Este conto premiado do escritor inglês Frederick
Forsyth, nascido em 1938, é bem mais longo, que os contos anteriormente destacados (44 paginas), mas tem como característica especial o fato de ter sido escrito por um
autor de grandes best sellers. Ao invés de buscar a síntese, característica
dos grandes contistas, ele não economiza detalhes na descrição para assim garantir um maior entretenimento ao leitor. Vale a pena ler e refletir sobre este ponto.
O Imperador
Frederick
Forsyth
– E tem mais uma coisa — disse a Sra. Murgatroyd.
Ao lado dela, no táxi, o
marido disfarçou um pequeno suspiro. Com a Sra. Murgatroyd, sempre havia mais
uma coisa. Não importava o
quanto tudo estivesse correndo bem, Edna Murgatroyd passava pela vida sob o acompanhamento de um rosário de
queixas, uma litania interminável de insatisfação. Em suma, ela importunava o marido
incessantemente, sem lhe dar um minuto de descanso.
No banco da frente, ao
lado do motorista, Higgins, o jovem executivo da matriz, que fora escolhido
para a semana de férias à custa do banco, por ter sido considerado “o mais
promissor do ano”, permaneceu em silêncio. Trabalhava no setor de câmbio, um
jovem ambicioso, a quem eles haviam conhecido no aeroporto de Heathrow, 12
horas antes, cujo entusiasmo natural gradativamente se desvanecera, sob a
investida avassaladora da Sra. Murgatroyd.
O motorista creole,
cheio de sorrisos e votos de boas-vindas quando escolheram seu táxi para a
viagem até o hotel, alguns minutos antes, também ficara rapidamente contagiado
pela disposição da passageira no banco traseiro, permanecendo igualmente em
silêncio. Embora a sua língua fosse o francês creole, ele compreendia o
inglês perfeitamente. Afinal, a ilha Maurício fora uma colônia britânica por
150 anos.
Edna Murgatroyd continuou
a falar, interminavelmente, uma
fonte inesgotável de autocomiseração e indignação, alternadamente. Murgatroyd
olhava pela janela, enquanto o aeroporto de Plaisance ficava para trás e a
estrada seguia para Mahebourg, a antiga capital francesa da ilha, com os fortes
em ruínas que haviam tentado defendê-la contra a esquadra britânica em 1810.
Murgatroyd estava
fascinado pelo que via. Tomara a decisão de desfrutar plenamente aquelas
pequenas férias numa ilha tropical, a primeira aventura verdadeira de sua vida.
Antes da viagem, lera dois alentados
guias turísticos sobre Maurício e estudara um mapa em larga escala da ilha.
Passaram por uma aldeia,
no ponto em que começava a área de cultivo da cana-de-açúcar. Nos alpendres dos
chalés à beira da estrada avistou
indianos, chineses e negros, juntamente com os creoles métis, vivendo lado a lado.
Templos hindus e santuários budistas erguiam-se a poucos metros de uma capela
católica. Murgatroyd soubera, através de leituras, que Maurício era uma mistura
de meia dúzia de grupos étnicos principais e quatro grandes religiões. Mas
nunca antes vira nada assim, pelo menos convivendo em harmonia.
Passaram por outras
aldeias, que não eram ricas e muito menos bem cuidadas. Mas os habitantes
sorriram e acenaram. Murgatroyd acenou em resposta. Quatro galinhas
esqueléticas pularam freneticamente diante do táxi, desafiando a morte por
poucos centímetros. Quando ele olhou para trás, as galinhas estavam novamente no meio da estrada, bicando uma
sobrevivência aparentemente impossível na poeira. O carro diminuía a velocidade
ao se aproximar de uma esquina. Um garotinho tâmil saiu de uma cabana, usando
bata, parou no meio-fio e levantou a roupa até a cintura. Estava inteiramente
nu por baixo. Pôs-se a urinar na estrada, enquanto o táxi passava. Segurando a
bata com uma das mãos, ele acenou com a outra. A Sra. Murgatroyd soltou um grunhido
e exclamou:
– Mas que coisa
repulsiva! — Inclinou-se para a frente e bateu no ombro do motorista,
indagando: — Por que ele não vai ao banheiro?
O motorista jogou a
cabeça para trás e soltou uma gargalhada. Virou o rosto em seguida, para
responder. O carro fez as duas curvas seguintes por controle remoto.
– Pas de toilette, madame.
– O que isso significa?
– Parece que a estrada é
o banheiro — explicou Higgins. — Ela fungou, horrorizada. — Ei, olhem só para o
mar! — disse Higgins.
A direita, ao passarem por
um pequeno penhasco, o Oceano Índico estendia-se até o horizonte, um azul
deslumbrante ao sol da manhã. A cerca de um quilômetro da praia, havia uma
linha branca de ondas a se desmancharem, indicando o grande recife que isola
Maurício das águas mais turbulentas além. Por dentro dos recifes, a água era
serena, de um verde claro, transparente, a tal ponto que se podia avistar
claramente os conjuntos de coral, seis metros abaixo. Depois, o táxi tornou a
se embrenhar pelos canaviais.
Cinquenta minutos depois,
passaram pela aldeia de pescadores de Trou D’Eau Douce. O motorista apontou para a frente.
– Hôtel — disse ele. — Dix minutes.
– Graças a Deus —
resmungou a Sra. Murgatroyd. — Eu não aguentaria por muito mais tempo neste
calhambeque.
Entraram no caminho do
hotel, entre gramados bem cuidados e fileiras de palmeiras. Higgins virou-se para trás com um sorriso, comentando:
– Uma grande distância de
Ponder’s
End.
Murgatroyd retribuiu o
sorriso.
– Tem toda razão.
Não que ele não tivesse
motivos para ser grato à comunidade suburbana londrina de Ponder’s End, onde era gerente de filial. Uma fábrica se instalara ali, quase seis
meses antes. Num golpe de inspiração, Murgatroyd procurara tanto a direção como
os operários, com a sugestão de que podiam atenuar o risco de um assalto ao
dinheiro do pagamento, pagando-se os salários semanais em cheque, como se fazia
com os executivos. Um pouco para a sua surpresa, quase todos concordaram.
Várias centenas de contas novas foram abertas em sua filial. Fora essa manobra
bem-sucedida que atraca atenção na matriz. Alguém por lá sugerira um plano de
incentivo a executivos regionais e juniores. Murgatroyd fora o escolhido no
primeiro ano do plano. O prêmio era uma semana em Maurício, com tudo pago pelo
banco.
O táxi finalmente parou
diante da grande entrada em arcada do Hotel St. Geran. Dois empregados se
adiantaram rapidamente para pegar a bagagem. A Sra. Murgatroyd saltou
imediatamente do banco traseiro. Embora tivesse se aventurado apenas duas vezes
a leste do estuário do Tâmisa, pois geralmente passavam as férias com a irmã
dela em Bognor, a Sra. Murgatroyd começou no mesmo instante a reclamar com os
carregadores, como se, numa vida anterior, tivesse a metade da população nativa
à sua disposição.
Seguidos pelos
carregadores e a bagagem, os três passaram pela entrada em arcada, penetrando
no saguão fresco. A Sra. Murgatroyd seguia na vanguarda, o vestido estampado
bastante amarrotado do voo e da viagem de táxi. Higgins
usava um elegante terno creme tropical, enquanto
Murgatroyd estava com um austero terno cinzento. O balcão de recepção ficava à
esquerda, guarnecido por um funcionário indiano, que exibiu um sorriso de
boas-vindas. Higgins
assumiu o comando:
– Sou o Sr. Higgins e meus companheiros são o Sr. Murgatroyd e sua mulher.
O indiano consultou a
lista de reservas.
– Aqui estão seus nomes.
Murgatroyd correu os
olhos pelo saguão. Era feito de pedras locais, o teto muito alto. Vigas escuras
sustentavam o telhado. Estendia-se até as colunas na outra extremidade. Os
lados também eram constituídos por colunas, permitindo a passagem de uma aragem fresca. Ao fundo, ele podia ver a claridade
intensa do sol tropical, enquanto ouvia os ruídos e gritos de uma piscina em
pleno uso. No meio do saguão, à esquerda, havia uma escada de pedra, que
presumivelmente levava aos quartos do andar superior. No térreo, outra arcada
levava às suítes que ali havia.
De uma sala por trás da
recepção emergiu um jovem e louro inglês, de camisa bem passada e uma calça
esporte clara.
– Bom-dia— disse ele,
sorrindo. — Sou Paul Jones, o gerente- geral.
– Sou Higgins. E esses
são o Sr. Murgatroyd e sua mulher.
– São muito bem-vindos —
disse Jones. — E agora vou mostrar-lhes seus aposentos.
Um vulto alto e magro
aproximou-se pelo saguão. As pernas finas saíam por baixo de um short,
uma camisa florida bem folgada caía dos ombros. Não estava de sapatos, mas
exibia um sorriso de felicidade e uma lata de cerveja na mão imensa. Parou a
vários metros de Murgatroyd e fitou-o de alto a baixo.
– Recém-chegados, hem? — disse
ele, com um evidente sotaque australiano.
Murgatroyd ficou aturdido
e balbuciou:
– Hã... isso mesmo...
– Qual é o seu nome? — perguntou o
australiano, sem a menor cerimônia.
– Murgatroyd — disse o gerente
de banco. — Roger Murgatroyd.
O australiano acenou com
a cabeça, registrando a informação.
– De onde você é?
Murgatroyd interpretou a
pergunta da maneira errada. Pensou que o homem estivesse querendo saber como
ele trabalhava. E foi por isso que respondeu:
– Sou de Midland.
O australiano levou a
lata de cerveja aos lábios e tomou um gole. Soltou um arroto antes de fazer
outra pergunta:
– Quem é ele?
– E Higgins, da matriz.
O australiano sorriu na
maior felicidade. Piscou por várias vezes, procurando focalizar melhor. E
murmurou:
– Gosto disso. Murgatroyd
do Midland e Higgins da matriz.
A esta altura, Paul Jones
já vira a intromissão do australiano e saíra de trás do balcão de recepção.
Veio pegar o homem pelo cotovelo e afastou-o gentilmente.
Se quiser fazer a gentileza
de voltar ao bar, Sr. Foster, para que eu possa instalar confortavelmente os
nossos novos hóspedes...
Foster foi levado, gentil
mas firmemente, para os fundos do saguão. Ao sair, acenou com a mão
cordialmente, gritando:
– Prazer em conhecê-lo,
Murgatroyd.
Paul Jones tornou a se
juntar aos hóspedes recém-chegados. A Sra. Murgatroyd comentou, em tom gelado
de desaprovação:
– Aquele homem estava
embriagado.
– Ele está aqui de
férias, minha cara—murmurou Murgatroyd.
– Isso não é desculpa.
Quem é ele?
– Harry Foster— informou
Jones. — De Perth.
– Ele não fala como um
escocês — declarou a Sra. Murgatroyd.
– Perth,
Austrália—explicou Jones. — E, agora, permitam-me levá-los a seus aposentos.
Murgatroyd contemplou a
cena do balcão do quarto com duas camas, no segundo andar. E ficou deliciado.
Lá embaixo, um pequeno gramado estendia-se até a areia branca, na qual as
palmeiras dispersas projetavam sombras inconstantes, agitadas pela brisa. Dez
cabanas abertas, de teto de colmo, proporcionavam uma proteção mais firme. As
águas quentes, parecendo leitosas no ponto em que remexia a areia,
desmanchavam-se suavemente na praia. Mais além, era de um verde transparente; e
ainda mais além parecia azul. A 500 metros de distância, ele pôde divisar a
linha dos recifes, onde a água se tornava espumante.
