábios do Dr. Macphail
apagou-se rapidamente. Ele sabia que a mulher ficaria aborrecida se ele achasse
divertida aquela desfaçatez de Miss Thompson.
Acabaram a refeição em silêncio. E
depois, as duas senhoras levantaram-se e pegaram nos seus trabalhos. Mrs. Macphail
estava a fazer mais um daqueles inúmeros abafos de lã a que ela se dedicara
desde o começo da guerra, e o médico acendeu o cachimbo. Mas Davidson ficou
sentado na sua cadeira a fixar a mesa com olhar abstrato. Por fim, levantou-se
e, sem uma palavra, saiu da sala.
Ouviram-no descer a escada e
depois o 'Entre' provocador de Miss Thompson quando ele bateu à porta. Ficou lá
uma hora com ela. E o Dr.Macphail observava a chuva. Começava a contender-lhe
com os nervos.
Não era como a nossa chuva
inglesa, suave, que cai gentilmente sobre a terra; era inclemente e como que terrível;
sentia-se naquela chuva a malignidade dos poderes primitivos da natureza. Não
caía, fluía. Era como um dilúvio vindo do céu, e batia no telhado de zinco com
uma persistência tão firme que enlouquecia. Parecia ter uma fúria própria. E
por vezes a pessoa sentia vontade de gritar, se ela não parasse, e depois, de
repente, sentia-se impotente, como se os ossos se tornassem subitamente moles;
e a pessoa sentia-se infeliz e desesperada.
Macphail voltou a cabeça quando o
missionário regressou. As duas mulheres levantaram os olhos.
"Dei-lhe todas as
oportunidades. Exortei-a a arrepender-se. É uma mulher perversa."
Fez uma pausa, e o Dr. Macphail
viu-lhe os olhos escurecerem e a cara pálida endurecer.
"Agora vou usar os chicotes
com que o Senhor Jesus expulsou os usurários do Templo do Altíssimo."
Começou a andar de um lado para o
outro. A boca cerrada e as sobrancelhas pretas franzidas.
"Mesmo que ela fugisse para o
ponto mais remoto da terra eu ia atrás dela."
Com um movimento brusco, virou-se
e saiu da sala a passos largos. Ouviram-no a ir escada abaixo outra vez.
"O que é que ele vai
fazer?" perguntou Mrs. Macphail.
"Não sei." Mrs. Davidson
tirou as lunetas e limpou-as. "Quando ele está ao serviço do Senhor nunca
lhe faço perguntas.
Suspirou.
"O que foi?"
"Ele vai ficar esgotado. Não
sabe poupar-se."
O Dr. Macphail soube dos primeiros
resultados da atividade do missionário pelo comerciante mestiço em cuja casa
estava alojado. Ele deteve o médico quando este ia a passar pela loja, e saiu
para falar com ele no terraço, em frente da casa. A sua cara gorda mostrava
preocupação.
"O Rev. Davidson veio-me
chatear por eu ter deixado Miss Thompson ficar aqui com um quarto," disse
ele, "mas eu não sabia o que ela era quando lhe aluguei. Quando uma pessoa
vem ter comigo para eu lhe alugar um quarto tudo o que eu quero saber é se ela
tem dinheiro para o pagar. E ela pagou-me uma semana adiantada.
O Dr. Macphail não se queria
comprometer.
"Ao fim e ao cabo, a casa é
sua. E nós estamos muito gratos por nos ter alojado."
Horn olhou para ele indeciso.
Ainda não sabia muito bem até que ponto Macphail estava do lado do missionário.
"Os missionários estão feitos
uns com os outros," disse ele hesitante. "Se pegam com um comerciante
ele bem pode fechar as portas e desistir."
"Ele queria que o senhor a
expulsasse?"
"Não, ele disse que se ela se
comportasse ele não me podia pedir que o fizesse. Ele disse que queria ser
justo comigo. Eu prometi-lhe que ela não receberia mais visitas. Acabei de lhe
dizer isto a ela."
"Como é que ela reagiu?"
"Foi o inferno."
O comerciante contorceu-se dentro
das velhas calças de linho. Tinha encontrado em Miss Thompson uma cliente
difícil.
"Bem, eu atrevo-me a dizer
que ela se vai mesmo embora. Não me parece que ela queira ficar aqui sem poder
receber ninguém."
"Ela não tem para onde ir, só
uma casa indígena, e nenhum indígena a deve querer agora, não agora que os
missionários lhe apontaram as facas."
O Dr. Macphail olhou a chuva a
cair.
"Bom, acho que não vale a
pena ficar à espera que o tempo melhore."
À noite, quando estavam sentados
na sala, Davidson falou-lhes dos seus tempos na universidade. Ele não tinha
meios e para pagar os estudos fazia pequenos trabalhos durante as férias. Em
baixo reinava o silêncio. Miss Thompson estava sentada no seu quarto, sozinha.
Mas subitamente o gramofone começou a tocar. Ela pô-lo a funcionar como
provocação, para enganar a solidão, mas não havia ninguém para cantar, e aquilo
deixava uma nota de melancolia. Era como que um grito por socorro. Davidson não
prestou atenção. Estava no meio de uma longa história e, sem mudar de
expressão, prosseguiu. O gramofone continuava. Miss Thompson punha disco atrás
de disco. Era como se o silêncio da noite lhe bulisse com os nervos. Era
irrespirável e opressivo. Quando os Macphails foram para a cama não conseguiram
dormir. Estavam lado a lado, com os olhos abertos, a ouvir o zumbido cruel dos
mosquitos fora da cortina.
"O que é aquilo?"
murmurou Mrs. Macphail por fim.
Ouviram uma voz, a voz de
Davidson, através da divisória de madeira. A voz continuava insistente, grave e
monótona. Ele estava a rezar alto. Estava a rezar pela alma de Miss Thompson.
