Este pequeno conto é uma grande oportunidade para
conhecer Juan Rulfo (1917-1986) escritor mexicano nascido no estado de Jalisco
e autor de um dos mais importantes romances da literatura Latinoamericana: Pedro Páramo.
Diga a eles que não
me matem!
Juan
Rulfo
- Diga a eles que não
me matem, Justino! Anda, vai dizer isso. Que por caridade. Diga a eles assim.
Diga que o façam por caridade.
- Não posso. Há ali
um sargento que nem quer ouvir falar de ti.
- Faz com que te ouça.
Usa as tuas manhas e diga que para sustos já chega. Diga que o faça pela
caridade de Deus.
- Não se trata de
sustos. Parece que te vão matar de verdade. Eu já não quero voltar lá.
- Vai outra vez. Só
mais uma vez, a ver o que consegues.
- Não. Não tenho
vontade de ir. É evidente que eu sou teu filho. E, se vou muitas vezes ter com
eles, acabarão por saber quem sou e pode dar-lhes para me fuzilarem a mim
também. É melhor deixar as coisas tal como estão.
- Anda, Justino.
Diz-lhes que tenham só um bocadinho de lástima de mim. Diga só isso.
Justino apertou os
dentes e moveu a cabeça, dizendo:
- Não.
E continuou a abanar
a cabeça durante muito tempo
- Diga ao sargento
que te deixe ver o coronel. E conta-lhe quão velho estou. O pouco que valho.
Que lucro terá por matar-me? Nenhum lucro. Ao fim e ao cabo ele deve ter uma
alma. Diga que o faça pela bendita salvação da sua alma.
Justino levantou-se
do monte de pedras em que estava sentado e caminhou até à porta do curral.
Depois voltou-se para dizer:
- Vou, então. Mas se
por acaso me fuzilam a mim também, quem cuidará da minha mulher e dos filhos?
- A Providência,
Justino. Ela se encarregará deles. Preocupa-te em ir lá e ver que coisas fazes
por mim. Isso é que urge.
Tinham-no trazido de
madrugada. E agora já ia avançada a manhã e ele continuava ainda ali, amarrado
a uma estaca, esperando. Não conseguia estar quieto. Tinha feito a tentativa de
dormir um pouco para se apaziguar, mas o sono tinha abalado. Também tinha
abalado a fome. Não tinha vontade de nada. Só de viver. Agora que sabia
bastante bem que o iam matar, tinha-lhe entrado uma vontade tão grande de viver
como só a pode sentir um recém-ressuscitado.
Quem lhe haveria de
dizer que havia de voltar àquele assunto tão velho, tão rançoso, tão enterrado
como pensava que estava. Aquele assunto de quando teve que matar dom Lupe. Não
foi sem mais nem menos, como lhe quiseram fazer crer os de Alima, mas sim
porque teve as suas razões. Ele lembrava-se: Dom Lupe Terreros, o dono da
Puerta de Piedra, ainda por cima seu compadre. Ao qual ele, Juvêncio Nava, teve
que matar por isso mesmo; por ser o dono da Puerta de Piedra e porque, sendo
também seu compadre, lhe negou o pasto para os seus animais.
Primeiro aguentou-se
por mero compromisso. Mas depois, quando da seca, em que viu como lhe morriam
um atrás do outro os seus animais fustigados pela fome e que o seu compadre dom
Lupe continuava a negar-lhe a erva dos seus pastos, foi então que se pôs a
partir a cerca e a empurrar a massa de animais magros até ao capim para que se
fartassem de comer. E o dom Lupe não tinha gostado disso, tanto que mandou
tapar outra vez a cerca para que ele, Juvêncio Nava, lhe voltasse a abrir outra
vez o buraco. Assim, de dia tapava-se o buraco e de noite voltava a abrir-se,
enquanto o gado estava ali, sempre colado à cerca, sempre esperando; aquele seu
gado que antes só vivia cheirando o pasto sem o poder provar.