Um rapaz, o rosto cor de
mogno por baixo dos cabelos louros, praticava windsurfe, a uma centena
de metros da praia. Equilibrado na pequena prancha, ele virava a vela na
direção do vento, deslizando pela superfície da água sem qualquer esforço. Duas
crianças bronzeadas, de cabelos e olhos pretos, brincavam na água rasa,
gritando alegremente. Um europeu de meia-idade, barrigudo, o corpo brilhando de
água, saía do mar em pés-de-pato, segurando a máscara e o respirador.
– Por Deus, há tanto
peixe aqui que nem dá para acreditar! — gritou ele, com um sotaque
sul-africano, para uma mulher que estava na sombra.
À direita de Murgatroyd,
perto do prédio principal, homens e mulheres, envoltos em pareôs, seguiam para
o bar da piscina, afim de tomarem um drinque gelado antes do almoço.
– Vamos dar um mergulho —
sugeriu Murgatroyd.
– Poderemos fazer isso
mais cedo, se você me ajudar a arrumar as
coisas.
– Deixe
isso para depois. Só precisamos agora das roupas de banho, pelo menos até a
hora do almoço.
– De
jeito nenhum! — protestou a Sra. Murgatroyd. — Não pretendo almoçar como uma
nativa. Aqui estão o seu short e sua camisa.
Em dois dias, Murgatroyd
integrara-se no ritmo da vida de férias nos trópicos. Ou pelo menos na medida
em que lhe era permitido. Levantava cedo, como sempre fazia, mesmo quando
estava em casa. Mas em vez de ser saudado pela perspectiva de ruas molhadas
além das cortinas, sentava-se no balcão e ficava contemplando o sol se levantar
do Oceano Índico, além dos recifes, fazendo as águas escuras e serenas
brilharem subitamente, como vidro estilhaçado. Às sete horas ele descia para
nadar um pouco, deixando Edna Murgatroyd na cama, com rolinhos nos cabelos,
reclamando da lentidão no serviço do café da manhã, que, na verdade, era extremamente
rápido e eficiente.
Ele passava uma hora na água
quente. Em determinada ocasião, chegou a nadar quase 200 metros além da praia,
ficando surpreso com a própria audácia. Nunca fora um grande nadador, mas
estava melhorando rapidamente. Felizmente, a mulher não testemunhou a façanha,
pois ela estava convencida de que tubarões e barracudas infestavam a enseada e
nada era capaz de convencê-la que
tais animais não podiam atravessar os recifes, que toda aquela área era tão
segura quanto uma piscina.
Murgatroyd começou a tomar o
café da manhã no terraço ao lado da piscina, juntando-se
aos outros hóspedes madrugadores na escolha de melões,
mangas e papaias, esquecendo os ovos com bacon, apesar de constarem do
cardápio. Àquela hora, a maioria dos homens estava de calção e camisa de praia,
enquanto as mulheres usavam túnicas de algodão ou pareôs
por cima dos biquínis. Murgatroyd apegava-se a seus shorts, que desciam até os joelhos, e
camisas de tênis, que trouxera da
Inglaterra. A mulher se encontrava com ele na cabana de teto de colmo pouco
antes das 10 horas, iniciando uma sucessão interminável de exigências de
refrigerantes e aplicação de loção de bronzear, embora quase nunca se expusesse
aos raios solares.
Ocasionalmente, ela baixava
o corpo rosado na piscina do hotel, uma touca de babados protegendo a ondulação
permanente. Nadava lentamente por alguns metros e logo saía da piscina.
Higgins, ficando sozinho,
logo envolveu-se com um outro grupo de
ingleses bem mais jovens. Os Murgatroyds quase nunca o encontravam. Higgins
considerava-se um homem avançado e comprou na boutique do hotel um chapéu de palha de aba larga, como o que vira Hemingway
usar numa fotografia. Também passava o dia de calção e camisa, aparecendo para
jantar vestido com os outros, de calça esporte clara e blusão
safári, de bolsos no peito. Depois do jantar, ele ia
para o cassino ou a discoteca. E Murgatroyd ficava imaginando como seriam tais
lugares.
Infelizmente, Harry
Foster não guardara para si mesmo o seu senso de humor. Para os sul-africanos,
australianos e britânicos, que constituíam o grosso da clientela, Murgatroyd do
Middland tornou-se rapidamente conhecido. Higgins, no entanto, deu um jeito de
perder o rótulo “da Matriz”, através da assimilação dos hábitos locais. Involuntariamente, Murgatroyd tornou-se bastante popular. Ao atravessar o pátio na hora do
café da manhã, de short comprido e sapatos de lona com solas de
borracha, despertava alguns sorrisos e gritos joviais de “Bom-dia, Murgatroyd”.
Encontrava-se de vez em
quando com o inventor de seu rótulo. Harry Foster acenou-lhe por diversas vezes
na passagem, absorvido numa nuvem pessoal. A mão direita parecia se abrir
apenas para largar uma cerveja e pegar outra. A cada vez, o jovial australiano
sorria efusivamente, levantava a mão livre num cumprimento e gritava:
– Prazer em vê-lo,
Murgatroyd.
Na terceira manhã,
Murgatroyd saiu do mar depois do mergulho após a primeira refeição e foi se
acomodar na cabana, apoiando as costas na estaca central. Olhou ao redor. O sol
estava bem alto agora, o calor aumentava rapidamente, embora ainda fosse nove e
meia. Murgatroyd examinou o seu corpo, que estava adquirindo uma tonalidade
atraente de lagosta, apesar de todas as precauções e das advertências da mulher.
Invejava as pessoas que conseguiam adquirir um bronzeado saudável a curto
prazo. Ele sabia que a solução era manter o bronzeado, depois de adquirido, não
revertendo ao branco de mármore entre as férias. Só que não havia a menor
possibilidade em Bognor, pensou ele. As últimas três férias que lá haviam
passado apenas lhes proporcionaram céus cinzentos e quantidades variáveis de
chuva.
As pernas projetavam-se
do calção grande, finas e cabeludas. Eram encimadas por uma barriga estofada.
Os músculos do peito estavam flácidos. Anos
sentados a uma mesa haviam lhe ampliado o traseiro, enquanto os cabelos escasseavam. Os dentes ainda eram todos seus e usava óculos
apenas para ler, numa dieta que
consistia quase que exclusivamente de relatórios de companhias e contas bancárias
boutique do hotel um chapéu de palha de aba larga, como o que vira
Hemingway usar numa fotografia. Também passava o dia de calção e camisa,
aparecendo para jantar vestido com os outros, de calça esporte clara e blusão safári, de bolsos no peito. Depois do jantar,
ele ia para o cassino ou a discoteca. E Murgatroyd ficava imaginando como
seriam tais lugares.
Infelizmente, Harry
Foster não guardara para si mesmo o seu senso de humor. Para os sul-africanos,
australianos e britânicos, que constituíam o grosso da clientela, Murgatroyd do
Middland tornou-se rapidamente conhecido. Higgins, no entanto, deu um jeito de
perder o rótulo “da Matriz”, através da assimilação dos hábitos locais. Involuntariamente,
Murgatroyd tornou-se bastante popular. Ao atravessar o pátio na hora do café da
manhã, de short comprido e sapatos de lona com solas de borracha,
despertava alguns sorrisos e gritos joviais de “Bom-dia, Murgatroyd”.
Encontrava-se de vez em
quando com o inventor de seu rótulo. Harry Foster acenou-lhe por diversas vezes
na passagem, absorvido numa nuvem pessoal. A mão direita parecia se abrir
apenas para largar uma cerveja e pegar outra. A cada vez, o jovial australiano
sorria efusivamente, levantava a mão livre num cumprimento e gritava:
– Prazer em vê-lo,
Murgatroyd.
Na terceira manhã,
Murgatroyd saiu do mar depois do mergulho após a primeira refeição e foi se
acomodar na cabana, apoiando as costas na estaca central. Olhou ao redor. O sol
estava bem alto agora, o calor aumentava rapidamente, embora ainda fosse nove e
meia. Murgatroyd examinou o seu corpo, que estava adquirindo uma tonalidade
atraente de lagosta, apesar de todas as precauções e das advertências da
mulher. Invejava as pessoas que conseguiam adquirir um bronzeado saudável a
curto prazo. Ele sabia que a solução era manter o bronzeado, depois de
adquirido, não revertendo ao branco de mármore entre as férias. Só que não
havia a menor possibilidade em Bognor, pensou ele. As últimas três férias que
lá haviam passado apenas lhes proporcionaram céus cinzentos e quantidades
variáveis de chuva.
As pernas projetavam-se
do calção grande, finas e cabeludas. Eram encimadas por uma barriga estofada.
Os músculos do peito estavam flácidos. Anos
sentados a uma mesa haviam lhe ampliado o traseiro, enquanto os cabelos escasseavam. Os dentes ainda eram todos seus e usava óculos
apenas para ler, numa dieta que
consistia quase que exclusivamente de relatórios de companhias e contas bancárias.
O rugido de um motor
espalhou-se pela água. Murgatroyd levantou a cabeça e avistou uma pequena
lancha aumentando a velocidade. Uma corda pendia na esteira da lancha, uma
cabeça boiando na água ao final. Enquanto Murgatroyd observava, a corda ficou
subitamente esticada e o esquiador emergiu da água, um jovem hóspede do hotel,
espalhando espuma para os lados, deslizando pela água. Usava um único esqui, um
pé na frente do outro, deixando para trás uma esteira de espuma. O homem na
lancha virou a roda do leme e o esquiador descreveu uma grande curva, passando
perto da praia, diante de Murgatroyd. Os músculos retesados,
o corpo se equilibrando contra as ondulações
produzidas pela lancha, ele parecia esculpido em carvalho. O som de sua risada
triunfante estendeu-se pela água, enquanto a lancha aumentava a velocidade.
Murgatroyd ficou contemplando e invejando o rapaz.
Sabia que, aos 50 anos,
era baixo, gordo e fora de forma, apesar das tardes de verão no clube de tênis.
Faltavam apenas quatro dias para o domingo, quando ele embarcaria num avião e
iria embora, para nunca mais voltar. Provavelmente passaria mais dez anos em Ponder’s End e depois se aposentaria, talvez indo viver em Bognor.
Ele olhou ao redor e
divisou uma moça andando pela praia, à sua esquerda. A boa educação deveria
impedi-lo de ficar olhando para a moça. Mas ele não pôde evitar. Ela estava
descalça, caminhava empertigada, com a graça intensa das moças da ilha. A pele
era de um dourado intenso, sem a ajuda de óleos ou loções. Usava um pareô
branco de algodão, com desenhos em vermelho, amarrado sob o braço esquerdo e
caindo até pouco abaixo dos quadris. Murgatroyd calculou que ela devia estar
usando alguma coisa por baixo. Uma lufada de vento grudou o pareô no corpo,
delineando por um momento os seios firmes e a cintura estreita. Mas logo o
vento se desvaneceu e o algodão se separou do corpo.
Murgatroyd percebeu que
se tratava de uma creole clara, de olhos escuros, malares
salientes, cabelos escuros lustrosos,
que caíam em ondas pelas costas. Ao passar por ele, a
moça virou-se e presenteou alguém com um sorriso feliz. Murgatroyd ficou
aturdido. Não sabia que havia mais alguém por ali. Olhou ao redor, freneticamente,
procurando a pessoa para quem a moça sorrira. Só que não havia ninguém. Quando
ele tornou a virar-se para
o mar, a moça sorriu outra vez, os dentes brancos rebrilhando
ao sol da manhã. Ele tinha certeza de que não haviam
sido apresentados. Portanto, o sorriso devia ser espontâneo. Para um estranho.
