quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

31 – Baleia – G. Ramos

“Baleia,” o nono capitulo de Vidas Secas de Graciliano Ramos (1892-1953) escritor alagoano nascido em Quebrangulo. Narra os momentos finais do cachorro Baleia e traz uma das emoções mais intensas da literatura brasileira.  Muitos já o leram, mas talvez em outro contexto. Vale a pena ler outra vez e admirar a maturidade com que o texto foi escrito e a autenticidade das emoções e sentimentos que ele transmite.
Baleia
Graciliano Ramos
A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe 
em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca
 e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
 Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de 
hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho 
queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral
 ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as
 orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de 
roscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira,
 lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a 
cachorra não sofrer muito.

Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que
adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma
 pergunta:

– Vão bulir com a Baleia?

Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano 
afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem 
dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que
 ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinhá Vitória levou-os 
para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos:
 prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas
 do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia. Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a 
decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, 
as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.

Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinhá Vitória 
tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:

– Capeta excomungado.

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinhá Vitória, embalando as
 crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios.
Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa.
Mas compreendia que estava sendo severa de mais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com
os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às
 orelhas. Como isso era impossível, levantou os braços e, sem largar o filho,
conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.

Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as porteiras,
 açulando um cão invisível contra animais invisíveis:

– Ecô! ecô!

Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa 
da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras 
no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono
 desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado 
da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido 
com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca
do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto.

Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se
mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou 
o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de 
Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, Sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e
 os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
 E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho
 da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por
 um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao 
copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.

Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos
pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito
 sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte 
posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve 
medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca
 macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as
 moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos
 colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou 
a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado
 de 
banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando 
as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e 
aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou
 morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam
 diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e 
escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.

Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro
 vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro
s e tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente,
 com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.

Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua
 pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão.
Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o 
rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.

O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração,
 cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza 
o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do 
chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A 
obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia
 não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que
 estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno 
coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana devia m
andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos 
dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinhá Vitória guardava o 
cachimbo.

Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio
completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no 
poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam
 Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações 
familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se
 tinha despovoado.

Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a 
língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo,
 a pancada que recebera no quarto, e a viagem difícil do barreiro ao fim do
 pátio desvaneciam-se no seu espírito.

Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de 
trempe. Antes de se deitar, Sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza,
 varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um 
bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se 
amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.

A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do 
peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo
 se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.

Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente

Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
 Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. 
E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro 
enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

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