Passaram dois ou três dias. Agora,
quando eles passavam por Miss Thompson na estrada ela não os cumprimentava com
aquele sorriso ou cordialidade irônicos; passava com o nariz no ar, com uma
expressão mal-humorada na cara pintada, o sobrolho carregado, como se os não
tivesse visto. O comerciante disse a Macphail que ela tinha tentado arranjar
alojamento noutro sítio, mas não conseguira. À noite ela passava os vários
discos no gramofone, mas a simulação de alegria era agora evidente. O ragtime
tinha um ritmo desafinado, magoado, como se fosse um one-step de desespero.
Quando ela o pôs a tocar no domingo, Davidson mandou Horn pedir-lhe que parasse
imediatamente porque era o dia do Senhor. O disco foi tirado e a casa ficou
silenciosa, com a exceção do bater da chuva no telhado de zinco.
"Parece-me que ela está a
mudar um pouco," disse o comerciante ao Dr. Macphail no dia seguinte.
"Ela não sabe o que é que Mr. Davidson anda a tramar e anda um bocado
amedrontada."
Macphail tinha-a visto de relance,
de manhã, e notou que aquela sua expressão arrogante tinha mudado. A sua cara
tinha um ar de pessoa acossada. O mestiço olhou-o de soslaio.
"O senhor com certeza não
sabe o que é que Mr. Davidson anda a fazer sobre o assunto?" atirou ele.
"Não, não sei."
Era estranho que Horn lhe fizesse
aquela pergunta, porque ele também tinha a impressão de que o missionário
andava a trabalhar na sombra.
Tinha a impressão de que ele
andava a tecer uma teia à volta da mulher, cuidadosamente, sistematicamente, e
subitamente, quando tudo estivesse pronto, puxaria os cordões com firmeza.
"Ele pediu-me que lhe
dissesse a ela," disse o comerciante, "que se alguma vez quisesse
falar com ele só tinha que o mandar chamar, que ele iria."
"O que é que ela respondeu
quando o senhor lhe disse isso?"
"Não respondeu nada. Eu nem
parei. Apenas lhe disse o que me foi pedido e me retirei. Pensei que ela
poderia começar a chorar."
"Não tenho dúvida de que a
solidão lhe está a contender com os nervos," disse o médico. "E a
chuva - é o suficiente para deixar qualquer pessoa nervosa," continuou ele
irritado. "Será que nunca para neste maldito lugar?"
"É mais ou menos sempre assim
na estação das chuvas. Temos oitocentos centímetros no ano. Já vê, é do formato
da baía. Parece atrair a chuva de todo o Pacífico."
"Maldito formato da
baía," disse o médico.
Coçou as mordidelas dos mosquitos.
Sentia-se muito irritável. Quando a chuva parava e o sol brilhava, aquilo
parecia uma estufa, escaldante, úmido, opressivo, irrespirável, e tinha-se a
estranha sensação de que tudo estava a crescer com uma violência selvagem. Os
indígenas, conhecidos pela sua alegria e infantilidade, parecia terem então,
com as suas tatuagens e cabelo pintado, qualquer coisa de sinistro na
aparência; e quando eles tropeavam, descalços, atrás de nós, uma pessoa olhava
instintivamente para trás. Sentíamos que eles podiam a qualquer momento aproximar-se
rapidamente por detrás, e espetar-nos uma comprida faca entre as costelas. Não
se conseguia adivinhar que sombrios pensamentos se ocultavam por detrás
daqueles olhos afastados. Tinham um pouco a aparência daqueles antigos egípcios
pintados nas paredes de um templo, e havia neles o terror que há em tudo aquilo
que é incomensuravelmente velho.
O missionário ia e vinha. Andava
ocupado, mas os Macphails não sabiam o que ele andava a fazer. Horn disse ao
médico que ele falava todos os dias com o governador, e um dia Davidson
referiu-se a isso.
"Parece ser uma pessoa muito
determinada," disse ele, "mas quando se chega ao ponto de tratar do
que importa, não tem espinha dorsal."
"Isso significa, penso eu,
que ele não quer fazer exatamente o que o senhor quer," sugeriu o médico a
brincar.
O missionário não sorriu.
"Eu só quero que ele faça o
que está correto. E não devia ser necessário ter de persuadir um pessoa a fazer
o que está correto."
"Mas pode haver diferenças de
opinião quanto ao que está correto."
"Se um homem tem um pé
gangrenado, o senhor teria paciência com alguém que hesitasse em
amputá-lo?"
"A gangrena é uma questão
objetiva."
"E o Mal?"
O que Davidson tinha andado a
fazer depressa se revelou. Os quatro tinham acabado de comer a refeição do
meio-dia, e ainda não se tinham separado para fazer a sesta que o calor impunha
às senhoras e ao médico. Davidson tinha pouca paciência para aquele hábito
ocioso. De repente, a porta abriu-se e Miss Thompson entrou. Percorreu a sala
com os olhos e depois dirigiu-se a Davidson.
"Ó seu bufo, seu canalha, o
que é que tem andado a dizer de mim ao governador?"
Falava atabalhoadamente, de tanta
raiva. Houve uma curta pausa, e depois o missionário puxou uma cadeira.
"Não se quer sentar, Miss
Thompson? Tenho andado com a esperança de ter outra conversa consigo."
"Seu sacana sem
vergonha."
E desatou numa torrente de
insultos insolentes e sujos. Davidson mantinha um olhar sério sobre ela.
"São-me perfeitamente
indiferentes os insultos com que me queira mimosear, Miss Thompson," disse
ele, "mas peço-lhe que não se esqueça de que há senhoras presentes."
Nesta altura já nela as lágrimas
tentavam sobrepor-se à cólera. Tinha a cara vermelha e inchada como se
estivesse a sufocar.
"O que é que aconteceu?"
perguntou o Dr. Macphail.
"Esteve agora mesmo aqui um
tipo a dizer-me que eu tenho de me pôr a andar no próximo barco."
Teria havido um brilho no olhar do
missionário? A expressão manteve-se impassível.
"Não estava com certeza à
espera de que o governador a deixasse ficar aqui nestas circunstâncias?"
"O senhor conseguiu,"
gritou ela. "O senhor não me engana. Conseguiu-o."