Murgatroyd tirou os óculos e retribuiu o sorriso, gritando:
– Bom-dia.
– Bonjour, m’sieu.
A moça seguiu adiante e
Murgatroyd continuou a observá-la. Os cabelos escuros desciam até os quadris,
que ondulavam gentilmente sob o algodão branco.
– Para começar, pode
parar de pensar nessas coisas — disse uma voz por trás dele.
A Sra. Murgatroyd chegara
e estava também olhando para a moça que se afastava.
– Que garotinha vulgar! —
acrescentou ela, sentando-se à sombra em seguida.
Dez minutos depois,
Murgatroyd olhou para a mulher. Ela estava absorvida em mais um romance
histórico, de uma autora popular, dos quais trouxera um amplo suprimento.
Murgatroyd olhou novamente para o mar, imaginando como era possível que a
mulher demonstrasse um apetite tão insaciável pelo romance de ficção, ao mesmo
tempo em que o desaprovava intensamente na vida real. Era uma indagação que já
se fizera muitas vezes antes. O casamento deles jamais se destacara por um amor
ardente, mesmo nos primeiros dias, antes da mulher declarar que desaprovava
aquele tipo de coisa e que ele estava redondamente enganado se pensava que
havia alguma necessidade de insistir. Desde então, por mais de 20 anos, Murgatroyd
ficara escravizado a um casamento sem amor, o tédio sufocante só animado
ocasionalmente por uma aversão intensa.
Certa ocasião, ouvira
alguém dizer a outro sócio, no vestiário do clube de tênis, que ele já deveria
ter dado uma surra na mulher há muitos anos. Murgatroyd ficara furioso naquele
momento, pensando inclusive em sair de trás dos armários e censurar com
veemência o autor do comentário. Mas se controlara, reconhecendo que o homem
provavelmente estava certo. O problema era que ele nunca fora o tipo de homem
de dar uma surra em quem quer que fosse. Além do mais, duvidava muito que isso
fosse melhorar sua mulher de alguma forma. Sempre fora sossegado e manso, mesmo
quando rapaz. Era perfeitamente capaz de dirigir um banco, mas em casa a
mansidão degenerara em passividade e depois em submissão. O fardo dos
pensamentos íntimos acabou por se manifestar num suspiro prolongado.
Edna Murgatroyd fitou-o
por cima dos óculos e disse:
– Se está com gases, é melhor
tomar logo um remédio.
Foi ao final da tarde de
sexta-feira que Higgins abordou-o no saguão, enquanto ele esperava que a mulher
saísse do banheiro.
– Preciso falar com você....
a sós — sussurrou Higgins, pelo canto da boca, com um ar furtivo suficiente
para atrair as atenções gerais por quilômetros ao redor Não pode falar aqui?
– Não — sussurrou Higgins, contemplando uma samambaia.
– Sua mulher pode voltar
a qualquer momento. Siga-me.
Ele afastou-se com uma
exibição ostensiva de indiferença, avançando vários metros pelo jardim, indo
postar-se atrás de uma árvore, na qual se encostou e ficou esperando.
Murgatroyd foi atrás dele.
– Qual é o problema? —
perguntou ele, ao alcançar Higgins, na escuridão do jardim.
Higgins olhou para o saguão iluminado, afim de
certificar-se que a cara-metade de Murgatroyd não o estava seguindo.
– O negócio é uma
pescaria em alto-mar—disse ele finalmente.
– Já fez alguma?
– Claro que não.
– Nem eu. Mas gostaria
muito. Por uma vez que fosse. Só para experimentar. Três empresários de Johannesburg reservaram um barco para amanhã de manhã. Mas não poderão mais sair. O
barco está disponível, com a metade do custo paga. porque eles perderam o
direito ao depósito adiantado. O que acha da ideia? Vamos aproveitar?
Murgatroyd ficou surpreso
por ter sido convidado. E perguntou:
– Por que não procura
dois companheiros do grupo com quem está se divertindo?
Higgins deu de ombros.
– Eles preferem passar o
último dia com suas garotas e elas não querem ir. Vamos experimentar, Murgatroyd.
– Quanto custa?
– Normalmente, o preço é
de cem dólares por cabeça. Mas como a metade do custo já foi paga, dá apenas 50
dólares para cada um.
– Por algumas horas? Isso
dá 25 libras.
– Exatamente 25 libras e
75 pence —
disse Higgins,
automaticamente, pois trabalhava em câmbio.
Murgatroyd fez alguns
cálculos rápidos. Com o táxi de volta ao aeroporto e as várias despesas extras
para levá-lo até sua casa em Ponder’s End, só lhe restava pouco mais
do que essa quantia. O saldo seria requisitado pela Sra. Murgatroyd para
compras livres de impostos e presentes para a irmã em Bognor. Ele sacudiu a
cabeça.
– Edna jamais
concordaria.
– Não conte a ela.
– Não contar?
Murgatroyd ficou
consternado com a ideia, mas Higgins insistiu:
– Isso mesmo. — Ele
inclinou-se para a frente e Murgatroyd pôde sentir o cheiro de álcool. — Ela
fará o diabo depois, mas isso sempre acontece, de qualquer maneira. Pense
nisso. Provavelmente nunca mais voltaremos aqui. Provavelmente nunca mais
tornaremos a ver o Oceano Índico. Sendo assim, por que não?
– Não sei...
– Será apenas uma manhã
em alto-mar, numa pequena embarcação O vento em seus cabelos, as linhas
estendidas para o bonito, atum e papa-terra. Podemos até pegar um peixe. Na
pior das hipóteses, será uma aventura para contarmos a todos os amigos e
conhecidos, quando voltarmos a Londres.
Murgatroyd empertigou-se.
Estava pensando no rapaz do esqui, deslizando pela água.
– Está certo — disse ele.
— Pode contar comigo. Quando vamos sair?
Ele pegou a carteira e
tirou três cheques de viagem no valor de 10 libras cada um, deixando apenas
mais dois. Assinou na última linha e entregou a Higgins.
– Vamos partir bem cedo —
sussurrou Higgins. — Temos de nos levantar às quatro horas da madrugada. Saímos
daqui de carro às quatro e meia. Chegamos no porto às cinco horas. Zarpamos
quando faltarem 15 minutos para seis horas, afim de chegarmos aos pesqueiros
pouco antes das sete horas. É a melhor ocasião, ao amanhecer. O gerente de
atividades especiais do hotel vai nos acompanhar. Ele sabe de tudo. Tornaremos
a nos encontrar no saguão, às quatro e meia.
Ele voltou para o saguão
e encaminhou-se para o bar. Murgatroyd seguiu-o, espantado com a própria
ousadia. Encontrou a mulher a esperá-lo, irritada. Acompanhou-a ao
restaurante.
Murgatroyd quase não
dormiu naquela noite. Embora tivesse um pequeno despertador, não se atreveu a
usá-lo, com receio de que a mulher pudesse acordar. Também não podia dormir
demais e deixar que Higgins batesse na porta às quatro e meia. Cochilou por
diversas vezes, até que viu os ponteiros luminosos se aproximando das quatro
horas. Além das cortinas, a escuridão ainda era total.
Ele saiu da cama sem
fazer qualquer barulho e olhou para a Sra. Murgatroyd. Ele estava de costas,
como sempre, respirando ruidosamente, o arsenal de rolinhos mantidos no lugar
por uma rede. Ele largou o pijama na cama silenciosamente e vestiu a cueca.
Pegou os sapatos de lona, o short e a camisa, saiu do quarto e fechou a
porta. Terminou de vestir-se no corredor às escuras, estremecendo com o frio inesperado.
No saguão, encontrou
Higgins e o guia, um sul-africano alto e magro, chamado André
Kilian, que estava encarregado de todas as atividades
esportivas para os hóspedes. Kilian olhou para os trajes dele e disse:
– Faz muito frio no mar
antes do amanhecer e fica terrivelmente quente depois que o sol aparece. O sol
pode fritá-lo por lá. Não tem uma calça comprida e um blusão
de mangas compridas?
– Não pensei que fosse
necessário — murmurou Murgatroyd. – De qualquer forma, não tenho.
Ele não se atrevia a
voltar ao quarto agora.
– Tenho um de sobra —
disse Kilian, entregando-lhe um pulôver. — Vamos embora.
Viajaram por 15 minutos
pelos campos às escuras, passando por cabanas em que uma luz indicava que
alguém mais já estava desperto. Saíram finalmente da estrada principal para o
pequeno porto de Trou d’Eau Douce, a
Enseada da Água Doce, assim chamado por algum capitão francês há muito
desaparecido, que devia ter encontrado uma fonte de água potável ali. As casas
da aldeia estavam às escuras e
silenciosas, mas Murgatroyd pôde divisar os contornos de uma embarcação no
porto, com vultos trabalhando no convés, à luz de tochas. Pararam perto do cais de madeira. Kilian tirou um frasco
de café quente do porta-luvas e ofereceu-o. O café caiu agradavelmente.
O sul-africano saltou do
carro e foi até o barco atracado. Trechos de conversa em voz baixa, em francês creole,
flutuaram até o carro. É estranho como as pessoas sempre falam em voz baixa na
escuridão que antecede o amanhecer.
Ele voltou dez minutos
depois. Havia agora uma listra pálida no horizonte a leste, umas poucas nuvens
baixas brilhando debilmente por lá.
– Podemos embarcar agora—
comunicou Kilian.
Ele pegou uma caixa
refrigerada na traseira do carro, que mais tarde proporcionaria a cerveja
gelada. Levou-a para o cais, junto com Higgins. Murgatroyd levou as mochilas
com o lanche e mais dois frascos de café.
O barco não era um dos
modelos novos, luxuosos, de fibra de vidro, mas sim uma velha embarcação, de
casco de madeira e convés de tábuas de compensado. Tinha uma pequena cabine
perto da proa, que parecia estar apinhada com os equipamentos mais diversos. A estibordo
da porta da cabine havia uma cadeira estofada, de frente para a roda do leme e
os controles básicos. Essa área era coberta. A área posterior era descoberta,
com bancos de madeira nos dois lados. Na popa havia uma cadeira giratória, como
as que se pode encontrar num escritório, só que esta tinha diversas correias
pendendo soltas e estava aparafusada ao convés.
Nos lados do convés de
popa havia duas varas projetando-se para fora, inclinadas. Murgatroyd pensou a
princípio que fossem caniços de pesca, mas
soube posteriormente que eram outriggers para evitar que as linhas se
emaranhassem.
Um velho estava sentado
na cadeira do comandante, uma das mãos na roda do leme, observando em silêncio
os últimos preparativos. Kilian ajeitou a caixa com a cerveja debaixo de um
banco e gesticulou para que os outros sentassem. Um garoto mal entrado na
adolescência desprendeu o cabo de atracação da popa e jogou-o no convés. Um
aldeão fez a mesma coisa na proa e depois empurrou o barco para longe do cais.
O velho ligou os motores e se pôde sentir um tremor intenso sob os pés. O barco
virou a proa lentamente.
O sol subia depressa
agora, estando apenas um pouco abaixo da linha do horizonte. Murgatroyd podia
ver claramente agora as casas da aldeia, à beira da enseada, a fumaça se
elevando, enquanto as mulheres preparavam o café da manhã. Mais alguns minutos
e as últimas estrelas se desvaneceram. O céu adquiriu uma tonalidade
azul-clara, hastes de luz projetaram-se pela água. Uma brisa repentina,
procedendo de lugar nenhum e indo para lugar nenhum, agitou a superfície da
enseada, fazendo com que a luz se rompesse em fragmentos prateados. E logo a
brisa desapareceu. A superfície voltou a ficar serena, rompida apenas pela
longa esteira do barco, saindo da proa e estendendo-se até o cais. Murgatroyd
olhou para o lado e pôde divisar as formações de corais, a quatro braças de
profundidade.