E ele e dom Lupe
discutiam e voltavam a discutir sem
chegarem a acordo.
Até que uma vez dom
Lupe lhe disse:
- Olha, Juvêncio,
outro animal mais que tu metes no pasto e eu mato.
E ele respondeu:
- Olhe, dom Lupe, eu
não tenho a culpa que os animais procurem o seu conforto. Eles são inocentes. Você
verá as consequências, se os matar.
E matou-me um
novilho.
Isto aconteceu há
trinta e cinco anos, em Março, porque em Abril eu já andava no monte, fugindo
da precatória. De nada me serviram as dez vacas que dei ao juiz, nem a penhora
da minha casa para lhe pagar a minha saída da prisão. Ainda depois se pagaram
com o que restava, só para não me perseguirem, embora de toda a maneira me
tenham perseguido. Por isso vim viver com o meu filho neste outro terrenozinho
que eu tinha e que se chama Paio de Venado. E o meu filho cresceu e casou-se
com a minha nora Ignacia e já teve oito filhos. Assim como assim a coisa já vai
para velha, e por isso deveria estar esquecida. Mas, pelos vistos, não está.
Eu então calculei que
com uns cem pesos ficava tudo arrumado. O defunto dom Lupe era sozinho, vivia
só com a mulher e os dois rapazinhos ainda de gatas. E a viúva depressa morreu
também, dizem que de tristeza. E aos rapazinhos levaram-nos para longe, para
casa de uns parentes. Assim que, pela parte deles, não havia que ter medo.
Mas os demais
insistiam em que eu andava com a precatórias em julgamento para me assustarem e
continuarem a roubar-me. Cada vez que alguém chegava à aldeia avisavam-me:
- Andam por aí uns
forasteiros, Juvêncio.
E eu fugia para o
monte, emaranhando-me entre os medronheiros e passando os dias a comer só
beldroegas. Às vezes tinha que sair à meia-noite, como se me estivessem
perseguindo os cães. Isso durou a vida toda. Não foi um ano nem dois. Foi a
vida toda.
E agora tinham ido à
sua procura, quando já não esperava ninguém, confiado no esquecimento em que as
pessoas o tinham; acreditando que pelo menos os seus últimos dias os passaria
tranquilo. «Pelo menos isto» pensou «conseguirei com estar velho. Deixar-me-ão
em paz.»
Tinha-se entregado a
esta esperança por inteiro. Era por isso que lhe custava trabalho imaginar que
ia morrer assim de repente, nesta altura da sua vida, depois de tanto lutar
para se livrar da morte; de ter passado o seu melhor tempo andando de um lado
para o outro arrastado pelos sobressaltos e quando o seu corpo tinha acabado
por ser um simples couro duro, curtido pelos maus dias em que teve que andar a
esconder-se de todos.
Não tinha ele, por
acaso, deixado até que a mulher lhe abalasse? Naquele dia que amanheceu com a
novidade de que a mulher se tinha ido embora, nem sequer lhe passou pela cabeça
a intenção de sair a procurá-la. Deixou que abalasse sem perguntar nem com quem
nem para onde, para não ter de descer à aldeia. Deixou que se fosse como se lhe
tinha ido tudo o resto, sem mexer uma palha. A única coisa que lhe restava para
cuidar era a vida, e esta conservá-la-ia fosse como fosse. Não podia deixar que
o matassem. Não podia. Muito menos agora. Mas para isso o tinham trazido de lá,
de Paio de Venado. Não precisaram de amarrá-lo para que os seguisse. Ele andou
sozinho, unicamente manietado pelo medo. Eles deram-se conta de que ele não
podia correr com aquele corpo velho, com aquelas pernas fracas como cordas
secas, inteiriçadas, com o medo de morrer. Porque ia para isso. Para morrer, disseram.
Soube desde então.