"Eu não quero enganá-la. Eu
apenas insisti com o governador para que ele agisse de acordo com as suas
obrigações."
"Por que é que o senhor não
me deixou em paz? Eu não andava a fazer nada de mal."
"Pode ter a certeza de que se
assim fosse eu seria a última pessoa a ficar ofendido."
"O senhor pensa que eu queria
ficar neste pobre arremedo de cidade? Tenho cara de labrega, por acaso?"
"Nesse caso, não vejo razão
para as suas queixas," respondeu ele.
Ela deu um grito de raiva e saiu
porta fora. Seguiu-se um momento de silêncio.
"É um alívio saber que o
governador finalmente agiu," disse Davidson por fim. "Ele é um fraco
e vacilou. Disse que afinal ela só estava aqui por duas semanas, e que se fosse
para Apia, isso era de jurisdição britânica e não tinha nada a ver com
ele."
O missionário pôs-se de pé de um
salto e atravessou a sala a passos largos.
"É terrível como os homens
que estão no poder procuram fugir às suas responsabilidades. Falam como se o
mal que está fora do nosso alcance deixasse de o ser. A simples existência
desta mulher é um escândalo e não adianta transferi-lo para outra ilha. Por
fim, vi-me obrigado a falar sem rodeios."
Davidson baixou as sobrancelhas, e
espetou o queixo. A sua expressão era determinada e feroz.
"O que é que quer dizer com
isso?"
"A nossa missão tem alguma
influência em Washington. Fiz ver ao governador que não seria nada bom para ele
se houvesse uma queixa sobre a maneira como ele dirige as coisas aqui."
"Quando é que ela tem de
partir?" perguntou o Dr.Macphail depois de uma pausa.
"O barco de São Francisco é
esperado aqui, vindo de Sidney, na próxima terça-feira. Ela tem de ir
nele."
Faltavam só cinco dias. Foi no dia
seguinte, quando regressava do hospital, onde, à falta de melhor, o Dr. Macphail
passava a maior parte das manhãs, que o mestiço o deteve quando ele ia a subir
as escadas.
"Desculpe, Dr. Macphail, Miss
Thompson está doente. O senhor pode ir vê-la?"
"Claro."
Horn levou-o ao quarto dela.
Estava sentada numa cadeira sem fazer nada, nem a ler nem a costurar, com o
olhar fixo em frente. Estava com o vestido branco e o grande chapéu com flores.
O Dr. Macphail notou que a pele estava amarela e baça por debaixo do pó de
arroz, e tinha o olhar carregado.
"Lamento saber que não se
sente bem," disse ele.
"Oh, eu não estou realmente
doente. Eu só disse isso porque precisava de falar consigo. Querem despachar-me
num barco que vai para 'Frisco'."
Ela olhou para ele, e ele viu que
os olhos dela ficaram subitamente assustados. Abria e fechava as mãos
convulsivamente. O comerciante ficara à porta a ouvir.
"Já soube," disse o
médico.
Ela engoliu em seco.
"Não me convém lá muito ir
para 'Frisco' precisamente agora. Ontem à tarde fui tentar falar com o
governador, mas não consegui. Falei com o secretário e ele disse-me que eu
tinha de partir naquele barco e pronto. Eu precisava de falar mesmo com o
governador, e por isso, hoje de manhã, esperei-o à porta de casa, e quando ele
saiu falei com ele. Vi perfeitamente que ele não queria falar comigo, mas eu
não ia deixar que ele me despachasse, e no fim ele disse-me que não se
importava nada que eu aqui ficasse até ao próximo barco para Sidney se o Rev. Davidson
estivesse de acordo."
Calou-se e olhou ansiosamente para
o Dr. Macphail.
"Não sei exatamente o que é
que eu posso fazer," disse ele.
"Bem, pensei que talvez o
senhor não se importasse de lhe pedir. Juro por Deus que não vou arranjar aqui
nenhum problema se ele só me deixar ficar. Nem sairei de casa, se ele assim
quiser. São só duas semanas."
"Eu vou pedir-lhe."
"Ele não vai nisso,"
disse Horn. "Ele vai mandá-la embora na terça-feira, portanto é melhor
ir-se preparando."
"Diga-lhe que eu posso arranjar
trabalho em Sidney, trabalho decente, quer dizer. Não é pedir muito."
"Vou fazer os
possíveis."
"E venha-me dizer logo, está
bem? Não sou capaz de me preparar para um coisa sem saber bem a quantas
ando."
Não era missão que agradasse muito
ao médico, e, sintomaticamente talvez, ele desempenhou-a indiretamente. Contou
à mulher o que Miss Thompson lhe dissera e pediu-lhe que falasse com Mrs. Davidson.
A atitude do missionário parecia muito arbitrária, e não faria mal nenhum
deixar a rapariga ficar em Pago-Pago mais quinze dias. Mas ele não estava a
contar com aquele resultado da sua diplomacia. O missionário veio logo ter com
ele.
"Mrs. Davidson disse-me que
Miss Thompson foi falar consigo."
O Dr. Macphail, abordado assim
diretamente, sentiu o ressentimento dos tímidos ao serem forçados a vir para
campo aberto. Sentiu alguma irritação e corou.
"Não vejo que faça muita
diferença ela ir para Sidney em vez de São Francisco, e uma vez que ela promete
comportar-se enquanto aqui estiver é um bocado cruel persegui-la."
O missionário fixou-o com o seu
olhar severo.
"Por que é que ela não quer
voltar para São Francisco?"
"Não perguntei,"
respondeu o médico com alguma aspereza, "e eu acho que nós devíamos era
não meter o nariz onde não somos chamados."
Esta talvez não tenha sido uma
resposta muito diplomática.
"O governador ordenou que ela
fosse deportada no primeiro barco que partisse da ilha. Só fez o seu dever e eu
não vou interferir. A presença dela aqui é um perigo."
"Eu acho que o senhor é
extremamente cruel e tirânico."
As duas senhoras olharam para o
médico algo alarmadas, mas não tinham que recear uma discussão, porque o
missionário sorriu gentilmente.