– E agora vou fazer as
apresentações. — Com a claridade aumentando, a voz de Kilian soava mais forte.
— Este barco é o Avant, que em francês significa Para Frente. É velho,
mas firme como um rochedo; já contribuiu para se pegar muitos peixes. O capitão
é Monsieur Patient e esse é o seu neto, Jean-Paul,
O velho virou-se e acenou
com a cabeça, cumprimentando os passageiros. Ele vestia uma camisa azul de lona
e uma calça igual, da qual saíam os pés descalços e curtidos. O rosto era
escuro e encarquilhado, como
uma nogueira velha, encimado por um velho chapéu. Contemplava o mar com olhos
envoltos por coroas de rugas, de uma vida inteira observando as águas de uma
claridade intensa.
– Monsieur Patient vem
pescando nestas águas pelo menos há 60 anos — disse Kilian. — Nem ele próprio
sabe com certeza há quanto tempo e ninguém mais é capaz de lembrar. Conhece o
mar e conhece o peixe. Esse é o segredo para apanhá-lo.
Higgins tirou uma câmara
da sacola a tiracolo e disse:
– Eu gostaria de tirar
uma foto.
– Acho melhor esperar
alguns minutos — sugeriu Kilian. — E segure-se firme. Estaremos passando pelos
recifes daqui a pouco.
Murgatroyd olhava
fixamente para os recifes que se aproximavam. Do balcão do seu quarto no
hotel, parecia aprazível, a espuma como leite. De perto agora, no entanto,
podia ouvir o rumor das ondas a se chocarem contra as formações de coral,
desfazendo-se nas pontas afiadas que afloravam logo abaixo da superfície. Ele
não conseguiu divisar qualquer abertura na linha dos recifes.
Pouco antes de chegar à
linha dos recifes, o velho Patient deu uma guinada para a direita na roda do
leme. O Avant ficou paralelo à espuma branca, a cerca de 20 metros de
distância. E de repente ele avistou o canal. Ficava entre duas formações de
coral que se estendiam paralelas, com uma passagem estreita separando-as.
Cinco segundos depois, estavam no canal, com
ondas à esquerda e à direita, avançando paralelos à praia, para leste. Quando
as ondas se esbatiam, o
Avant sacudia-se todo.
Murgatroyd olhou para
baixo. Havia ondas espumantes nos dois lados agora. Mas quando a espuma se
retirava, no seu lado, podia divisar a formação de coral, a três metros de
distância, parecendo muito frágil, mas afiada como navalha ao contato. Bastava
roçar e era capaz de cortar ao meio barco ou homem, com uma facilidade desdenhosa.
O capitão parecia nem estar olhando. Continuava sentado, uma das mãos na roda
do leme, a outra na alavanca de controle, olhando fixamente para a frente
através do para-brisa, como se recebesse sinais de algum farol no horizonte,
que apenas ele conhecia. Ocasionalmente, ele dava uma guinada na roda ou
empurrava a alavanca para a frente, aumentando a velocidade e fazendo com que o
Avant escapasse a alguma nova ameaça. Murgatroyd podia ver apenas as
ameaças, que passavam, frustradas, diante de seus olhos.
Tudo acabou em 60
segundos que pareceram uma eternidade. À direita, a linha dos recifes
continuava. No lado esquerdo, porém, terminava abruptamente. Haviam passado
pela abertura. O comandante do Avant virou a roda do leme, apontando a
proa para alto-mar. No mesmo instante, foram apanhados pela terrível ondulação
do Oceano Índico. Murgatroyd compreendeu que aquele não era um barco para
homens de estômago delicado e rezou para não se desgraçar.
– Observou bem aquele
maldito coral, Murgatroyd? — indagou Higgins.
Kilian sorriu.
– Uma coisa espetacular,
não é mesmo? Querem café?
– Acho que gostaria agora
de algo mais forte — comentou Higgins.
– Pensamos em tudo —
informou Kilian. — Há conhaque aqui dentro.
Ele destampou o segundo
frasco térmico. O garoto começou a preparar os caniços.
Eram quatro, que ele tirou da cabine, caniços resistentes, de fibra de vidro, com cerca de
dois metros e meio de comprimento, o meio metro inferior envolto em cortiça,
para que se pudesse pegar mais firmemente. Cada caniço
tinha uma imensa carretilha,
contendo 800 metros de linha de náilon. As pontas eram
de latão, com uma depressão no meio para se ajustar aos encaixes na amurada, a
fim de não girar. O garoto ajeitou cada caniço em seu encaixe, prendendo com cordas, para que não caíssem no mar.
A primeira beirada do sol
ergueu-se do oceano e espalhou seus raios pelo mar revolto. Em poucos minutos,
a água escura tornou-se azul, ficando mais clara e verde à medida que o sol
subia.
Murgatroyd equilibrou-se
contra o balanço do barco, enquanto tentava tomar o café, observando fascinado
os preparativos que o garoto fazia. Ele pegou numa mesa vários pedaços de fio
de aço, de comprimentos diversos, e uma seleção de iscas diferentes. Algumas
pareciam como filhotes rosas ou verdes de lula, feitas em borracha mole. Havia
penas de frango vermelhas e brancas, iscas que faiscavam
na água a fim de atrair as atenções de predadores.
Havia também chumbadas grossas, em formato de charuto, com um gancho na ponta,
por onde se prendiam na linha.
O garoto perguntou alguma
coisa em creole ao avô e o velho grunhiu uma resposta. O garoto
selecionou duas iscas de lula, uma pena e uma isca que lembrava uma colher.
Cada uma tinha um fio de aço a prendê-la, com cerca de um palmo de comprimento,
tendo um ou três anzóis na outra extremidade. Havia também em cada anzol uma
chumbada, a fim de manter a isca logo abaixo da superfície, enquanto corria
pela água. Kilian notou as iscas que estavam sendo usadas e explicou:
– Aquela spinner,
a que está faiscando, serve
para pegar alguma barracuda. As lulas e a pena servem para os dourados e
bonitos, talvez mesmo um grande atum.
Monsieur Patient alterou
subitamente o curso e todos se inclinaram para descobrir o motivo. Não havia
nada à frente, até o horizonte. Sessenta segundos depois, no entanto, eles
divisaram o que o velho já havia percebido. Ao longe, pássaros marinhos
mergulhavam e circulavam sobre o mar, pequenos pontos prateados na distância.
– São trinta-réis —
explicou Kilian. — Avistaram um cardume de peixes pequenos e estão mergulhando
para pegá-los.
– E nós estamos
interessados em peixes pequenos? — indagou Higgins.
– Claro que não. Mas
outros peixes estão. Os pássaros constituem o nosso aviso do cardume. Mas o
bonito caça espadilha e o mesmo acontece com o atum.
O capitão virou-se e
acenou com a cabeça para o garoto, que começou a lançar as linhas preparadas na
esteira do barco. Enquanto cada uma balançava freneticamente na espuma, o
garoto desprendia a carretilha a
que estava ligada, deixando-a rodar livremente. A isca e a chumbada se
afastavam pela esteira, até desaparecerem por completo. Q garoto deixou a linha
correr, até ter certeza de que estava a mais de 30 metros do barco. Depois,
tornou a trancar a carretilha. A
ponta do caniço inclinou-se
ligeiramente, aguentando a pressão e pondo-se a rebocar a isca. Em algum ponto
muito além, na água esverdeada, as iscas e os anzóis estavam
correndo firmemente logo abaixo da superfície, como um
peixe a nadar velozmente.
Havia dois caniços em encaixes na popa do barco, um no canto -
esquerdo, outro no direito. Os dois restantes estavam
em encaixes nos lados. As linhas estavam
presas a argolas grandes, ajustadas no alto dos outriggers. O garoto passara a linha
por essas argolas, abertas, antes de lançá-la ao mar. Prendera depois as
argolas no alto dos outriggers. A inclinação dos outriggers
evitaria que as linhas externas se misturassem com as internas, todas correndo
paralelas pela água. Se um peixe mordesse a isca e houvesse um puxão, a linha
se soltaria da argola. A pressão seria diretamente da carretilha
para o peixe.
– Algum de vocês já
pescou antes? — indagou Kilian. — Murgatroyd e Kilian sacudiram a cabeça e ele
então acrescentou:
– Neste caso, é melhor eu
mostrar o que acontece quando um peixe morde a isca. Não vai demorar a
acontecer. Venham dar uma olhada.
O sul-africano sentou na
cadeira de pescaria e pegou um dos caniços.
– Quando um peixe morde a
isca, a linha é bruscamente puxada pela carretilha, que emite um grito estridente. E assim que sabemos. Quando isso
acontece, o homem que está na vez senta aqui e Jean Paul ou eu lhe entregamos o
caniço. Entendido?
Os ingleses assentiram.
– A ponta do caniço é colocada neste encaixe entre as coxas.
Prende-se o caniço em seguida à
cadeira, com esta corda. Assim, se o caniço for arrancado das mãos de quem estiver pescando no momento, não o perderemos e o resto do equipamento. E agora olhem para isto
aqui...
Kilian apontou para uma roda
de latão com aros, no lado da carretilha. Murgatroyd e Higgins acenaram com a
cabeça.
– Este
é o controle. No momento, está armado para uma pressão muito leve, em torno de
três quilos. Assim, quando o peixe morde a isca, a linha vai correr. A
carretilha gira rapidamente e o som que produz se assemelha a um grito. Quando
um de vocês estiver em posição... e é melhor fazê-lo
rapidamente, pois assim terá de puxar menos linha
depois... deve empurrar o controle para a frente, bem devagar, deste jeito. O
efeito é endurecer a carretilha, até que a linha para de correr. O peixe passa
a ser rebocado pelo barco, ao invés de ficar puxando a linha.
Kilian fez uma pausa,
olhando para os dois ingleses, antes de continuar:
– Depois
disso, começa-se a recolher o peixe. Segurem na cortiça aqui com a mão esquerda
e rodem a carretilha. Se estiver muito pesado, segurem na cortiça com as duas
mãos e levantem o caniço, até colocá-lo na vertical. Baixem então a mão direita para a carretilha e comecem a
enrolar a linha, ao mesmo tempo em que descem lentamente a ponta do caniço, na direção da popa. Isso facilita tudo. Se necessário,
repitam o processo, segurando na cortiça comas duas mãos, suspendendo o caniço,
inclinando para afrente em seguida, ao mesmo tempo em que recolhem a linha. Acabarão
vendo o peixe surgir na espuma por trás da popa. O garoto vai então arpoar o peixe e puxá-lo para bordo.
– O
que representam as marcações na carretilha? — perguntou Higgins.
– Indicam
o máximo de pressão possível — informou Kilian.— Estas linhas têm uma tensão
máxima de 60 quilos. Com a linha molhada, podem fazer uma redução de 10 por
cento. Como medida de segurança, a carretilha está armada de forma a que,
quando as marcas opostas estiverem no mesmo ponto, só dê linha quando a pressão
na outra extremidade for de 45 quilos. Mas aguentar
uma pressão de 45 quilos por muito tempo, para não falar
de puxá-lo, é suficiente para quase lhes
arrancar os braços fora. Assim, acho que não precisamos nos preocupar com isso.