Começou a sentir essa comichão no estômago, que lhe chegava de repente sempre
que via a morte de perto e que lhe puxava a ânsia pelos olhos, e que lhe
inchava a boca com aqueles goles de água azeda que tinha que engolir sem
querer. E essa coisa que lhe fazia os pés pesados enquanto a cabeça lhe
amolecia e o coração lhe batia com todas as suas forças nas costelas. Não, não
se podia acostumar à ideia que o matassem.
Tinha que haver
alguma esperança. Em algum lugar poderia ainda restar alguma esperança. Talvez
eles se tivessem enganado. Talvez procurassem outro Juvêncio Nava e não o
Juvêncio Nava que ele era.
Caminhou entre
aqueles homens em silêncio, de braços caídos. A madrugada era escura, sem
estrelas. O vento soprava devagar, levava consigo a terra seca e trazia mais,
cheio desse cheiro como de urina que tem o pó dos caminhos.
Os seus olhos, que
com os anos se tinham encarquilhado, vinham vendo a terra, aqui, debaixo dos
seus pés, apesar da escuridão. Ali na terra estava toda a sua vida. Sessenta
anos a viver dela, contendo-a entre as suas mãos, depois de a ter provado como
se prova o sabor da carne. Veio durante longo tempo esmiuçando-a com os olhos,
saboreando cada pedaço como se fosse o último, quase sabendo que seria o
último.
Depois, como querendo
dizer alguma coisa, olhava os homens que iam junto dele. Ia dizer-lhes que o
soltassem, que o deixassem abalar: «Eu não fiz mal a ninguém, rapazes», ia
dizer-lhes, mas ficava calado. «Mais adiante digo-lhes», pensava. E só os
olhava. Podia até imaginar que eram seus amigos; mas não o queria fazer. Não
eram. Não sabia quem eram. Via-os a seu lado inclinando-se e agachando-se de
vez em quando para ver por onde seguia o caminho.
Tinha-os visto pela
primeira vez ao empardecer da tarde, nessa hora desbotada em que tudo parece
chamuscado. Tinham atravessado os sulcos pisando o milho tenro. E ele tinha
descido para isso: para lhes dizer que ali estava a começar a crescer o milho.
Mas eles não se detiveram.
Tinha-os visto
bastante tempo. Sempre teve a sorte de ver tudo com bastante tempo. Podia
ter-se escondido, caminhar umas quantas horas pelo cerro enquanto eles não
abalavam e depois voltar a descer. Ao fim e ao cabo, o milho não cresceria de
maneira nenhuma. Já era tempo de terem chegado as águas e as águas não
apareciam e o milho começava a murchar. Não tardaria em estar completamente
seco.
Assim nem merecia a
pena ter descido; ter-se metido entre aqueles homens como num buraco, para já
não voltar a sair.
E agora continuava
junto deles, aguentando a vontade de lhes dizer que o soltassem. Não lhes via a
cara; só via os vultos que se juntavam ou se separavam dele. De tal maneira
que, quando se pôs a falar, não soube se o tinham ouvido. Disse:
- Eu nunca fiz mal a
ninguém - disse isso. Mas nada mudou. Nenhum dos vultos pareceu aperceber-se.
As caras não se viraram para o ver. Continuaram na mesma, como se tivessem
vindo a dormir.
Então pensou que não
tinha mais nada para dizer, que teria de procurar a esperança em qualquer outro
lugar. Deixou cair outra vez os braços e entrou nas primeiras casas da aldeia
no meio daqueles quatro homens escurecidos pelo negro calor da noite.
- Meu coronel, aqui
está o homem.
Tinham parado à
frente da ombreira da porta. Ele, com o seu chapéu na mão, por respeito,
esperando ver sair alguém. Mas só saiu a voz:
- Qual homem? -
perguntaram.
- O de Paio de
Venado, meu coronel. O que o senhor nos mandou buscar.