"Lamento muito que o senhor
pense isso de mim, Dr. Macphail. Creia que o meu coração sangra por essa
infeliz, mas eu estou apenas a tentar cumprir com a minha obrigação."
O médico não respondeu. Olhou pela
janela, taciturno. Desta vez, não estava a chover e do outro lado da baía
viam-se, aninhadas por entre as árvores, as cabanas de uma aldeia indígena.
"Acho que vou aproveitar a
chuva ter parado para sair," disse ele.
"Por favor, não me queira mal
por eu não ter satisfeito o seu desejo," disse Davidson, com um sorriso
melancólico. "Tenho por si o maior respeito, doutor, e teria muita pena se
o senhor pensasse mal de mim."
"Não tenho a menor dúvida de
que a opinião que o senhor tem de si próprio é já tão boa que certamente encara
a minha com equanimidade," replicou ele.
"Touché!," disse
Davidson com um riso abafado.
Quando, irritado com ele mesmo por
ter sido mal educado a despropósito, o Dr. Macphail desceu as escadas, Miss
Thompson estava à sua espera com a porta escancarada.
"Então," disse ela,
"o senhor falou com ele?"
"Falei, e lamento mas ele não
vai fazer nada," respondeu ele embaraçado, sem a olhar.
Mas depois lançou-lhe um olhar
rápido, porque ela soluçou. Viu que ela estava branca de medo. Isto chocou-o. E
de repente teve uma idéia.
"Mas não perca a esperança
ainda. Acho que é uma vergonha a maneira como a estão a tratar e eu próprio vou
falar com o governador."
"Já?"
Ele fez que sim. A expressão dela
brilhou.
"É muita bondade sua. Tenho a
certeza de que ele me vai deixar ficar, se o senhor falar por mim. Eu não vou
fazer nada que não deva enquanto aqui estiver."
O Dr. Macphail nem sabia bem a
razão por que decidira apelar para o governador. Os problemas de Miss Thompson
eram-lhe completamente indiferentes, mas o missionário tinha-o irritado, e o
gênio, nele, era de combustão lenta. Encontrou o governador em casa. Era um
homem grande, bem parecido, um marinheiro de bigode grisalho tipo escova;
estava com um uniforme de linho branco imaculado.
"Vim falar consigo sobre uma
mulher que está alojada na mesma casa que nós," disse ele. "Chama-se
Thompson."
"Acho que já ouvi falar dela
o suficiente, Dr. Macphail," disse o governador a sorrir. "Já lhe dei
ordem para se ir embora na próxima terça-feira, e é tudo o que posso
fazer."
"Eu queria pedir-lhe se o
senhor podia fazer uma pequena concessão e deixá-la ficar aqui até que chegue o
barco de São Francisco para ela poder ir para Sidney. Eu respondo pelo seu bom
comportamento."
O governador continuou a sorrir,
mas os olhos tornaram-se-lhe pequeninos e sérios.
"Gostaria muito de satisfazer
esse seu pedido, Dr. Macphail, mas eu já dei a ordem e ela tem de se
manter."
O médico expôs o caso tão
sensatamente quanto pôde, mas o governador já deixara de sorrir. Ouviu com ar
carregado e desviando o olhar. O Dr. Macphail viu que não estava a causar boa
impressão.
"Tenho muita pena de causar
qualquer transtorno à senhora, mas ela terá de embarcar na terça-feira e é
tudo."
"Mas que diferença é que isto
pode fazer?"
"Desculpe-me, doutor, mas eu
não me sinto na obrigação de explicar as minhas ações oficiais a não ser às
autoridades competentes."
O Dr. Macphail olhou-o
argutamente. Lembrou-se da alusão velada de Davidson a ameaças, e notou um
especial embaraço na atitude do governador.
"Davidson é um diabo de um
intrometido," disse ele com calor.
"Aqui entre nós, Dr. Macphail,
eu não posso dizer que tenha ficado com muito boa impressão de Mr. Davidson,
mas tenho de confessar que ele tem todo o direito de me apontar o perigo que a
presença de uma mulher com o caráter de Miss Thompson representa para um lugar
como este, onde um grande número de homens alistados estão estacionados entre a
população indígena."
Levantou-se e o Dr. Macphail
viu-se obrigado a fazer o mesmo.
"Vai me desculpar, mas eu
tenho um compromisso. Os meus cumprimentos a Mrs. Macphail."
O médico saiu de queixo caído. Ele
sabia que Miss Thompson estaria à sua espera, e, como não estava muito disposto
a contar-lhe ele próprio o seu insucesso, entrou na casa pela porta das
traseiras e esgueirou-se escada acima como se tivesse qualquer coisa a
esconder.
Ao jantar esteve calado e pouco à
vontade, mas o missionário estava animado e jovial. O Dr. Macphail pensou que
os seus olhos o fitavam de quando em vez com um bom humor triunfante.
Subitamente assaltou-o a ideia de que Davidson tivesse sabido da sua visita mal
sucedida ao governador. Mas como diabo podia ele ter sabido? Havia qualquer
coisa de sinistro no poder daquele homem. Depois de jantar viu Horn na varanda
e, como se fosse ter uma conversa casual com ele, saiu.
"Ela queria saber se o senhor
sempre falou com o governador," murmurou o comerciante.
"Falei. Mas ele recusou-se a
fazer fosse o que fosse. Tenho muita pena, não posso fazer mais nada."
"Eu já sabia que ele não ia
fazer nada. Eles não se atrevem a ir contra os missionários."
"De que é que estão a
falar?" disse Davidson afavelmente, vindo ter com eles cá fora.
"Eu estava precisamente a
dizer que não há hipótese de os senhores irem para Apia antes de pelo menos uma
semana," disse o comerciante sem hesitar.
Foi-se embora, e os dois homens
regressaram à sala. Mr. Davidson dedicava uma hora depois de cada refeição ao
entretenimento. Nesta altura ouviu-se um leve bater à porta.
"Entre," disse Mrs. Davidson
em voz cortante.