– Mas
o que acontece se pegarmos um peixe grande? — insistiu Higgins.
– Neste
caso, a única coisa a fazer é tentar cansá-lo — respondeu Kilian. — É o momento em que a batalha começa. E preciso dar
linha, depois puxar, dar mais linha, puxar novamente, assim por diante, até que
o peixe esteja tão exausto que não possa mais fazer força. Mas cuidaremos
disso, se acontecer.
Enquanto ele falava, o Avant
alcançou a área sobrevoada pelas aves marinhas, tendo percorrido a distância de
cinco quilômetros em
30 minutos. Monsieur Patient reduziu a velocidade e foram deslizando através do
cardume invisível lá em baixo. As pequenas aves circulavam incansavelmente a
seis ou sete metros acima do mar, cabeças abaixadas, asas esticadas, até que os
olhos aguçados divisavam algum brilho entre as colinas de água. Mergulhavam
então, as asas esticadas para trás, o bico penetrando primeiro na água. Um
segundo depois, a mesma ave emergia com uma mancha prateada a se debater no
bico e desaparecendo pela goela um instante mais tarde. A busca daquelas aves
era tão interminável quanto sua energia.
– Vamos
decidir quem fica com o primeiro peixe, Murgatroyd
– disse Higgins. — Vamos tirar a sorte.
Ele tirou uma rupia
mauriciana do bolso. A moeda foi jogada para o alto e Higgins ganhou. Poucos
segundos depois, um dos caniços interiores balançou violentamente. A carretilha
emitiu um som que elevou-se de
um ganido para um grito alto.
– É
meu! — berrou Higgins, deliciado, acomodando-se rapidamente na cadeira
giratória,
Jean-Paul entregou-lhe o
caniço, a linha ainda se desenrolando, só que mais devagar agora. Higgins
ajeitou a ponta do caniço no encaixe e prendeu-o
com a corda na cadeira. Depois, começou a fechar o
controle da carretilha. A linha que se desenrolava parou quase que no mesmo
instante. A ponta do caniço se inclinou. Segurando na cortiça com a mão
esquerda, Higgins começou a rodar a carretilha, recolhendo a linha, com a mão
direita. O caniço inclinou- se mais um pouco, mas ele continuou a recolher a
linha.
– Posso
sentir a pressão na linha! — balbuciou Higgins.
Ele continuou a girar a
carretilha. A linha era recolhida sem qualquer objeção.
Jean-Paul inclinou-se sobre a popa. Pegando a linha, ele
suspendeu um pequeno peixe prateado para bordo,
– Um
bonito, com quase dois quilos — comentou Kilian.
O garoto pegou um alicate e
tirou o anzol da boca do bonito. Murgatroyd viu que por cima da barriga
prateada o peixe era listrado, em azul e preto, como uma cavala. Higgins
parecia desapontado. A nuvem de trinta-réis ficou para trás. Tinham passado
pelo cardume. Passava um pouco das oito horas e o convés estava esquentando,
embora ainda fosse bastante agradável. Monsieur Patient virou o Avant
lentamente, descrevendo um círculo, a fim de voltar para o meio do cardume e a nuvem de aves a sobrevoá-lo, enquanto o neto tornava
a lançar a isca e o anzol no mar, para outra tentativa.
– Talvez possamos comê-lo
no almoço — disse Higgins.
Kilian sacudiu a cabeça,
com uma expressão pesarosa, e explicou:
– O bonito serve para
isca. Os nativos comem em sopa, mas o gosto não é dos melhores.
Passaram novamente pelo
cardume e outro peixe mordeu a isca. Murgatroyd pegou o caniço
com uma emoção intensa. Era a primeira vez que fazia
aquilo e talvez nunca mais tornasse a fazer. Quando segurou na cortiça, pôde
sentir a pressão do peixe 70 metros abaixo, como se estivesse bem perto dele.
Empurrou para a frente o controle da carretilha, lentamente, até que a linha de correr ficou imóvel e silenciosa. A ponta
do caniço curvou-se para a frente,
na direção do mar. Com o braço esquerdo, aguentou a pressão, ficando surpreso
com a força que era necessária para recolher a linha.
Retesando os músculos do braço esquerdo, ele começou a girar a carretilha metodicamente, com a mão direita. Foi
recolhendo a linha, mas com um grande esforço. A força que puxava no outro lado
surpreendeu-o. Talvez fosse um peixe grande, pensou ele, um peixe até muito
grande. Compreendeu que era justamente essa a emoção. Nunca saber com certeza
como era o gigante das profundezas que estava lutando freneticamente na esteira
do barco. E se não fosse grande coisa, algo como o bonito que Higgins já pescara, então o próximo poderia ser um monstro. Murgatroyd continuou
a girar a carretilha lentamente,
sentindo o peito arfar com o esforço. Quando o peixe estava a 200 metros do
barco, pareceu desistir abruptamente. Murgatroyd recolheu o resto da linha com
a maior facilidade. Pensava ter perdido o peixe, mas lá estava. Deu um último puxão,
ao chegar perto da popa, depois a luta acabou. Jean-Paul arpoou-o
e suspendeu-o. Era outro bonito, maior, com mais de
quatro quilos.
– Bem grande, não é
mesmo?—disse Higgins,
muito excitado.
Murgatroyd acenou com a
cabeça e sorriu. Seria algo para contar quando voltasse a Ponder’s End. No leme, o velho Patient fixou um novo curso, seguindo para um trecho
de água azul profunda, que podia divisar, a vários quilômetros de distância.
Observou o neto tirar o anzol da boca do bonito e resmungou-lhe alguma coisa. O
garoto tirou o fio de aço com a isca e guardou na caixa. Foi colocar o caniço no encaixe, a extremidade da linha solta.
Adiantou-se em seguida e foi assumir a roda do leme. O avô disse-lhe mais
alguma coisa e apontou pelo para-brisa. O garoto assentiu.
– Não vamos mais usar
aquele caniço? — perguntou Higgins.
– Monsieur Patient deve
ter outra ideia — disse Kilian. — Deixe tudo com ele. É um homem que sabe o que
faz.
O velho avançou com a
maior facilidade pelo balouçante convés até o lugar em que eles estavam. Sem dizer nada, sentou-se ao lado do embornal,
de pernas cruzadas, pegando o bonito menor e começando a prepará-lo como isca.
O pequeno peixe estava duro como uma tábua na morte, as barbatanas na cauda
esticadas para cima e para baixo, a boca entreaberta, os olhinhos pretos
fitando o nada.
Monsieur Patient tirou da
caixa um anzol grande, cuja haste estava presa a um fio de aço com cerca de
meio metro de comprimento, além de uma agulha de aço, com 30 centímetros de
comprimento, parecendo uma agulha de tricô. Enfiou a ponta da agulha pelo
orifício anal do peixe. Continuou a empurrar até que a ponta ensanguentada saiu
pela boca. Prendeu na outra extremidade da agulha o fio de aço e com um alicate
puxou a agulha pelo corpo do bonito, até que a ponta do fio saiu pela boca.
O velho empurrou a haste
do anzol bem fundo na barriga do peixe, até que tudo desapareceu, exceto a
ponta curva e afiada do anzol. Ficou sobressaindo para fora e para baixo na
base da cauda, a ponta virada para a frente. Puxou o resto do fio pela boca do
peixe, até ficar esticado.
Pegou em seguida uma
agulha bem menor, mais ou menos do tamanho que uma dona-de-casa usaria para cerzir as meias do marido, junto com um metro de fio de
algodão. A barbatana dorsal única e as duas barbatanas ventrais do bonito estavam caídas. O velho passou a linha de algodão pela
espinha levando à barbatana dorsal, por diversas vezes, depois passou a agulha
pelos músculos por trás da cabeça. Ao puxar o fio, a barbatana dorsal se
ergueu, assim como as diversas espinhas e membranas que proporcionavam
estabilidade vertical na água. Fez a mesma coisa com as barbatanas ventrais e
finalmente fechou a boca, costurando-a com pontos pequenos e perfeitos.
Quando acabou, o bonito
parecia quase igual ao que fora em vida. As três barbatanas se projetavam numa
simetria perfeita, impedindo que rolasse para a frente ou girasse. A cauda vertical
proporcionava direção e velocidade. A boca fechada impediria a turbulência e
borbulhas. Somente o fio de aço passando entre os dentes cerrados e o anzol
sinistro, pendendo da base do rabo, indicavam que se tratava de uma isca.
Finalmente, o velho pescador prendeu o fio de aço pendente da boca do bonito ao
outro fio que pendia da extremidade do caniço. Jogou a nova isca no mar. Ainda de olhos abertos, o bonito ricocheteou
duas vezes na esteira da lancha e depois afundou, puxando pela chumbada, a fim
de iniciar a sua última jornada pelo mar.
Ele deixou que o bonito
na ponta da linha ficasse cerca de 70 metros além das outras iscas, antes de
prendê-la. Voltou então para o seu posto de comando. A água em torno da lancha
passara de um azul- cinzento para um azul-esverdeado brilhante.
Dez minutos depois,
Higgins teve outro peixe a morder a isca. Ele puxou o caniço
e recolheu a linha por mais de dez minutos. Qualquer
que fosse o peixe que fisgara, estava lutando com uma fúria frenética para se desvencilhar. Todos pensavam que podia ser um atum de bom
tamanho, pela pressão na linha. Quando o peixe foi içado para bordo, no
entanto, descobriram que tinha quase um metro de comprimento, de corpo
estreito, com uma coloração dourada na parte superior do corpo e nas
barbatanas.
– Um dourado — disse
Kilian. — Trabalhou muito bem. Esses peixes lutam de verdade. E são deliciosos.
Vamos pedirão cozinheiro do St. Geran que o prepare para o jantar.
Higgins estava corado e feliz,
comentando:
– A sensação que tive foi
a de que estava tentando puxar um caminhão em alta velocidade.
O garoto tornou a ajustar
a isca e jogou-a novamente no mar. Agora, o mar parecia mais turbulento.
Murgatroyd segurou um dos suportes do toldo de madeira, a fim de poder ver
melhor. O Avant avançava entre grandes ondas. Ao baixarem, ficavam
olhando para grandes muralhas de água por todos os lados, encostas em movimento,
alegremente iluminadas pelo sol, parecendo negar a força terrível que havia por
baixo. Nas cristas, podiam contemplar o mar por quilômetros ao redor, as
espumas brancas no alto de cada onda. Para oeste, quase na linha do horizonte,
podiam divisar os contornos de Maurício.
As ondas estavam vindo de leste, uma depois da outra, como
gigantescos soldados esverdeados marchando contra a ilha e indo morrer na
artilharia dos recifes. Murgatroyd ficou surpreso por descobrir que não estava
enjoado, pois isso já lhe acontecera numa prosaica viagem de lancha de Dover a
Boulogne. Mas acontecera numa embarcação bem maior, avançando pelas ondas com
um barulho infernal, os passageiros respirando os odores de óleo, gordura da
comida, vapores que saíam do bar e outras coisas. O Avant, um barco
menor, não desafiava o mar. Ao contrário, navegava com ele, cedendo quando era
preciso, para tornar a se erguer um instante depois.
Murgatroyd contemplou as
águas e sentiu o respeito que paira à beira do medo, um companheiro quase
constante dos homens que viajam em pequenas embarcações. Uma embarcação pode
ser orgulhosa, impressiva, luxuosa
e forte nas águas serenas de um porto elegante, admirada
pela multidão que passa, a ostentação de seu rico proprietário. Em pleno
oceano, no entanto, é irmã da traineira malcheirosa,
do cargueiro enferrujado, uma pobre criatura unida por
soldas e parafusos, um frágil casulo lançando a sua força mínima contra um
poder inconcebível, um brinquedo na palma de um gigante. Mesmo com quatro
outros seres humanos ah perto, Murgatroyd pôde sentir a própria
insignificância, a pequenez impertinente do barco, a solidão que o mar sempre
inspira. Os que já viajaram sozinhos pelo mar ou pelo céu, através de grandes
planícies cobertas de neve ou por desertos intermináveis, conhecem a sensação.