- Pergunta-lhe se
alguma vez viveu em Alima - voltou a dizer a voz de lá de dentro.
- Eh, tu! O coronel
pergunta se habitaste em Alima? repetiu o sargento que estava à frente dele. .
- Sim. Diga ao coronel
que sou mesmo de lá. E que lá vivi até há pouco tempo.
- Pergunta-lhe se
conheceu Guadalupe Terreros.
- Está a perguntar se
conheceste Guadalupe Terreros.
- Ao dom Lupe? Sim.
Diga que sim que o conheci. Já morreu.
Então a voz lá de
dentro mudou de tom:
- Já sei que morreu -
disse. E continuou a falar como se conversasse com alguém, do outro lado da
parede de carriços:
- Guadalupe Terreros
era meu pai. Quando cresci e o procurei disseram-me que estava morto. É um
bocado difícil crescer sabendo que a coisa a que podemos agarrar-nos para criar
raízes está morta. Conosco, aconteceu isso. Depois soube que o tinham matado à
machadada, cravando-lhe depois uma vara de ferrão no estômago. Contaram-me que
ele sobreviveu mais de dois dias perdido e que, quando o encontraram, atirado
num arroio, ainda estava agonizando e pedindo que se encarregassem de lhe
cuidar da família. Isto, com o tempo, parece que se esquece. Uma pessoa tenta
esquecer. Aquilo que não se esquece é chegar a saber que quem fez aquilo ainda
está vivo, alimentando a sua alma podre com a ilusão da vida eterna. Não
poderia perdoar-lhe, embora não o conheça; mas o facto de se ter posto no lugar
onde eu sei que está, dá-me ânimo para acabar com ele. Não lhe posso perdoar
que continue a viver. Não devia ter nascido nunca.
Daqui, de cá de fora,
ouviu-se claramente tudo o que disse. Depois ordenou:
- Levem-no e
amarrem-no um bocado, para que padeça, e depois fuzilem-no!
- Olha para mim,
coronel! - pediu ele. - Já não valho nada. Não tardarei em morrer sozinho,
derreado de velho. Não me mates!
- Levem-no! - voltou
a dizer a voz lá de dentro.
- ... Já paguei,
coronel. Paguei muitas vezes. Tiraram-me tudo. Castigaram-me de muitas formas.
Passei coisa de quarenta anos escondido como um pestilento, sempre com o
palpite de que a qualquer momento me matariam. Não mereço morrer assim,
coronel. Deixa que, pelo menos, o Senhor me perdoe. Não me mates! Diga que não
me matem!
Estava ali, como se
lhe tivessem batido, sacudindo o seu chapéu contra a terra. Gritando.
De seguida a voz lá
de dentro disse:
- Amarrem-no e
dêem-lhe alguma coisa para beber até que se embebede para não lhe doerem os
tiros.
Agora, por fim,
tinha-se apaziguado. Estava ali encostado ao pé da estaca. Tinha vindo o seu
filho Justino e o seu filho Justino tinha abalado e tinha voltado e agora vinha
outra vez.
Pô-lo em cima do
burro. Amarrou-o bem amarrado aos arreios para que não caísse pelo caminho.
Meteu-lhe a cabeça dentro de um saco para que não desse má impressão. E depois
deu um puxão na crina do burro e abalaram, lançados, depressa, para chegar a
Paio de Venado ainda com tempo para organizar o velório do defunto.
- A tua nora e os
teus netos vão ter saudades tuas - ia dizendo. - Olhar-te-ão na cara e pensarão
que não és tu. Vai parecer-lhes que foi o coiote que te comeu, quando te virem
com essa cara tão cheia de buracos por causa de tanto tiro de misericórdia que
te deram.
Tenso! tensíssimo... adorei o conto!!
ResponderExcluirGrande Juan Rulfo!
ResponderExcluirSuper tenso!!! Amei!
ResponderExcluir