A porta não se abriu. Ela
levantou-se e abriu-a. Viram Miss Thompson à entrada. Mas a mudança no seu aspecto
era extraordinária. Já não era aquela mulher vistosa e leviana que escarnecera
delas na rua, mas uma mulher desfeita e amedrontada. O cabelo, geralmente muito
bem arranjado, caía-lhe agora desgrenhado e sujo sobre o pescoço. Vinha de
chinelas de quarto e de saia e blusa, enxovalhadas e esfarrapadas. Ficou à
porta, as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo, e sem coragem para entrar.
"O que é que deseja?"
disse Mrs. Davidson asperamente.
"Posso falar com Mr. Davidson?"
disse ela em voz sufocante.
O missionário levantou-se e
dirigiu-se para ela.
"Entre, Miss Thompson,"
disse ele em tom cordial. "O que é que deseja de mim?"
Ela entrou para a sala.
"Bem, peço-lhe desculpa pelo
que lhe disse no outro dia e também pelo… por tudo o resto. Acho que estava um
bocado animada. Peço desculpa."
"Oh, não foi nada. Acho que
tenho as costas suficientemente largas para suportar algumas palavras mais
duras."
Ela deu alguns passos na sua
direção com movimentos horrivelmente servis.
"O senhor derrotou-me. Tem toda
a razão. Não me vai mandar de volta para 'Frisco'?"
A afabilidade de Davidson
desvaneceu-se, e o tom de voz tornou-se-lhe áspero e duro.
"Por que é que não quer
voltar para lá?"
Ela encolheu-se perante ele.
"Acho que a minha gente vive
lá. Não quero que eles me vejam assim. Vou para qualquer outro sítio que o
senhor queira."
"Por que é que não quer
voltar para S. Francisco?"
"Já lhe disse."
Ele inclinou-se para a frente,
fixando-a, e os seus olhos grandes e brilhantes parecia quererem penetrar-lhe
na alma. Soltou um súbito suspiro.
"A penitenciária."
Ela gritou, e caiu-lhe aos pés,
abraçando-lhe as pernas.
"Não me mande de volta para
lá. Juro por Deus que me vou tornar uma mulher decente. Vou deixar-me de tudo
isto."
Desatou numa torrente confusa de
súplicas e as lágrimas corriam-lhe pelas faces pintadas. Ele inclinou-se sobre
ela e, levantando-lhe a cabeça, obrigou-a a olhá-lo.
"É isso, a
penitenciária?"
"Eu cavei antes que eles me
apanhassem," soluçou ela. "Se os tiras me apanham são três anos."
Ele largou-a e ela deixou-se cair
para o chão, soluçando amargamente. O Dr. Macphail levantou-se.
"Isso vem alterar tudo,"
disse ele. "O senhor não a pode mandar embora sabendo disto. Dê-lhe outra
oportunidade. Ela quer virar uma nova página."
"Eu vou dar-lhe a melhor
oportunidade que ela alguma vez teve. Se está arrependida, que aceite o
castigo."
Ela não percebeu bem aquelas
palavras e olhou para cima. Havia um raio de esperança naqueles olhos
carregados.
"Então deixa-me ir?"
"Não. A senhora vai para São
Francisco na terça-feira."
Ela deu um gemido de horror e
depois desatou aos gritos, baixinho, mas com um som de tal maneira rouco que
mal pareciam humanos, e batia arrebatadamente com a cabeça no chão. O Dr. Macphail
ergueu-se de um salto e dirigiu-se a ela levantando-a.
"Vamos lá, não deve fazer
isso. É melhor ir para o seu quarto e deitar-se. Vou-lhe arranjar qualquer
coisa."
Pô-la de pé e, em parte
arrastando-a, em parte carregando com ela, levou-a para baixo. Estava furioso
com Mrs. Davidson e com a mulher por não terem feito o menor esforço para o
ajudar. O comerciante estava no patamar e com a sua ajuda conseguiu pô-la na
cama. Ela gemia e chorava. Estava quase inconsciente. Deu-lhe uma injeção.
Quando voltou para cima, estava cheio de calor e completamente exausto.
"Deixei-a na cama."
As duas mulheres e Davidson
estavam exatamente nas mesmas posições como quando ele saíra. Não se deviam ter
mexido ou falado desde então.
"Estava à sua espera,"
disse Davidson num tom estranho e distante. "Eu queria que todos me
acompanhassem numa oração pela alma da nossa irmã pecadora."
Tirou a Bíblia de uma prateleira e
sentou-se à mesa em que tinham jantado. A mesa não tinha ainda sido levantada e
ele afastou o bule. Numa voz poderosa, ressonante e grave leu-lhes o capítulo
em que se narra o encontro de Jesus com a mulher adúltera.
"Agora ajoelhem comigo e
rezemos pela alma da nossa querida irmã, Sadie Thompson."
E começou a recitar
arrebatadamente uma longa oração em que implorava a Deus misericórdia para
aquela pecadora. Mrs. Macphail e Mrs. Davidson ajoelharam cobrindo os olhos com
as mãos. O médico, apanhado de surpresa, acanhado e desajeitado, ajoelhou
também. A oração do missionário era de uma eloquência selvagem. Ele estava
extremamente comovido, e à medida que falava as lágrimas corriam-lhe pela cara
abaixo. Lá fora, a chuva impiedosa caía, caía perseverantemente, com uma
malignidade cruel que era, toda ela, muito humana.
Por fim, terminou a oração. Fez
uma pausa e depois disse:
"Agora vamos repetir a oração
do Senhor."
Eles disseram a oração e depois,
imitando-o, ergueram-se. Mrs. Davidson estava pálida e tranquila. Estava
confortada e em paz, mas os Macphails sentiram-se subitamente envergonhados.
Não sabiam para onde olhar.
"Eu vou lá abaixo ver como
ela está," disse o Dr. Macphail.
Quando bateu à porta, foi Horn
quem lhe abriu. Miss Thompson estava sentada numa cadeira de baloiço a soluçar
baixinho.
"O que é que está a fazer aí
sentada?" exclamou Macphail. "Eu disse-lhe que ficasse na cama."
"Não consigo estar deitada.