Tudo é vasto, implacável, mas o mais terrível é o mar, porque se mexe.
Pouco depois das nove horas,
Monsieur Patient murmurou, sem se dirigir a ninguém em particular:
– Y’a quelque chose. Nous suit.
– O
que ele disse? — perguntou Higgins.
– Disse
que há alguma coisa lá atrás — explicou Kilian.
— E está nos seguindo.
Higgins correu os olhos
pelas águas turbulentas. Não havia coisa alguma além das águas.
– Como
ele pode saber?
Kilian deu de ombros.
– Da
mesma forma como você sabe que há alguma coisa errada com uma coluna de cifras.
Instinto.
O velho reduziu um pouco a
velocidade e o Avant dava a impressão de não estar se mexendo. O
balanço parecia aumentar com a queda da velocidade. Higgins engoliu em seco por
diversas vezes, a boca se enchendo de saliva. Passavam 15 minutos das nove
horas quando um dos caniços vergou bruscamente e a linha começou a correr, não
muito depressa, mas vigorosamente, o barulho da carretilha se transformando num
troar cada vez mais alto.
– É
seu — disse Kilian para Murgatroyd, tirando o caniço do encaixe na amurada e ajeitando-o na cadeira de pesca.
Murgatroyd deixou a sombra e
foi sentar-se na cadeira. Prendeu o caniço
com a corda e segurou na cortiça com a mão esquerda, firmemente. A carretilha,
uma Penn Senator grande, como um
barrilete de cerveja, ainda estava girando. Ele foi fechando o controle,
lentamente.
A tensão em seu braço
aumentou e o caniço vergou. Mas a linha continuava a correr.
– Segure
firme ou o peixe vai levar toda a sua linha — disse Kilian.
0 gerente
de banco retesou os músculos do bíceps e prendeu o controle com toda força. A
ponta do caniço foi abaixando, cada vez mais, até ficar no nível de seus olhos.
A velocidade da linha que corria diminuiu um pouco, parou por um instante,
tomou a correr. Kilian inclinou-se para
olhar os marcadores da carretilha. As marcas nos aros externo e interno estavam
quase opostas.
– O
peixe está puxando com uma pressão de 40 quilos — disse ele. — Terá de prender
com mais força.
O braço de Murgatroyd
começava a doer e os dedos que seguravam na cortiça ficaram dormentes. Foi virando
o controle, até que as marcas opostas ficaram no mesmo nível.
– Não
vai além disso — informou Kilian. — A pressão é de 45 quilos. O limite. Segure
o caniço com as duas mãos e aguente firme.
Com algum alívio, Murgatroyd
pôs a outra mão no caniço, apertando com toda força, ao mesmo tempo em que
apoiava as solas de borracha na amurada, contraindo os músculos das coxas e das
pernas, inclinando o corpo para trás. Nada aconteceu. A base do caniço estava
vertical entre as suas coxas, mas a ponta dirigia-se
diretamente para a esteira do barco. E a linha continuava a
correr, lenta, inexoravelmente. A reserva na carretilha diminuía com rapidez
diante de seus olhos.
– Santo
Deus, ele é mesmo grande! — exclamou Kilian. — Está puxando com uma pressão de
mais de 45 quilos! Aguente firme!
O sotaque sul-africano de
Kilian estava se tornando cada vez mais acentuado, com o seu excitamento.
Murgatroyd tornou a contrair os músculos das pernas, fazendo força com os
dedos, pulsos, antebraços e bíceps, os ombros encolhidos, a cabeça inclinada. E
resistiu. Nunca antes ninguém lhe pedira que aguentasse
uma pressão de 45 quilos. Depois de três minutos, a
carretilha finalmente parou de correr. O que quer que estivesse lá em baixo
puxara mais de 600 metros de linha.
– É
melhor prendê-lo nas
correias — disse Kilian.
Um braço depois do outro,
ele prendeu as correias por cima dos ombros de Murgatroyd. Mais duas correias
contornaram a cintura e outra mais larga passou entre as coxas. Todas as cinco
se prendiam em seu peito. Kilian apertou a todas firmemente. Houve algum alívio
para as pernas, mas o couro esfolava Murgatroyd, através da camisa de tênis de algodão, na frente dos ombros. Pela primeira
vez, ele percebeu como o sol estava quente ali.
A parte superior de suas coxas começou a arder.
O velho Patient se virara,
manejando a roda do leme com apenasuma das mãos.
Observara a linha correr desde o início e disse de repente, inesperadamente:
– Marlin.
– Você está com
sorte—comentou Kilian para Murgatroyd. — Parece que fisgou um marlin.
– E isso é bom? —
perguntou Higgins, que empalidecera consideravelmente.
– O marlin é o rei
da pesca oceânica — explicou Kilian. — Homens ricos vêm para cá ano após ano,
gastando muito dinheiro no esporte, sem jamais conseguirem pegar um marlin.
Mas ele vai lutar obstinadamente, como você nunca viu nada lutar tanto, em toda
a sua vida.
Embora a linha tivesse
parado de correr e o peixe nadasse junto com o barco, a pressão não cessara. A
ponta do caniço continuava vergada
para baixo, na direção da esteira. O peixe continuava a puxar, com uma pressão
entre 30 e 40 quilos.
Os quatro homens ficaram
observando em silêncio, enquanto Murgatroyd resistia à pressão. Ele ficou
segurando o caniço, quase imóvel, por
cerca de cinco minutos, o suor porejando da testa e das faces, escorrendo em gotas para o queixo. Lentamente, a
ponta do caniço se levantou,
enquanto o peixe aumentava a velocidade, a fim de aliviar a pressão na boca.
Kilian agachou-se ao lado de Murgatroyd e
passou a orientá-lo, como um instrutor de voo faz com um aluno que se prepara
para decolar sozinho pela primeira vez.
– Puxe a linha agora,
devagar, mas com firmeza. Reduza a pressão na carretilha
para 40 quilos, para o seu próprio bem e não por ele.
Quando ele tentar novamente escapar, o que vai acontecer, não tenha a menor
dúvida, deixe-o ir e leve a pressão na carretilha de volta a 45. Jamais tente recolher a linha enquanto ele estiver
lutando, pois poderia rompê-la facilmente. E se ele se aproximar do barco,
enrole a linha o mais depressa que puder. Nunca lhe dê uma linha folgada, pois
ele tentará cuspir o anzol.
Murgatroyd seguiu as
instruções. Conseguiu recolher 50 metros de linha, antes que o peixe tentasse
novamente escapar. E quando isso aconteceu, a força imensa quase lhe arrancou o
caniço das mãos. Murgatroyd mal
teve tempo de levar a outra mão para a cortiça e segurar com toda firmeza. O
peixe levou outros cem metros de linha, antes de parar a corrida e recomeçar a
seguir o barco.
– Ele já levou 650 metros
de linha até agora— disse Kilian. — Você só tem 800 metros.
– E o que vou fazer? —
perguntou Murgatroyd, entre os dentes cerrados.
A pressão diminuiu e ele
tratou de recolher a linha outra vez, enquanto Kilian respondia:
– Reze. Não pode aguenta-lo
além de uma pressão de 45 quilos. Assim, se ele chegar ao fim da linha na carretilha, vai rompê-la sem muita dificuldade.
– Está ficando muito
quente — murmurou Murgatroyd.
Kilian olhou para o short
e a camisa fina.
– Você vai fritar aqui
fora — disse ele. — Espere um instante.
Ele tirou a própria calça
do traje de ginástica e meteu-a em
Murgatroyd, uma perna de
cada vez. Levantou a calça ao máximo que podia. As correias impediam que a
calça chegasse à cintura de Murgatroyd, mas pelo menos as coxas e as pernas estavam cobertas. O alívio do sol foi imediato. Kilian
foi pegar uma suéter de manga comprida na cabine. Recendia a suor e peixe.
– Vou meter a suéter por
sua cabeça—disse ele a Murgatroyd.
– Mas o único meio de
baixar mais é abrir as correias por alguns segundos. Vamos torcer para que o marlin
não tente escapar nesses segundos.
Tiveram sorte. Kilian
abriu as duas correias dos ombros e baixou a suéter até a cintura de
Murgatroyd, depois tornou a prendê-las. O peixe continuava a correr com o
barco, a linha esticada, mas sem muita pressão. Com a suéter os braços de Murgatroyd
já não doíam tanto. Kilian virou-se.
Em sua cadeira, junto à roda do leme, o velho Patient estava estendendo o seu
chapéu velho, de aba larga. Kilian colocou-o na cabeça de Murgatroyd. A sombra
protegeu-lhe os olhos e proporcionou mais alívio. Mas a pele do rosto já estava
quente e causticada. O reflexo do sol no mar podia queimar bem mais do que o
sol propriamente dito.
Murgatroyd aproveitou a
passividade do marlin para recolher mais um pouco da linha. Recolhera
cem metros, cada metro fazendo os dedos doerem na manivela da
carretilha, pois ainda havia
uma pressão de 20 quilos na linha, quando o peixe tornou a tentar se libertar.
O marlin recuperou os cem metros em apenas 30 segundos, com uma pressão
de 45 quilos na carretilha. Murgatroyd
simplesmente se retesou todo e aguentou firme.
As correias ardiam intensamente em seu corpo. Eram dez horas da manhã.
Durante a hora seguinte,
ele começou a aprender o sentido da dor. Os dedos estavam
dormentes, doíam intensamente. Os pulsos latejavam e os
antebraços irradiavam espasmos de dor. Os bíceps estavam
contraídos, os ombros pareciam prestes a estourar.
Mesmo sob a calça e a suéter, o sol implacável estava outra vez lhe escaldando a
pele. Por três vezes, nessa hora, ele recuperou cem metros de linha do peixe; por três vezes, o peixe tentou escapar, tomando de volta os
cem metros.
– Acho
que não vou conseguir aguentar por muito mais temp0 – murmurou Murgatroyd, entre os dentes cerrados.
Kilian estava de pé ao lado dele, tendo na mão uma lata aberta de cerveja gelada.
Ele estava com as pernas expostas, só que curtidas em muitos anos ao sol.
Parecia não se queimar.
– Aguente firme, homem. A batalha é justamente isso. Ele tem a força, você conta com
os equipamentos e a astúcia. Depois disso, é apenas uma questão de resistência,
a sua contra a dele.
Pouco depois das 11 horas, o
marlin aflorou à superfície pela primeira vez. Murgatroyd trouxera-o para 500 metros de distância. O barco ficou por
um segundo na crista de uma onda. Lá em baixo, o peixe elevou-se
pelo lado de uma muralha de água verde. Murgatroyd ficou
atordoado. O bico afiado e comprido da mandíbula superior arremeteu para o céu.
A mandíbula inferior, menor, estava entreaberta. Por cima e por trás do olho, a
barbatana dorsal, lembrando uma crista de galo, estava estendida e ereta. A massa reluzente do corpo vinha atrás. Enquanto
a onda se desvanecia, o marlin pareceu ficar suspenso por um instante
sobre a cauda em formato de crescente, olhando para eles através das cristas
espumantes. E depois tornou a cair, em outra muralha em movimento, mergulhando
para o seu mundo, escuro e frio. O velho Patient foi o primeiro a falar,
rompendo o silêncio:
– C’est l’Empereur.