Quero falar com Mr. Davidson."
"Ó minha pobre menina, e para
quê? Nunca conseguirá comovê-lo."
"Ele disse que viria se eu o
chamasse."
Macphail virou-se para o
comerciante.
"Vá chamá-lo."
Ficaram os dois à espera, em
silêncio, enquanto o comerciante ia lá acima. Davidson entrou.
"Desculpe-me mandá-lo chamar
aqui," disse ela, olhando-o sombriamente.
"Eu já estava à espera que me
mandasse chamar. Eu sabia que o Senhor ouviria a minha oração."
Ficaram por momentos a olhar um
para o outro e depois ela desviou o olhar. E continuou a não o olhar enquanto
falava.
"Fui uma mulher má. Quero
arrepender-me."
"Graças a Deus! Graças a
Deus! Ele ouviu as nossas preces."
Virou-se para os dois homens.
"Deixem-me a sós com ela. Digam
a Mrs. Davidson que as nossas preces foram ouvidas."
Eles saíram e fecharam a porta.
"Gaita!" disse o
comerciante.
Naquela noite o Dr. Macphail só
conseguiu adormecer muito tarde, e quando ouviu o missionário a subir as
escadas olhou para o relógio. Mas mesmo a essa hora ele não foi logo para a
cama, porque através do tabique de madeira que separava os dois quartos ele
ouviu-o a rezar em voz alta, até que ele próprio, exausto, adormeceu.
Quando o viu na manhã seguinte
ficou surpreendido com o seu aspecto. Estava mais pálido do que nunca, cansado,
mas os olhos brilhavam com uma chama inumana. Dir-se-ia que ele estava possuído
de uma alegria esmagadora.
"Eu queria que o senhor fosse
agora lá abaixo ver a Sadie," disse ele. "Não posso esperar que o corpo
esteja melhor, mas a alma - essa está transformada."
O médico sentia-se abatido e
nervoso.
"O senhor esteve com ela até
muito tarde," disse ele.
"Estive sim, ela não me
deixava vir embora."
"E o senhor está feliz da
vida," disse o médico irritado.
Os olhos de Davidson brilharam de
êxtase.
"Foi-me concedida uma grande
graça. Ontem à noite tive o privilégio de trazer uma alma perdida para os
braços dedicados de Jesus."
Miss Thompson estava outra vez na
cadeira de baloiço. A cama não tinha sido feita. O quarto estava desarrumado.
Ela não se tinha dado ao trabalho de se vestir, e trazia um robe sujo, e o
cabelo estava amarrado num nó desmazelado. A cara, que ela tinha só passado com
uma toalha úmida, estava inchada e engelhada de chorar. Toda ela estava um
desmazelo.
Levantou os olhos lentamente
quando o médico entrou. Estava desfeita e amedrontada.
"Onde está Mr. Davidson?"
perguntou.
"Ele vem já, se a senhora
quiser," respondeu, azedo, Macphail. "Eu vim ver como a senhora
está."
"Oh, acho que estou bem. Não
se preocupe."
"Já comeu alguma coisa?"
"O Horn trouxe-me café."
Olhou ansiosa para a porta.
"Acha que ele vem já? Quando
ele está, sinto-me como se as coisas não estivessem assim tão más."
"Sempre se vai embora na
terça?"
"Vou, ele diz que tenho de
ir. Diga-lhe, por favor, que venha já. O senhor não me pode fazer nada. Ele é a
única pessoa que me pode ajudar agora."
"Muito bem," disse o Dr.
Macphail.
Nos três dias seguintes, o
missionário passou a maior parte do seu tempo com Sadie Thompson. Só se reunia
aos outros para as refeições. O Dr. Macphail reparou que ele mal comia.
"Ele anda a esgotar-se,"
dizia Mrs. Davidson compassivamente. Ainda arranja algum esgotamento se não tem
cuidado, mas ele não se poupa."
Ela própria estava branca e
pálida. Disse a Mrs. Macphail que não tinha dormido. Quando o missionário
regressou de Miss Thompson rezou até ficar exausto, mas mesmo depois disso não
dormiu quase nada. Uma ou duas horas depois, levantou-se, vestiu-se, e foi dar
um passeio ao longo da baía. Teve sonhos estranhos.
"Hoje de manhã disse-me que
tinha sonhado com as montanhas do Nebraska," disse Mrs. Davidson.
"É curioso," disse o Dr.
Macphail.
Lembrava-se de as ter visto da
janela do comboio quando atravessou a América. Eram como que montículos de
terra, redondos e suaves, e erguiam-se abruptamente da planície. O Dr. Macphail
lembrava-se como o impressionara o fato de elas se assemelharem aos seios de
uma mulher.
A impaciência de Davidson era
intolerável, mesmo para ele próprio. Mas uma excitação maravilhosa dava-lhe o
necessário alento. Estava a arrancar pela raiz os últimos vestígios de pecado
que se escondiam nos cantos ocultos do coração daquela pobre mulher. Ele lia e
rezava com ela.
"É maravilhoso,"
disse-lhes ele um dia ao jantar. "É um verdadeiro renascer. A sua alma,
que era negra como a noite, é agora branca e pura como neve acabada de cair.
Sinto-me humilde e receoso. O seu remorso por todos os seus pecados é belo. Não
sou digno de tocar a bainha das suas roupas."
"Ainda tem coragem de a
mandar de volta para São Francisco?" disse o médico. "Três anos numa
prisão americana. Eu imaginava que o senhor a pudesse ter salvo disso."
"Ah, mas não está a ver? Isso
é necessário. Pensa que o meu coração não sangra por ela? Eu amo-a como amo a
minha mulher e a minha irmã. Durante todo o tempo em que ela estiver na prisão
eu vou sentir todo o sofrimento que ela sentir."
"Palavreado," exclamou o
médico impacientemente.
"O senhor não compreende
porque é cego. Ela pecou, portanto tem de sofrer. Eu sei o que ela vai
suportar. Ela vai passar fome, vai ser torturada e humilhada. Eu quero que ela
aceite o castigo dos homens como um sacrifício a Deus. Quero que ela o aceite
alegremente. Ela tem uma oportunidade que só é oferecida a muito poucos de nós.