Kilian virou-se rapidamente
para fitá-lo.
– Vous êtes sur?
O velho limitou-se a assentir.
– O
que ele disse? — perguntou Higgins.
Murgatroyd olhava para o
local em que o peixe desaparecera. Depois, lentamente, voltou a recolher a
linha.
– Eles
conhecem aquele peixe por aqui — explicou Kilian. — Se é o mesmo ... e ao que eu saiba, o velho nunca se
enganou nessas coisas ... trata-se de um marlin azul, que se calcula ser maior do que o recorde registrado de 500 quilos. O que significa que deve ser
velho e astuto. Chamam-no de O Imperador. É um verdadeiro mito entre os
pescadores.
– Mas
como podem distinguir um peixe determinado? — insistiu Higgins. — Afinal, todos
são iguais.
– Este
marlin já foi fisgado duas vezes — disse Kilian. — E por duas vezes
partiu a linha. Na segunda, porém, estava perto do barco, ao largo de Rivière Noire. Viram o primeiro anzol
pendendo de sua boca. Depois, ele rompeu a linha no último
minuto e ficou com outro anzol. Em cada vez que foi fisgado, ele se elevou
acima da superfície por várias vezes, permitindo que todos o olhassem bem.
Alguém chegou mesmo a tirar uma fotografia dele em pleno ar. Por isso é que se
tornou tão conhecido. Eu não poderia identificá-lo a 500 metros de distância,
mas Patient tem olhos aguçados como os de uma gaivota, depois de tantos anos no
mar.
Por volta do meio-dia,
Murgatroyd parecia velho e extenuado. Estava encurvado
sobre o caniço, num mundo exclusivamente seu, isolado em sua dor e uma determinação
interior que nunca antes experimentara. A água escorria das bolhas estouradas
nas palmas, as correias úmidas de suor laceravam horrivelmente os ombros fustigados pelo sol. Ele abaixava a cabeça e
recolhia a linha.
Às vezes vinha fácil,
como se o peixe estivesse descansando. Quando a tensão se desvanecia da linha,
o alívio era um prazer tão intenso que mais tarde não foi capaz de descrevê-lo.
Quando o caniço estava encurvado e todos os músculos doloridos se contraíam
para resistir ao peixe, o sofrimento era diferente de tudo o que já imaginara.
Pouco depois do meio-dia,
Kilian agachou-se ao lado dele e
ofereceu-lhe outra cerveja.
– Escute, homem, você
está extenuado. Já se passaram três horas e não está realmente em boas
condições. Não há necessidade de matar-se. Se precisar de alguma ajuda, um
pequeno descanso, basta dizer.
Murgatroyd sacudiu a
cabeça. Os lábios estavam rachados do sol e
do sal.
– Meu peixe — murmurou
ele. — Deixem-me em paz.
A batalha prosseguiu,
enquanto o sol martelava o convés. O velho Patient estava empoleirado
como um velho e sábio corvo-marinho em sua cadeira,
uma das mãos na roda do leme, os motores um pouco acima do ponto morto, virando
a cabeça para esquadrinhar a esteira do barco, à procura de algum sinal do
Imperador. Jean-Paul estava acocorado à sombra do toldo de madeira, tendo há muito recolhido as linhas e
guardado os outros três caniços. Ninguém estava querendo pegar um bonito agora e as linhas extras
poderiam se emaranhar com a mais importante. Higgins finalmente sucumbira ao
balanço do barco e estava sentado, desesperado, a cabeça suspensa por cima de
um balde, em que depositara os sanduíches que comera e mais duas latas de
cerveja. Kilian estava sentado de frente para ele, tomando a sua quinta lata.
De vez em quando, eles olhavam para o vulto encolhido na cadeira giratória, com
o chapéu imenso na cabeça. Ficavam ou- vindo o barulho da
linha ao ser recolhida ou o zunido desesperador quando o marlin tornava
a recuperá-la.
O marlin estava a 300
metros do barco quando tornou a emergir. Desta vez, o barco estava numa
depressão e o Imperador aflorou à superfície, apontando para eles. Elevou-se num salto prodigioso, a espuma respingando de seu
dorso. O salto foi na esteira do barco e a linha ficou de súbito completamente
frouxa. No mesmo instante, Kilian estava de pé.
– Recolha
a linha! — gritou ele. — O Imperador vai cuspir o anzol!
Os dedos cansados de
Murgatroyd trabalharam freneticamente na manivela da carretilha para esticar a
linha. Conseguiu fazê-lo bem a tempo. A linha. estava esticada quando o marlin tornou a mergulhar
para as profundezas e ele ganhara 50 metros. Mas o peixe prontamente recuperou
tudo. Nas profundezas escuras e paradas, várias braças abaixo da superfície e
do sol, o grande caçador pelágico, os instintos aguçados por um milhão de anos
de evolução, voltou-se contra
a pressão de seu inimigo, absorvendo tudo no canto da boca óssea e mergulhando.
Em sua cadeira, o pequeno
gerente de banco contraiu-se todo no esforço, apertando os dedos doloridos
sobre a cortiça úmida, sentindo as correias
se comprimirem contra a sua carne, como se fossem arames em brasa. E aguentou firme, observando a linha de náilon ainda molhada correr diante de seus olhos. Cinquenta metros se foram rapidamente e o peixe continuava
a mergulhar.
– Ele
terá de subir novamente — comentou Kilian, observando por cima do ombro de
Murgatroyd. — Será a ocasião para
recolher a linha.
Ele inclinou-se e observou o
rosto avermelhado, já descasando. Duas lágrimas saíram dos olhos semicerrados e escorreram pelo rosto flácido de Murgatroyd. O
sul-africano pôs a mão gentilmente no ombro dele e disse:
– Você
não pode mais aguentar. Por
que não descansa um pouco? Apenas por uma hora, está bem? Poderá então reassumir,
para a última parte da batalha, quando o peixe chega perto e se torna prestes a
desistir.
Murgatroyd observava a linha
a correr mais devagar agora. Abriu a boca para falar. Uma rachadura no lábio se
abriu ainda mais e uma gota de sangue escorreu para o queixo. A empunhadura de
cortiça estava ficando escorregadia, devido ao sangue que escorria de suas
palmas.
– Meu
peixe — balbuciou ele. — Meu peixe.
Kilian levantou-se.
– Está certo, inglês, é o
seu peixe.
Eram duas horas da tarde.
O sol estava usando o convés posterior do Avant, como se fosse a sua
bigorna particular. O Imperador parou de mergulhar e a tensão na linha se
atenuou para 20 quilos. Murgatroyd recomeçou a recolher a linha.
Uma hora depois, o marlin saltou
do mar pela última vez. Estava a apenas cem metros de distância. O salto fez
com que Kilian e Jean-Paul se adiantassem rapidamente para observar.
Por dois segundos, o peixe ficou suspenso acima da espuma, sacudindo a cabeça
de um lado para outro, tentando se livrar do anzol que o atraía inexoravelmente
para junto de seus inimigos. Num canto da boca, um fio de aço faiscou ao sol, enquanto o peixe estremecia todo.
Depois, com um estrondo de carne a se chocar com a água, ele tornou a mergulhar
e desapareceu.
– E mesmo O Imperador —
murmurou Kilian, com extrema reverência. — Pesa 550 quilos, tem mais de seis
metros de uma extremidade a outra, aquele bico pode furar uma madeira de 25
centímetros, quando está se deslocando a toda velocidade de que é capaz, cerca
de 40 nós. Um animal espetacular.
Ele virou-se e gritou
para Monsieur
Patient:
– Vous avez vu?
O velho assentiu.
– Que pensez vous? II va venir vite?
– Deux heures encore — respondeu o velho. — Mais
il est fatigué.
Kilian agachou-se ao lado de Murgatroyd.
– O velho diz que ele
está cansado agora. Mas ainda vai lutar, talvez por mais duas horas. Quer
continuar?
Murgatroyd olhava
fixamente para o ponto em que o peixe desaparecera. Sua visão estava toldada
pelo cansaço e todo o seu corpo era uma única dor lancinante. Pontadas de dor
mais intensas espalhavam-se pelo ombro direito, onde distendera um músculo.
Nunca antes fora obrigado a recorrer às suas últimas e supremas reservas de
vontade e, por isso, não sabia. Ele assentiu. A linha não estava mais correndo, o caniço
se envergara um pouco. O Imperador continuava a puxar, mas não mais com a pressão de
45 quilos. O banqueiro continuou sentado, segurando o caniço
firmemente.
Prosseguiram na luta por
mais 90 minutos, o homem de Ponder’s End e o grande marlin. Por quatro vezes, o peixe arremeteu e recuperou uma parte da linha. Mas seus arrancos estavam
se tornando mais curtos, à medida que o esforço de
puxar 45 quilos ia minando até mesmo a sua força primitiva.
Por quatro vezes, Murgatroyd recolheu a linha desesperadamente, ganhando uns
poucos metros a cada vez. Sua exaustão estava beirando o delírio. Os músculos
das pernas e das coxas tremiam incontrolavelmente. A visão se toldava com uma frequência cada vez maior. Às quatro e meia, ele já estava
lutando há sete horas e meia, algo que não se podia pedir nem mesmo de um homem
nas melhores condições físicas. Era apenas uma questão de tempo e não seria
muito. Um deles teria de se render.
Quando faltavam 20 minutos
para as cinco horas, a linha ficou frouxa de repente. Murgatroyd foi apanhado
de surpresa. Começou a recolher rapidamente. E a linha vinha com bastante
facilidade. O peso ainda estava ali, mas agora se tornara passivo. O tremor cessara. Kilian
ouviu o barulho ritmado da carretilha e saiu da sombra,
indo até a amurada da popa. Espiou para esteira e gritou:
– Ele
está vindo! O Imperador está vindo!
O mar se acalmara com o
final da tarde. As cristas brancas haviam desaparecido, substituídas por uma
ondulação suave. Jean Paul e Higgins, que ainda estava enjoado, mas pelo menos
parara de vomitar, adiantaram-se para observar. Monsieur Patient desligou os
motores e prendeu a roda do leme. Desceu do seu posto e foi juntar-se aos outros. Em silêncio, o grupo observava
atentamente a água além da popa.
Algo aflorou à superfície,
rolando e balançando, mas deslocando-se na direção do barco, puxado pela
linha de náilon. A barbatana
serrilhada emergiu por um momento, depois rolou para o lado. O bico comprido e pontudo
apontou para cima e depois tornou a afundar abaixo da superfície.
A 20 metros, todos puderam divisar
o corpo imenso do Imperador. A menos que ainda restasse uma última e violenta
reserva de força em seus ossos e tendões, ele não mais lutaria pela liberdade.
O Imperador se rendera. A seis metros de distância, a extremidade do fio de aço
levantou-se na ponta do caniço.
Kilian pôs uma luva grossa de couro e pegou-o. Foi puxando manualmente. Todos ignoraram Murgatroyd, arriado na cadeira.
Ele largou o caniço, pela
primeira vez em oito horas, tombando para a frente. Lentamente, dolorosamente,
abriu as correias. Apoiou o peso do corpo nos pés, tentou se levantar. As
pantorrilhas e as coxas estavam fracas demais e ele arriou ao lado do dourado
morto. Os outros quatro estavam espiando por cima da amurada para o peixe que
boiava na popa. Enquanto Kilian puxava lentamente o fio de aço com a mão
enluvada, Jean-Paul pegou um gancho comprido e suspendeu-o
por cima da cabeça, equilibrado na amurada. Murgatroyd olhou para o garoto
suspenso ali, o gancho erguido.
E sua voz soou mais como
um rangido rouco do que como um grito:
– Não.
O garoto ficou
paralisado, olhou para baixo. Murgatroyd estava de quatro, olhando para a caixa
de equipamentos. Logo por cima havia um alicate de cortar arame. Pegou-o com o
polegar e o indicador da mão esquerda, comprimiu-o contra a palma em carne viva
da mão direita. Lentamente, os dedos empunharam o alicate. Com a mão livre, ele
apoiou-se na amurada e ergueu o corpo.
O Imperador estava logo
abaixo da popa, exausto quase ao ponto da morte. O corpo imenso estava de lado
na esteira do barco, a boca entreaberta. Pendendo do canto da boca estava o fio
de aço de uma luta anterior com pescadores. Na mandíbula
inferior havia outro anzol, já enferrujado. O fio de
aço estendia-se da mão de Kilian para o terceiro anzol, encravado na cartilagem
da mandíbula superior. Apenas uma
parte da haste do anzol estava à vista.
Ondas sucessivas passavam
pelo corpo azul-escuro do marlin. A meio metro de distância, o peixe
olhava para Murgatroyd, com um olho imenso. Estava vivo, mas não lhe restavam
mais forças para lutar. O fio, de sua boca até a mão de Kilian, estava
esticado. Murgatroyd inclinou-se para baixo, lentamente, estendo a mão direita
até a boca do marlin.
– Pode afagá-lo depois,
homem — disse Kilian. —; Vamos tratar de suspendê-lo agora.
Deliberadamente,
Murgatroyd ajeitou o alicate no fio de aço, no ponto em que se ligava à haste
do anzol. E apertou. O sangue esguichou da palma e se derramou sobre a água
salgada que cobria a cabeça do marlin. Tornou-a apertar e o fio de aço
se partiu.
– O que está fazendo? —
gritou Higgins. — Ele vai escapar!
O Imperador ficou olhando
para Murgatroyd, enquanto outra onda passava por seu corpo. Sacudiu a cabeça
velha e cansada, afundou o bico na água fria. A onda seguinte rolou-o de
barriga e ele afundou a cabeça ainda mais. A cauda grande se ergueu e tornou a
cair, movimentando-se cansada na água. Impeliu o corpo para a frente e para
baixo. A cauda foi a última coisa que eles viram, movimentando-se lentamente na
fadiga, levando o marlin de volta à escuridão fria do seu lar.
– Mas que diabo! —
explodiu Kilian.
Murgatroyd tentou se
levantar, mas sangue demais afluíra à sua cabeça. Lembrou-se depois do céu girando lentamente e a escuridão se
aproximando muito depressa. O convés elevou-se ao seu encontro, primeiro contra
os joelhos e depois o rosto. Ele desmaiou. O sol estava suspenso sobre as
montanhas de Maurício, a oeste.
O sol já se pusera há
cerca de uma hora quando o Avant finalmente atravessou a enseada e atracou. A esta
altura, Murgatroyd já recuperara os sentidos. Durante a viagem de volta, Kilian
tirara a calça e a suéter que lhe
emprestara, a fim de que o ar fresco do crepúsculo pudesse revigorar a pele
escaldada. Murgatroyd tomara três cervejas seguidas e estava agora sentado num
dos bancos, os ombros vergados, as mãos num balde de água salgada. Não deu a
menor atenção quando o barco atracou e Jean Paul saiu correndo para a aldeia.
O velho Monsieur Patient desligou os motores e
verificou se os cabos de atracação estavam bem presos. Jogou o dourado grande e o bonito no cais, guardou a caixa
de ferramentas e iscas. Kilian levantou a caixa refrigerada para o cais e
depois voltou ao convés.
– Está na hora de irmos —
disse ele.
Murgatroyd se levantou e
Kilian ajudou-o a desembarcar. A bainha do short caíra abaixo dos joelhos, a camisa estava aberta,
escura do suor ressequido. Os sapatos de lona rangiam. Diversos habitantes da
aldeia se agrupavam no cais estreito e por isso tiveram de avançar em fila
indiana. Higgins seguiu na frente.
E a primeira pessoa com
que depararam foi Monsieur Patient. Murgatroyd
teria apertado a mão dele, se a sua não estivesse doendo
tanto. Ele acenou com a cabeça e sorriu para o velho,
murmurando:
– Merci.
O velho, que recuperara o
seu chapéu, tirou-o da cabeça naquele momento e disse:
– Salut, Maître.
Murgatroyd foi avançando
lentamente pelo cais. Todos os aldeões sacudiam a cabeça e murmuravam:
– Salut, Maître.
Chegaram ao final do cais
e começaram a subir pela rua de cascalho da aldeia. Havia uma multidão maior
agrupada em torno do carro e todos murmuraram respeitosamente “Salut, salut, salut, Maître”.
Higgins estava guardando
as roupas de reserva e a caixa vazia de comida. Kilian colocou a caixa
refrigerada na traseira do carro e fechou-a. Encaminhou-se para o lado em que
Murgatroyd esperava.
– O que eles estão
dizendo? — sussurrou Murgatroyd.
– Estão saudando-o —
disse Kilian. — Chamando-o de mestre-pescador.
– Por causa do Imperador?
– Ele é um verdadeiro
mito por aqui.
– Porque eu peguei O
Imperador?
Kilian riu baixinho.
– Não, inglês. Porque
você devolveu-lhe a vida.
Entraram no carro,
Murgatroyd no banco traseiro, onde arriou agradecido nas almofadas, as mãos em
concha no colo, com as palmas ardendo terrivelmente. Kilian sentou-se ao
volante, com Higgins ao seu lado.
– Ei, Murgatroyd, esses
aldeões parecem pensar que você é algum astro! — disse Higgins.
Murgatroyd olhou pela janela para os rostos morenos sorridentes e as crianças que
acenavam.
– Antes de voltarmos ao
hotel, é melhor passarmos pelo hospital em Flacq e deixar que o médico dê uma
olhada em você — sugeriu Kilian.
O jovem médico indiano
pediu a Murgatroyd que se despisse e estalou a língua de preocupação pelo que
viu. As nádegas estavam em carne viva dos
movimentos para frente e para trás no assento da cadeira de pescaria. Vergões roxos profundos estendiam-se pelos ombros e
costas, nos pontos contra os quais as correias se comprimiram. Braços, coxas e
pernas estavam vermelhos e descascando
das queimaduras de sol, o rosto estava inchado do calor. As duas palmas
pareciam carne crua.
– Isso vai demorar algum
tempo — murmurou o médico.
– Posso vir buscá-lo
dentro de duas horas? — perguntou Kilian.
– Não precisa — respondeu
o médico. — O Hotel St. Geran fica perto da minha casa Eu o levarei até lá
quando acabar.
Já eram quase 10 horas
quando Murgatroyd passou pela porta principal do St. Geran, entrando no saguão
bem iluminado. O médico ainda estava em sua companhia. Um dos hóspedes viu-o
entrar e correu para o restaurante, avisando aos outros que ainda estavam jantando. A notícia espalhou-se até o bar da
piscina no terraço. Houve um barulho de arrastar de cadeiras, o retinido de
talheres. Uma multidão avançou pelo saguão para saudar Murgatroyd. E todos
pararam abruptamente.
Murgatroyd era uma
estranha visão. Os braços e pernas estavam cobertos de loção de calamina, que já secara, transformando-se num
branco opaco. As mãos estavam envoltas por ataduras brancas. O rosto estava vermelho e brilhando
do creme que lhe fora aplicado. Os cabelos formavam um halo desgrenhado em
torno do rosto, o short cáqui ainda estava caído até os joelhos. Parecia
um negativo fotográfico. Recomeçou a andar, avançando para a multidão,
lentamente, todos se afastando para lhe dar passagem.
– Muito bem-feito, meu
velho — disse alguém.
– Uma atitude admirável —
comentou outra pessoa.
Apertos de mão era algo
impossível. Alguém pensou em dar-lhe uma pancadinha nas costas quando passou, mas
o médico acenou, para que não o fizesse. Algumas pessoas seguravam copos e
levantaram-nos
num brinde. Murgatroyd chegou à base da escada de
pedra para o segundo andar e começou a subir.
Foi nesse momento que a
Sra. Murgatroyd emergiu do cabeleireiro, atraída pelos comentários sobre a
volta de seu marido. Passara o dia remoendo uma raiva monumental, desde a
metade da manhã, quando ficara surpresa com a ausência do marido no lugar da
praia em que geralmente se encontravam, saíra a procurá-lo e soubera que ele se
fora. Ela estava com o rosto vermelho, embora mais de raiva do que de
queimadura do sol. O permanente com que voltaria para casa ainda não ficara
pronto e os rolinhos sobressaíam em sua cabeça.
– Murgatroyd! — Ela
sempre o chamava pelo sobrenome, quando estava furiosa. — Onde você pensa que
vai?
No patamar do meio da
escada, Murgatroyd virou-se, olhou para a multidão e a mulher. Kilian contaria
mais tarde que havia uma estranha expressão nos olhos dele. A multidão ficou
silenciosa.
– E como você pensa que
está parecendo? — gritou Edna Murgatroyd, cada vez mais indignada.
O gerente de banco fez
então uma coisa que não fizera por muitos anos. Ele gritou:
– Cale-se!
Edna Murgatroyd abriu a
boca, tão escancarada quanto a do peixe, mas não com tanta dignidade.
– Há 25 anos que você vem
ameaçando sair de casa e ir viver com a sua irmã em Bognor — disse Murgatroyd,
calmamente. — Ficará feliz em saber que não vou mais impedi-la. Não voltarei
com você amanhã. Vou ficar aqui, nesta ilha.
A multidão olhava para
ele, aturdida.
– Não passará por qualquer
necessidade — continuou Murgatroyd. — Ficará com a nossa casa e com as minhas
economias investidas. Mas eu ficarei com os fundos da pensão e com o dinheiro
da liquidação de meu exorbitante seguro de vida.
Harry Foster tomou um
gole da sua lata de cerveja e arrotou. Higgins balbuciou:
– Não pode se afastar de
Londres, meu velho. Não terá como viver.
– Claro que terei —
garantiu o gerente de banco. — Tomei uma decisão e não pretendo voltar atrás.
Pensei em tudo no hospital, quando Monsieur Patient foi
me visitar. Fizemos um
trato. Ele me venderá o barco e ainda
terei o suficiente para comprar uma cabana na beira da praia. Ele continuará
como Capitão e mandará o neto para a universidade. Serei o seu ajudante e por
dois anos ele me ensinará tudo o que sabe
do mar e dos peixes. Depois disso, passarei a levar os turistas em pescarias,
ganhando a vida assim.
A multidão de hóspedes continuava a fitá-lo
fixamente, todos espantados. E foi Higgins quem tornou a
romper o silêncio:
– E o banco, meu caro
Murgatroyd? E Ponder’s
End?
– E eu? — gemeu Edna
Murgatroyd.
Ele pensou em cada
pergunta criteriosamente.
– O banco que vá para o
inferno — disse ele, finalmente. — Ponder’s End que
vá para o inferno. E você também, madame, pode ir para o inferno.
Com isso, virou-se e
subiu os últimos degraus. Houve uma explosão de aclamações por trás dele. Ao
avançar pelo corredor, a caminho de seu quarto, foi perseguido por uma
despedida de bêbado:
– Prazer em conhecê-lo,
Murgatroyd.
Por causa desse Conto, fui conhecer Maurício e me hospedar no St. Geran.......Inesquecível!
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