Deus é muito bom e misericordioso."
A voz de Davidson tremia de
excitação. Mal conseguia articular as palavras que se precipitavam
arrebatadamente dos seus lábios.
"Rezo com ela todo o dia e
quando a deixo rezo outra vez, rezo com todas as minhas forças e vigor, para
que Jesus lhe possa conceder esta grande graça. Quero pôr lhe no coração o
desejo arrebatado de ser castigada para que no fim, mesmo que eu me ofereça
para a deixar ir, ela recuse. Quero que ela sinta que o castigo amargo da
prisão é a dádiva de gratidão que ela coloca aos pés do nosso abençoado Senhor,
que deu a vida por ela."
Os dias passavam devagar. Todas as
pessoas da casa, concentradas naquela mulher lá em baixo, desgraçada e
torturada, viviam num estado de excitação anormal. Ela era como que uma vítima
a ser preparada para os selvagens rituais de uma idolatria sangrenta. O terror
entorpecia-a. Não suportava a ausência de Davidson; só quando ele estava com
ela sentia coragem, dependia dele de uma maneira servil. Chorava muito, e lia a
Bíblia e rezava. Por vezes ficava exausta e apática. Ansiava então, de fato,
pela sua provação, porque lhe parecia a dádiva de uma fuga, direta e concreta,
da angústia por que estava a passar. Já não podia suportar por muito mais tempo
os vagos terrores que agora a assaltavam. Juntamente com os seus pecados, ela
pusera de parte toda a vaidade pessoal, e andava pelo quarto despenteada e
desgrenhada, no seu robe espalhafatoso. Já não despia a camisa de noite há
quatro dias, nem trazia meias. O quarto estava desarrumado e cheio de lixo.
Entretanto a chuva caía com cruel persistência. Ficava-se com a sensação de que
no fim o céu iria ficar seco, mas a água continuava a cair torrencial, vertical
e pesadamente sobre o telhado de zinco, com uma monotonia de enlouquecer.
Estava tudo úmido e pegajoso. Havia bolor nas paredes e nas botas que estavam
no chão. Ao longo das noites mal dormidas os mosquitos zumbiam no seu cantar
irritado.
"Se a chuva parasse ao menos
por um dia que fosse, já não seria tão mau," disse o Dr. Macphail.
Todos eles ansiavam pela
terça-feira em que o barco para São Francisco devia chegar de Sidney. A tensão
era intolerável. Para o Dr. Macphail, a piedade e o ressentimento eram apagados
pelo desejo de se ver livre daquela infeliz. Tinha que se aceitar o inevitável.
Ele sentia que iria respirar melhor depois de o navio partir. Sadie Thompson
seria acompanhada até ao barco por um funcionário do gabinete do governador.
Essa pessoa apareceu na segunda-feira à noite e pediu a Miss Thompson que estivesse
pronta às onze da manhã. Davidson estava com ela.
"Eu tratarei de fazer com que
tudo esteja pronto. Eu próprio tenciono acompanhá-la a bordo.
Miss Thompson não falou.
Quando o Dr. Macphail apagou a
vela e se meteu cautelosamente debaixo do mosquiteiro, deu um suspiro de
alívio.
"Bom, graças a Deus isto
acabou. Amanhã a esta hora ela já cá não está."
"Mrs. Davidson também vai
ficar satisfeita. Ela diz que ele está a ficar esgotado, a ficar uma
sombra," disse Mrs.Macphail. "Ela está uma mulher diferente."
"Quem?"
"Sadie. Nunca pensei que
fosse possível. Faz-nos sentir humildes.
O Dr. Macphail não respondeu, e
adormeceu logo. Estava esgotado, e dormiu mais profundamente do que de costume.
Foi acordado de manhã por uma mão
que lhe pousava no braço, e, ao abrir os olhos, viu Horn ao lado da cama. O
comerciante pôs-lhe um dedo na boca para evitar qualquer exclamação sua, e
fez-lhe sinal para vir com ele. Geralmente vestia calças de linho coçadas, mas
agora estava descalço e trazia apenas o lava-lava dos indígenas. Subitamente
parecia um selvagem, e o Dr. Macphail, ao sair da cama reparou que ele estava
muito tatuado. Horn fez-lhe sinal para que viesse para a varanda. O Dr. Macphail
levantou-se da cama e seguiu o comerciante lá para fora.
"Não faça barulho,"
murmurou ele. "Precisam de si. Vista um casaco e calce-se. Depressa."
O seu primeiro pensamento foi que
tivesse acontecido alguma coisa a Miss Thompson.
"O que é que aconteceu? Levo
os instrumentos?"
"Depressa, por favor,
depressa."
O Dr. Macphail voltou ao quarto,
vestiu um impermeável por cima do pijama e calçou uns sapatos de borracha. Foi
ter de novo com o comerciante, e, juntos, desceram a escada em bicos de pés. A
porta que dava para a rua estava aberta, e lá fora estavam meia dúzia de indígenas.
"O que é que aconteceu?
repetiu o médico.
"Venha comigo," disse
Horn.
Ele saiu e o médico seguiu-o. Os
indígenas seguiram-nos num pequeno grupo. Atravessaram a estrada e chegaram à
praia. O médico viu um grupo de indígenas de pé, à volta de qualquer coisa à
beira da água. Apressaram o passo, uma dúzia de metros mais à frente, e os
indígenas afastaram-se quando o médico chegou. O comerciante empurrou-o para a
frente. Viu então, meio na água meio fora dela, uma coisa medonha, o corpo de
Davidson. O Dr. Macphail inclinou-se - ele não era homem para perder a cabeça
numa emergência - e voltou o corpo. A garganta estava cortada de orelha a
orelha, e na mão direita ainda estava a navalha de barba com que o ato tinha
sido cometido.
"Está completamente frio,"
disse o médico. "Já deve estar morto há algum tempo."
"Um dos rapazes viu-o ali
deitado quando ia para o trabalho, mesmo agora, e veio dizer-me. Acha que foi
ele mesmo?"
"Foi. Alguém tem de ir chamar
a polícia."
Horn disse qualquer coisa na língua
indígena, e dois rapazes partiram.
"Temos de o deixar aqui até
eles virem," disse o médico.
"Não o podem levar para minha
casa. Não o quero na minha casa."
"O senhor tem de fazer o que
as autoridades mandarem," respondeu o médico incisivamente. "Mas espero
realmente que eles o levem para a casa mortuária."
Ficaram ali à espera. O
comerciante tirou um cigarro de uma dobra do lava-lava e deu um ao Dr. Macphail.
Fumavam enquanto olhavam para o cadáver. O Dr. Macphail não conseguia entender.
"Por que é que acha que ele
fez isto?" perguntou Horn.
O médico encolheu os ombros. Pouco
depois a polícia indígena, sob o comando de um fuzileiro, chegou, com uma maca,
e logo a seguir dois oficiais e um médico da marinha. Trataram de tudo de uma
maneira muito prática.
"E a esposa?" disse um
dos oficiais.
"Agora que os senhores aqui
estão, eu vou voltar para a casa e vestir qualquer coisa. Terei o cuidado de
lhe suavizar a notícia. É melhor ela não o ver enquanto ele não estiver um
pouco mais bem arranjado."
"Acho que sim," disse o
médico naval.
Quando o Dr. Macphail chegou a
casa encontrou a mulher já quase pronta.
"Mrs. Davidson está num
estado horrível por causa do marido," disse-lhe ela quando ele apareceu.
"Ele não se deitou. Ela ouviu-o a sair do quarto de Miss Thompson às duas
horas, mas ele saiu para a rua. Se ele andou todo este tempo a passear, deve
estar absolutamente morto."
O Dr. Macphail contou-lhe o que
acontecera e pediu-lhe para dar a notícia a Mrs. Davidson.
"Mas por que é que ele fez
isso?" perguntou ela horrorizada.
"Não sei."
"Mas eu não sou capaz. Não
sou capaz."
"Tens que ser."
Ela olhou-o amedrontada e saiu.
Ele ouviu-a entrar no quarto de Mrs. Davidson. Esperou um pouco até se recompor
e depois começou a fazer a barba e a lavar-se. Quando acabou de se vestir
sentou-se na cama e ficou à espera da mulher. Por fim ela voltou.
"Ela quer vê-lo," disse
ela.
"Levaram-no para a casa
mortuária. É melhor irmos com ela. Como é que ela recebeu a notícia?"
"Acho que ficou espantada.
Não chorou. Mas treme como uma folha."
"É melhor irmos já."
Quando bateram à porta, Mrs. Davidson
saiu. Estava muito pálida, mas de olhos secos. Para o médico ela parecia
anormalmente recomposta. Não trocaram uma só palavra, e partiram em silêncio
estrada abaixo. Quando chegaram à casa mortuária Mrs. Davidson falou.
"Deixem-me ir vê-lo
sozinha."
Eles afastaram-se. Um indígena
abriu-lhe a porta e depois fechou-a sobre ela. Sentaram-se e ficaram à espera.
Um ou dois brancos vieram falar com eles em voz baixa. O Dr. Macphail
repetiu-lhes o que sabia sobre a tragédia. Por fim a porta abriu-se devagar e
Mrs. Davidson saiu. Fez-se silêncio.
"Já estou pronta para ir
embora," disse ela.
A voz era dura e firme. O Dr. Macphail
não conseguia compreender aquele seu olhar. A sua cara pálida tinha uma
expressão grave. Caminharam devagar, nunca pronunciando uma única palavra, e
por fim dobraram a esquina do outro lado da qual se encontrava a casa. Mrs. Davidson
suspirou, e por momentos ficaram parados. Um som incrível assaltou lhes os
ouvidos. O gramofone, que ficara tanto tempo calado estava a tocar, a tocar
ragtime alto e irritante.
"O que é aquilo?"
exclamou Mrs. Macphail horrorizada.
"Continuemos," disse
Mrs. Davidson.
Subiram os degraus e entraram no
hall. Miss Thompson estava à porta do quarto a tagarelar com um marinheiro.
Tinha havido nela uma brusca mudança. Já não era a serva amedrontada dos
últimos dias. Estava vestida com todos os seus adornos, com o seu vestido
branco, e com as botas de cano alto de onde lhe saíam as pernas gordas dentro
das meias de algodão; o cabelo estava bem arranjado; e tinha na cabeça aquele
seu chapéu enorme coberto de flores garridas. Tinha a cara pintada,
sobrancelhas bem negras, e lábios vermelhos. Estava toda direita. Era outra vez
a rainha espalhafatosa que tinham conhecido antes. Quando eles entraram desatou
num riso alto e trocista; e depois, quando Mrs. Davidson involuntariamente
parou, ela juntou a saliva toda na boca e cuspiu. Mrs. Davidson recuou e duas
manchas vermelhas apareceram-lhe no rosto. Depois, cobrindo a cara com as mãos,
afastou-se e correu escada acima. O Dr. Macphail ficou indignado. Entrou no
quarto empurrando a mulher.
"Que diabo é que está a
fazer? exclamou. "Cale-me já essa maldita máquina."
Dirigiu-se ao gramofone e tirou o
disco. Ela virou-se para ele.
"Ei, doutor, também quer
alguma coisa de mim? Que diabo está o senhor a fazer no meu quarto?"
"O que é que quer dizer com
isso?" exclamou ele. "O que é que quer dizer com isso?"
Ela recompôs-se. Era indescritível
o desprezo da sua expressão ou o ódio desdenhoso que pôs na resposta.
"Vocês, homens! Porcos sujos!
São todos o mesmo, todos vocês. Porcos! Uns Porcos!"
O Dr. Macphail
suspirou. Tinha entendido.
ótimo! Semana passada, antes de conhecer teu blog, reli Chuva. Gosto também de O Degenerado, que está no título brasileiro Histórias dos Mares do Sul. Porto Alegre e Recife, Humberto.
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